Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Plínio Bortolotti

‘É sempre problema para o jornalismo o cálculo de multidões. Como o uso do rigoroso método científico é difícil e caro, jornais evitam se valer dele, e os repórteres ficam na mão dos organizados dos eventos – interessados em inflar os números – ou da Polícia Militar, que também utiliza o sistema do chute. Os editores sentem-se confortáveis com números, pois facilita o título: milhares e milhões sempre impressionam. Na edição de 10 de junho, a editoria Brasil titulou ‘Marcha para Jesus reúne três milhões em Sampa [São Paulo]’. Na crítica interna escrevi que os especialistas estabelecem a média de seis pessoas por metro quadrado em cálculo de multidões. Portanto, se a passeata religiosa estivesse em uma rua de 10 metros de largura, a passeata teria de ter 50 quilômetros de extensão. Se a largura da rua fosse o dobro, os participantes teriam de ocupar 25 quilômetros. Muito exagerado, anotei, concluindo, ‘aproxima-se a Parada Gay de São Paulo e se prevê um público equivalente de participantes, segundo a coluna Cena G. A ver’. Não foi preciso esperar muito: na edição seguinte à que noticiou a marcha evangélica, O Povo informou na capa do jornal ter a Parada Gay de São Paulo reunido 3,5 milhões de pessoas.

O comentário interno a respeito do assunto provocou um princípio de debate na Redação, alguns colegas perguntaram como fazer o cálculo de multidões, sem apelar para a contratação de técnicos especializados. Não tenho resposta conclusiva, mas algumas pistas. Um dos jornalistas da Redação me enviou uma nota da coluna Ancelmo.com (12/6), a seguinte: ‘O anúncio de que havia 3,5 milhões de pessoas nesta passeata gay de São Paulo, domingo, fez um cricri parar e fazer as contas. O danado conferiu um mapa digitalizado da Avenida Paulista [que do bairro] Paraíso à [Av.] Consolação, tem 2.500m de comprimento e 55m de largura, são 137.500m2. Com uma pessoa por metro quadrado, seriam 137.000. Mas, se eram 3,5 milhões, havia 25 pessoas por metro quadrado, o que é impossível’. Fiz os cálculos: 137.500 m2 x 6 = 825.000 pessoas, quatro vezes menos do que o número anunciado. A reprodução dos números de forma acrítica levou o ombudsman da Folha de S. Paulo, Mário Magalhães, a escrever uma coluna com o título ‘A volta do ‘chutômetro’’ (17/6).

Os números

Mas ainda teríamos a Parada pela Diversidade Sexual, o nome oficial da manifestação em Fortaleza, realizada no domingo passado. Na segunda-feira, O Povo evitou pôr o numero de manifestantes na capa, preferindo o genérico ‘Multidão na parada pela diversidade’. Na página interna registrou a presença de 800 mil pessoas (segundo os organizadores) e 500 mil participantes (nos cálculos da Polícia Militar). Voltei ao assunto no comentário interno, certificando-me da largura e da extensão da avenida Beira-Mar. A via tem 14 metros no ponto mais largo e sete metros no mais estreito de meio-fio a meio fio, mais sete metros de calçada, somando-se as de ambos os lados. A extensão da avenida, do aterro da Praia do Ideal à do Mucuripe, é de 3.000 metros. Para efeito de cálculo, optei pelo ponto mais largo: 21 metros (somando-se as calçadas). Assim: 21 m x 3.000 m = 63.000 m2 (sem reduzir o espaço ocupado por árvores, bancos, bancas de jornal, etc.). Multiplicando-se 63.000 m2 por seis pessoas por metro quadrado chega-se a 378 mil pessoas. Isto é, se toda a extensão da Beira-Mar estivesse tomada. No entanto, a marcha cobria uma extensão de 500 metros, no máximo. Haveria, então, 63 mil pessoas. Ainda que se aceitasse triplicar ou quadruplicar o número de participantes (normalmente se argumenta que ruas paralelas também são ocupadas) ficaria muito distante dos dados ‘oficiais’. Independentemente de qualquer coisa é fácil verificar o exagero. Segundo o IBGE, Fortaleza tem 2.416.920 habitantes: seria preciso que 1/3 da cidade houvesse se deslocado à Parada Gay para bater com o número difundido pelos organizadores.

A opinião

Ainda houve outro problema na cobertura da manifestação. A redação do O Povo tem uma certa queda por temas ‘politicamente corretos’ e, às vezes, se esquece de separar a notícia da opinião. Na edição do dia 24/6 chamei a atenção para a matéria do Núcleo de Cotidiano que anunciava o evento, com expressões como ‘todo mundo é bem-vindo’ e ‘haja música e animação’, claramente opinativas e que ficariam adequadas se fossem depoimento dos organizadores da passeata, e não palavras assumidas pelo jornal. Na edição de segunda-feira, depois da parada, o título da matéria interna, em seis colunas, foi ‘Vamos brindar à vida, meu bem!’, sem aspas e com sinal de exclamação. Procurei a expressão na matéria para ver se, mesmo sem as aspas, poderia ser atribuída a algum participante da passeata. Nada. Ao meu questionamento, a resposta da editora-adjunta do Núcleo de Cultura, Dalviane Pires, foi que a frase era um verso de música de Vanessa da Mata, citada no texto, e que fora muito cantada na manifestação. Procurei de novo e encontrei o nome de algumas músicas entoadas pelos participantes, entre elas ‘hits’ como ‘Ai, Ai, Ai, de Vanessa da Mata’, mas nada do trecho que se elevou ao título. Confessei minha ignorância musical à editora, dizendo-lhe desconhecer a canção, por isso ficara perdido, pois o título só teria sentido para quem conseguisse ligar uma coisa a outra. Portanto, do ponto de vista jornalístico, o título carece de fundamento, pois nasceu do conhecimento específico de quem o escreveu, informação que deixou de ser partilhada com os leitores. O único modo de justificá-lo seria se a o trecho da música fizesse parte do texto da matéria; ainda assim, deveria, no mínimo, ser assinalado com aspas, de forma a demarcá-lo como um chamamento dos participantes da passeata, e nunca como uma declaração do jornal a respeito do assunto.’