Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Plínio Bortolotti

‘´Procurador pede anulação do vestibular` foi a manchete de Primeira Página da edição de terça-feira, referindo-se à prova da Universidade Federal do Ceará (UFC), a que galvaniza prioritariamente a preocupação dos estudantes (e pais) cearenses. No entanto, o texto da chamada se apresentava em descompasso com o título. Nele se informa que o procurador da República Oscar Costa Filho ´questiona` o edital do concurso e, por isso, ´pretende ingressar na Justiça` para pedir a anulação do concurso. Na crítica interna à edição do dia alertei para a distância entre intenção e gesto. O que o promotor anunciava era o ajuizamento de uma ação na tentativa de anular o vestibular, o que ainda não fizera. Portanto, a manchete, o principal destaque do jornal, não poderia fazer a enganosa assertiva.

Poucos dias antes, em 24/11, a manchete de Primeira Página anunciava: ´Petrobras reconhece dívida com o Ceará´, matéria da editoria de Economia, em referência aos valores que o estado do Ceará cobra da empresa por investimentos feitos, segundo o entendimento do governo do Estado, para esperar a siderúrgica movida a gás, negócio que foi descartado. No texto, o que se pode ler é que ´representantes do governo do Ceará garantem que a Petrobras já reconheceu um dívida de R$ 308 milhões´. No comentário interno observei que uma coisa é um representante do governo do Ceará dizer que a Petrobras reconhece a dívida; outra, bem diferente, é a própria empresa vir a público assumir o débito.

Em títulos das páginas interna também se podem ver equívocos parecidos. Na edição de 10 de novembro, a página 3, uma das mais nobres do jornal, anunciava: ´20 minutos de fogos e artistas nacionais no Réveillon 2008` (editoria Fortaleza). Reproduzia-se como certeza uma declaração do titular da Secretaria Municipal de Turismo, Henrique Sérgio de Abreu, sobre a festa de Ano Novo. O próprio secretário, ao divulgar a programação, alertava que o projeto poderia sofrer alterações. Ora, como o jornal pode garantir algo que ainda não aconteceu e, pior, com o próprio responsável pela atividade avisando que a programação poderia ser mudada?

Na página 19 da editoria de Política (edição de 14/11) outro título com o mesmo desvio: ´Presidente confirma mais poder para deputados´, em referência ao presidente da Assembléia Legislativa, Domingos Filho. Segundo o texto, o deputado entende que a Constituição Estadual restringe a atuação dos parlamentares como legisladores, por isso, ele disse que apresentaria uma emenda à Constituição para ampliar esse poder. No comentário interno à edição do dia anotei que a única coisa o presidente da Assembléia poderia ´confirmar` seria a apresentação da proposta de emenda constitucional. O que daí ocorreria era algo pertencente ao futuro, ao qual não é dado poder ao jornalista de antecipar.

Poderia dar outros exemplos equivalentes, mas creio que esses bastam para mostrar a necessidade de mais cuidado ao se titular as notícias, pois as manchetes, além de terem de reproduzir a verdade dos fatos, têm também de corresponder ao que está escrito nos textos. Esse tipo de erro vem acontecendo com uma freqüência inaceitável no jornal e é algo que exige urgente correção de rota.

A propósito, até sexta-feira, dia em que concluí esta coluna, o jornal não havia publicado nenhuma notícia informando se o procurador da República havia pedido judicialmente a anulação do vestibular da UFC. Também não fez a correção a respeito da manchete sobre a Petrobras, nem havia conseguido da empresa a confirmação para a sua manchete. E não vi nenhuma notícia informando se o presidente da Assembléia Legislativa dera segmento ao seu intento.

Calazar

Ainda neste mesmo departamento podem se inscrever as informações erradas que o jornal publica e reluta em corrigi-las. Na edição de 11/11, sob o título ´Cães fazem teste de calazar` (editoria Fortaleza), o jornal anota não haver vacina para a doença, que está atingindo um grande número de animais em Fortaleza. No mesmo dia, recebi e-mail de um leitor: ´Há mais de dois anos existe vacina canina para calazar, diferentemente do que informa a matéria´. Antes de responder, fiz uma rápida pesquisa na internet e verifiquei que existia uma vacina, mas a sua eficácia era contestada por uma corrente de veterinários, enquanto outros a indicavam. Repassei o e-mail do leitor à Redação com essas observações. Recebi como resposta a garantia que a pauta seria retomada. Mantive o leitor informado sobre as providências. Poucos dias depois ele escreve novamente: ´Há uma semana o jornal deu uma informação errada sobre a não existência de vacina contra o calazar e até agora não a corrigiu. Observe-se que a vacina é relativamente nova e muitos donos de cães a desconhecem. Sendo assim, o jornal presta um duplo desserviço à população: ao publicar informação errada e ao não corrigi-la´.

Da parte da editoria ficou o dito pelo não dito, mas o leitor voltaria a escrever, anexando matéria publicada por um jornal paulista, acompanhada da seguinte crítica: ´O texto talvez sirva para o jornal [O Povo] aprender alguma coisa de como abordar um tema. Mostra vários lados, informa que existem vacina e tratamento contra a doença, cabendo aos donos de animais decidirem juntamente com o veterinário de confiança. Espelhando-se no texto quem sabe da próxima vez O Povo deixe de desinformar seus leitores´.

Venho insistindo para que a Redação observe com cuidado a mudança radical que vem ocorrendo com os leitores de notícias. Eles têm à disposição hoje, na ponta dos dedos, informações do mundo inteiro, não dependem mais das páginas impressas dos jornais locais, podem contestar e confrontar as informações que recebem. Aquela velha equação ´emissor/receptor` em que um fala (o jornalista) e o outro escuta passivamente (o leitor) não existe mais. É um mundo em que cada letra que o jornalista põe no papel está sob severo escrutínio. Nesse contexto, os jornais têm de travar uma dura luta para não se tornarem irrelevantes. A informação que o leitor não consegue aqui ele tem como buscar em outro lugar. Este leitor do qual falamos ainda teve a gentileza de escrever e insistir, outros simplesmente vão embora – e sem pedir.’