Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Suzana Singer

‘Não é agradável bancar o estraga-prazeres, mas ombudsman serve também para isso, apontar problemas mesmo em dias de festa.

As comemorações dos 90 anos da Folha tiveram, como era de esperar, um tom ufanista, de propaganda dos próprios méritos: ‘Grupo Folha triplica faturamento em dez anos e consolida liderança’, ‘Jornal todo dia, cor, tempo real? A Folha fez primeiro’, ‘Meu caso com a Folha’, em que 90 colunistas teciam loas ao jornal no qual escrevem, foram alguns dos títulos do caderno especial entregue no último dia 19.

O alto da página principal da Folha.com foi ocupado durante quatro dias pelo aniversário do jornal, mesmo com o mundo árabe pegando fogo. Metade do ‘Painel do Leitor’ tem sido tomada com votos de parabéns, quase sempre de ‘autoridades’.

Foram produzidos vídeos com a história do jornal, suas principais reportagens, o trabalho dos fotógrafos, a cerimônia na Sala São Paulo.

Essa imodéstia explícita é estranha à tradição da Folha. O jornal cultiva uma insatisfação com a própria produção há mais de 20 anos. Na Redação, discutiam-se muito mais os erros do que se elogiavam os acertos -o que, por vezes, resultava em um clima pesado, contra tudo o que pregam os gurus da ‘motivação profissional’.

Mas, se acarreta problemas internos, esse descontentamento permanente é uma bênção para o leitor, uma garantia de que o jornal está sempre em busca do aperfeiçoamento.

Quando celebrou 80 anos, a Folha trouxe editorial na Primeira Página com o sugestivo título de ‘Muito a fazer’, em que se propunha a perseguir a aproximação de uma fórmula abstrata -independência, criticidade, pluralismo- da prática diária.

No caderno especial de então (‘Tudo sobre a Folha’), que tinha, é claro, muitos autoelogios, perguntava-se a políticos, artistas e empresários de que gostavam e de que não gostavam no jornal. Outra reportagem ouvia pessoas que se sentiram prejudicadas por textos da Folha em casos espinhosos. Na contracapa, ‘O jornalismo como crise permanente’ começava assim: ‘Qualquer publicação que chegasse aos 80 anos na condição de maior e provavelmente mais influente jornal do país estaria satisfeita. Não a Folha’.

A seguir, o diretor de Redação, Otavio Frias Filho, reclamava de que a Folha estava ‘morna e acomodada’. ‘Em vez de comemorar, precisamos sacudir o jornal, colocá-lo novamente em crise, pois o sentimento de crise é o que o obriga a melhorar’, disse.

É verdade que o especial de 90 anos da Folha teve o bom humor de publicar os ‘melhores’ ‘Erramos’ dos últimos anos (‘Chorei de tanto rir com o Cristo enforcado’, confessou uma leitora) e a coragem de explicar o apoio do jornal ao golpe militar e o alinhamento da ‘Folha da Tarde’ à repressão contra a luta armada. Trouxe também críticas duras feitas pelos ex-ombudsmans. Mas foram apenas notas dissonantes.

Talvez a crise de identidade por que passam os impressos em todo o mundo -a toda hora colocados ao lado do mico-leão-dourado como espécime em risco de extinção- tenha levado a Folha a esse momento de orgulho exacerbado.

Se é verdade que a Folha conseguiu com seu ‘balaio de gatos’ (pluralidade de opiniões) vencer ‘vários tigres’ (concorrentes), expressões usadas na efeméride de 60 anos, o problema é que novos desafios surgiram.

Como diferenciar-se nesse mar de informações? O que fazer para atrair a atenção dos que nasceram com o computador em casa e mal sabem manusear um jornal? Como satisfazer leitores dispersos em nichos de interesses? Qual a maneira de tornar atraente o debate dos assuntos de interesse público? De que forma identificar os movimentos de transformação social realmente importantes? Como manter-se um polo de experiências inovadoras?

Numa festa imodesta como esta, vamos homenagear as qualidades do jornal, mas lembrar que estamos todos longe do jornal que sonhamos.

De presente mesmo, o leitor ganhou todo o acervo da Folha digitalizado. Fácil de usar, extremamente útil e, por enquanto, de graça (acervo.folha.com.br).

Por motivo de saúde, não pude escrever nas últimas semanas nem responder aos leitores. Peço desculpas pela ausência.’