Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Vera Guimarães Martins

“Achei um absurdo o editorial ‘Última chance’, que impõe uma agenda à presidenta e a ameaça com a deposição. Desde quando crise em regime presidencialista, seja econômica ou política, é justificativa para saída do cargo? Sem o amparo da Constituição, como derrubar alguém que foi legitimamente eleito?”, escreveu o leitor Gonçalo de Andres Fernandez.

Reações contrárias ao texto que a Folha publicou na capa do domingo passado eram naturais e esperadas, mas os protestos me surpreenderam duplamente. Primeiro, porque o número ficou bem abaixo da minha expectativa (por outro lado, talvez, proporcional aos baixos índices de aprovação de um governo que poucos se animam a defender). Foram dez cartas, a maioria encampando a visão de que o conteúdo configurava um ultimato ou pregava o impeachment de Dilma.

Depois, porque poucos questionaram o aspecto que considero mais polêmico, o receituário repleto de remédios amargos. Na opinião da Folha (e é preciso frisar que de opinião se trata), o país não tem saída a não ser fazer cortes drásticos, inclusive em setores sociais, os quais boa parte do país gostaria de ver poupados, e aceitar o aumento de impostos, purgante que deve enfrentar resistências imensas na sociedade, como se diz no próprio texto.

Pode-se discordar da prescrição, como fazem diariamente colunistas, entrevistados e articulistas. Ou leitores, como Carlos Frederico Coelho Nogueira, defensor, como parcela do país, da ideia de que o coquetel proposto é tão forte que vai matar o doente: “Não me conformo com a posição antidesenvolvimentista, reacionária e neoliberal que meu jornal predileto vem assumindo! O editorial é um apelo à recessão e à estagnação, naquela receita surrada que levou muitos países a crises quase incontornáveis. O que pretende a Folha? Que o Brasil se transforme numa Grécia?”.

Não se pode, contudo, pôr em dúvida o direito do jornal de defender as medidas em que acredita, tachando a sua publicação de chantagem ou intimidação, como fizeram alguns. Expor não é impor. Também não custa lembrar que as posições assumidas na “Primeira Página” não são diferentes das que vêm sendo defendidas em incontáveis editoriais internos. Elas ganham peso e gravidade quando exibidas na vitrine da capa, mas nem esse grau de exposição é novidade.

“A manifestação de opiniões políticas em editoriais está de acordo com as melhores tradições do jornalismo. Sua publicação na ‘Primeira Página’, embora não seja frequente, não chega a ser rara: ocorreu mais de 30 vezes desde 1990, sempre no intuito de chamar a atenção para aspectos fundamentais do debate público”, declara a Direção de Redação.

Recordando: em 24/9/1998, a poucos dias da eleição que levaria FHC ao segundo mandato, o jornal publicou “Tempo esgotado”, chamando a atenção para a situação econômica e o descontrole de gastos públicos do tucano (nada como um governo atrás do outro!). Em 28/10/2002, “Mais democracia”, sobre a eleição de Lula; em 26/09/2010, “Todo poder tem limite”, repudiando os ataques da campanha eleitoral petista à imprensa e, em 13/11/2012, “Julgamento para a história”, sobre o mensalão.

É nessa tradição que se insere o último editorial. Não acho que ele pregue a deposição da presidente; a possibilidade de queda está no contexto do noticiário político –e da Constituição. O jornal não entra no mérito do impeachment, sobre o qual já se pronunciou algumas vezes, como em “Sem bananas”, de 25/8.

A manifestação, sem dúvida dura e contundente, é mais uma conclamação para a necessidade de medidas urgentes que retirem o país do impasse em que está metido e chama à responsabilidade cada um dos atores envolvidos, Congresso e sociedade inclusos.

Esta é uma boa hora para o jornal reavaliar a tradição do editorial de “Primeira Página” às luzes da internet. No impresso, ele sempre se impôs pela excepcionalidade do desenho que rasga a página de alto a baixo. No site, ele foi mais uma chamada na primeira tela, sem nenhum recurso gráfico que chamasse a atenção do leitor para sua singularidade, o que retira sua força.