Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Adelto Gonçalves – Os Viralatas da madrugada

(Foto: Reprodução)

Observada a trégua pedida pelo presidente Lula, de se evitar uma barulhenta anticomemoração dos 60 anos do golpe militar do 31 de março de 1964, a realidade com fatos atuais nos obriga a comentar senão o tema, pelo menos atos semelhantes e até mais mortíferos, numa área circunscrita – a Baixada Santista.

Há 60 anos, a Polícia Marítima com seus uniformes azuis claro e coturnos brancos invadia, portando metralhadoras, todas as entidades sindicais da região santista, como o Sindicato dos Portuários Trabalhadores das Docas de Santos, prendia diretores, doqueiros e os transferia para uma prisão flutuante, o navio Raul Soares, onde ficaram presos, depois de interrogatório e tortura. Ora, nestes últimos meses, a Baixada Santista, uma extensão que chega ao Guarujá, tem sido alvo de ataques de comandos policiais, de caráter vindicativo, nas chamadas áreas perigosas, habitadas por favelados, pobres e negros, atos denunciados por organizações de defesa dos direitos humanos à imprensa e inclusive à Comissão de Direitos Humanos da ONU. Esse clima nos relança a 1964.

Há ainda testemunhas vivas, 60 anos depois, do Golpe de 1964, na cidade portuária paulista de Santos, onde as atividades sindicais e políticas eram bastante ativas desde a queda da ditadura de Vargas, chegando mesmo a ser chamada de Cidade Vermelha.

Muita gente já esqueceu a vitória do Partido Comunista do Brasil, legalizado logo após o retorno do Brasil à democracia em 1945, nas eleições para a Câmara Municipal de Santos, elegendo mais da metade dos vereadores. O estádio do Santos ficou repleto quando o Cavaleiro da Esperança, recém-libertado de uma longa prisão, Luís Carlos Prestes, fez ali um de seus primeiros discursos. Eleito senador, teve seu mandato cassado em 1947, assim como foram cassados os mandatos de 14 deputados federais e dos 18 vereadores eleitos em Santos, após o cancelamento do registro do PCdoB pelo Tribunal Superior Eleitoral.

Apesar de passados 60 anos, existem sim, em Santos, muitas testemunhas vivas do Golpe de 1964. Achei duas e começo com Adelto Gonçalves, hoje com 72 anos, que foi jornalista dos jornais A Tribuna de Santos, Cidade de Santos, Estadão e professor de Comunicações na Faculdade Santista, além de ter escrito, entre outros, um livro (foi o seu primeiro livro, ainda adolescente) sobre a vida de pessoas vivendo e trabalhando no cais santista na época do golpe militar de 1964. Isso inclui estivadores, portuários, transportadores, donos de botecos, hotéis treme-treme, dançarinas e prostitutas.

Seu testemunho vale a pena ser conhecido, mesmo porque sob outras formas e em retaliação à morte de policiais, a truculência policial retornou atualmente à região da chamada Baixada Santista, com o ex-secretário de Segurança Guilherme Derrit, responsável por duas operações de envergadura, que põem na prática o lema bolsonarista “bandido bom é bandido morto”, com a liquidação de 76 pobres e negros. E com o governador Tarcísio de Freitas dizendo, numa entrevista coletiva: “se quiserem vão se queixar na ONU, não estamos nem aí!”

Adelto Gonçalves, jornalista, escritor e crítico literário, tem boa memória: em 1961, ao terminar o curso primário entre os três melhores alunos, foi cumprimentado pessoalmente pelo presidente João Goulart, que visitava a cidade e esteve na escola primária do Sindicato dos Trabalhadores Portuários. Ele ainda se lembra da mão suarenta do presidente, deposto três anos depois, mas era ainda muito criança para entender as agitações criadas com o movimento pelas Reformas de Base.

Em 1964, frequentava o curso ginasial do Colégio Comercial Coelho Neto, onde, também se lembra, uma professora procurava sensibilizar alunos para participar das manifestações da União Cívica Feminina contra as Reformas de Base do governo Goulart. Adelto tinha 12 anos e morava com seus pais num prédio defronte do Sindicato dos Operários Portuários de Santos, na rua General Câmara. Foi da janela que viu chegar e entrar no sindicado os soldados de uniforme azul claro da Polícia Marítima de metralhadora. Depois de muito barulho e de ouvir vidros quebrados, viu os diretores e funcionários do sindicato saírem do prédio, passarem por um corredor polonês recebendo safanões e subirem num caminhão coberto, sendo conduzidos ao presídio local e depois ao navio-prisão Raul Soares. O navio ficou atracado durante sete meses, junto à Ilha Barnabé, no estuário em frente ao Porto de Santos.

Adelto teve a reação de ir anotando tudo quanto ia vendo e ouvindo e, seis anos depois, utilizou seus rascunhos para escrever as bases do seu primeiro livro, Os Viralatas da Madrugada, lançado em 1981, com apresentação do jornalista e escritor de esquerda Marcos Faerman. Embora o livro já tivesse sido impresso com o prefácio de Faerman, a editora José Olympio decidiu arrancar manualmente as duas páginas iniciais com o texto de Faerman por receio do livro ser considerado subversivo e retirado das livrarias, mesmo tendo ganhado menção honrosa como romance no prêmio José Lins do Rego. Uma nova edição foi feita pela Editora Letra Selvagem em 2015.

Faerman, no seu prefácio escrito em plena ditadura, citava a frase de um general de que a história era escrita pelos vencedores. Puro engano do general, alguns anos depois o Brasil voltou à democracia e o aprendizado, nos 21 anos de ditadura, nos livrou de uma recente nova tentativa golpista. Donde a oportuna frase de Milan Kundera, citada no prefácio de Faerman, mas ainda hoje válida e aplicável nas lembranças do golpe de há 60 anos: “a luta do homem contra o Poder é a luta da memória contra o esquecimento”.

Os Viralatas da Madrugada não é um livro político e ideológico, mas um romance contra a miséria e desesperança vividas pelas personagens frequentadoras do cais do porto de Santos, no bairro do Paquetá. Um relato cru naturalista e realista da “boca do lixo” local, com seus proxenetas, suas prostitutas, frequentadores de bordéis, numa região também plena de atividades sindicais na qual existem referências à Coluna de Prestes e prisões de sindicalistas transferidos para um navio, onde são interrogados, torturados física e psicologicamente, dentro do quadro do Golpe instaurado em 1964. O próprio autor cita semelhanças no seu livro com o estilo de Jorge Amado, Plínio Marcos e o francês Jean Genet.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.