Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A informação e a filtragem, tempos assimétricos

É certo que os apelos da vida contemporânea passam, obrigatoriamente, pelos meios de difusão da informação. As sociedades do mundo estão, crescentemente e de modo irremediável, integradas em rede. Quanto ao fato em questão, não há (menos ainda, haverá) retrocesso. Ao contrário, a tendência é a inserção progressiva de bolsões ainda à margem. O processo em si não é bom nem ruim. É apenas um processo de irreversibilidade. O que está em jogo, portanto, é sabermos até que ponto os responsáveis por políticas de inserção acelerada (setores governamentais ou privados) estão cientes das metamorfoses subjetivas que se promovem no modo de viver dos cidadãos a partir do momento em que as inclusões são implementadas.

A compreensão mais acurada para a observação introdutória remete ao reconhecimento de um impasse de difícil solução, a saber: o espaço-tempo da oferta de emissões da informação é cada vez mais fracionado; o espaço-tempo da recepção para a devida absorção das informações é cada vez menos elástico. Em síntese, há profunda disparidade entre o tempo de emissão de informações e o tempo de recepção para a devida análise. O diagnóstico, principalmente focado nos mais jovens (geração cuja formação, desde a primeira infância, já se deu sob o regime das tecnologias da informação), não aponta para horizontes promissores. É perceptível, em segmentos geracionais mais novos, sobretudo na última década, preocupante defasagem quanto a articulações críticas que dependam da retenção de dados, processo indispensável para a solidez argumentativa.

Politizar não é ‘partidarizar’

Atualmente, a dificuldade de encaminhar um debate quanto a uma questão como a exposta até aqui reside numa visão estreita de quem ainda não compreendeu as fronteiras entre o que seja territorialidade da política e balneário da partidarização. Em especial, a realidade brasileira, já de algum tempo, padece desse lamentável equívoco. Discutir uma questão em amplitude política quer dizer a análise de um determinado tema, levando em conta o benefício da polis, ou seja, a ambiência societária na qual vive o cidadão. Contaminar, por outra, um debate com condimentos partidários significa submeter o enfoque do tema a um ‘estado de crença’ que tanto se presta para convicções substanciais quanto serve para abrigo de ‘seitas persecutórias’ que beiram, por vezes, a irracionalidade absoluta. Assim, num quadro no qual os dois papéis nem sempre estão devidamente definidos, é prudente, na proposta de um certo enfoque deixar claro um princípio: eu, cidadão, vivo numa dada sociedade e nela, independentemente da força partidária regente, torço que ela implemente um gerenciamento vitorioso. Em caso contrário, seria um imbecil.

Como alguém pode, em sã consciência, lutar pelo fracasso de um governo cujas conseqüências se tornem um agravante para as vicissitudes do próprio cidadão? A sensatez, pois, não pode estar subordinada a interesses menores, sob pena de penalizar o conjunto do corpo societário. Nenhuma nação conquistará autonomia se divorciada de um pacto em favor da emancipação majoritária de sua população, patrimônio inalienável. A propósito, foi deplorável a declaração do presidente da Philips, ao afirmar, recentemente, por conta do protesto ‘cansei’ que ‘se o Piauí não existisse ninguém sentiria a menor falta’. Frase tão lamentável quanto aquela da ministra (‘Relaxa e goza’). O problema, por conseguinte, não reside em preservar ‘a’ para aniquilar ‘b’. Vale recordar recente declaração prestada por Noam Chomsky à revista Cult:

‘O único modo de lidar com o fanatismo ideológico é ignorá-lo e concentrar a atenção em pessoas que têm a mente suficientemente aberta para dar importância a evidências e argumentos.’

Tecnologia x educação

Uma vez definido o olhar que dirige a presente reflexão, cabe retomar o fio da meada, qual seja, a relação entre a agilidade da tecnologia da informação e a incompatibilidade das retenção e reflexão da massa informativa. O aspecto que mais parece seduzir setores privados e governamentais no investimento em aparatos tecnológicos para difusão de informação e conhecimento encontra apoio no barateamento de custos. Aí reside o ponto crucial no qual a armadilha encontra terreno fértil.

Como tudo, em matéria de geração de saber, tem fatores complicadores, evitemos reduções. Deste modo, com a devida isenção, é perfeitamente crível o reconhecimento de que a tecnologia, principalmente de natureza audiovisual, se mostre de extrema eficácia para as áreas nas quais o conhecimento se destina a uma configuração predominantemente técnica.

A observação sinalizada no parágrafo anterior se destina a fixar uma distinção entre um novo suporte transmissor de saber que elevada contribuição possa dar às áreas biomédica e tecnológica e, na contrapartida, a ameaça que possa produzir radical deformação, a exemplo da área de humanidades. Uma aula audiovisual para ensinar uma técnica cirúrgica não equivale a uma outra na qual o propósito consiste em comunicar a amplitude do pensamento de um filósofo ou de um teórico.

Não se ter a percepção das implicações diferenciadas nas duas tipificações representa o referendo a um gravíssimo processo de abastardamento na formação de futuros profissionais. É preocupante observar da parte de setores intelectualizados um certo estado de aquiescência em torno desse tema. Ao que cabe a um intelectual promover bem servem, outra vez, as palavras de Noam Chomsky:

‘As pessoas são chamadas de ‘intelectuais’ se possuem um determinado grau de privilégio e decidem usar sua oportunidade na arena pública. É fato que o privilégio traz oportunidade, e é um truísmo moral que a oportunidade traga responsabilidade. Portanto, aqueles que são chamados de ‘intelectuais’ têm responsabilidades claras. Como são eles que escrevem a história, o papel histórico dos intelectuais parece muito atraente: corajosos, honrados, defensores da verdade e da justiça etc. A história real é um pouco diferente. O fundador da moderna teoria das relações internacionais, Hans Morgenthau, lamentou o que chamou de nossa ‘subserviência conformista aos que estão no poder’, referindo-se às classes intelectuais. A descrição dele tem um mérito considerável – agora e no passado. Há exceções, é claro, e muitas vezes sofreram por sua integridade – o quanto, depende da natureza da sociedade. Mas a responsabilidade permanece.’

A função da mídia

A título de arremate de um tema a merecer continuados desdobramentos, desejo apenas alertar que, a exemplo de intelectuais, a mídia igualmente trata a questão com descaso. A mídia é muito eficiente na divulgação de recém-chegados artefatos. Ela os exibe com galhardia e indisfarçada efusividade. É lamentável que a mesma mídia não reserve o mínimo espaço sequer para alertar o futuro usuário a respeito da contrapartida.

Cada vez mais produtos de tecnologia audiovisual em dimensões menores chegam às mãos de consumidores. Microtelas para jogos, informações e outras transmissões acompanham o cotidiano de jovens e crianças. Não há quem alerte contra sérios danos à visão. Quantos portadores de deficiência visual existirão nas duas próximas décadas? Não é apenas a exposição a raios ultravioleta que danifica as retinas. Também o uso continuado de telas (micro e macro) tem repercussões ameaçadoras.

Por fim, cabe assinalar que, no campo do conhecimento, principalmente na área crítico-argumentativa, tudo que se assimila em tempo acelerado celeremente também se desfaz. O resultado é um repertório desenraizado. Por sua vez, o usuário, para escapar da incômoda sensação de vacuidade subjetiva, retorna às máquinas para outro ‘abastecimento’. Assim, segue pela vida, considerando ter a posse de sempre mais, não se dando conta de estar sempre com menos. Não podemos, portanto, negligenciar o tratamento do tema, em nome de não termos de pagar um preço alto no futuro não muito distante. Encaremos o problema na sua instância política, mas desarmados de paixões partidarizadas.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)