Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Precisamos de uma Globo de sinal contrário?

Se as notícias se confirmarem, antes de outubro o governo federal deverá encaminhar ao Congresso Nacional uma Medida Provisória criando uma rede de televisão que será a cópia quase fiel do sistema privado de comunicação que conhecemos nos Brasil desde os anos 1960. Ou seja, vertical, centralizada, com programação majoritariamente não-local, na qual as afiliadas não passam de coadjuvantes.

As informações que nos chegam dizem que a cabeça-de-rede será a TV Brasil, parida das estruturas da estatal Radiobrás e da organização social Acerp, tendo de 40% a 60% de programação nacionalizada. Só o malabarismo jurídico envolvido na fusão das duas instituições deveria ser suficiente para fazer nossa elite decisória pisar no freio e perceber que não se cria uma rede de cima para baixo. Mas não é isso que vem ocorrendo. Diante desse quadro, resta-nos pouco tempo para fazer aqui uma pergunta: precisamos reproduzir mais do mesmo, apenas seduzidos pela promessa de que o conteúdo da rede pública será mais emancipador e civilizatório do que o vale-tudo testemunhado na TV comercial?

Retoricamente, o governo parece saber a resposta por exclusão. Basta fugir do que foi feito até aqui com as TVs privadas e estatais. Na prática, entretanto, está conduzindo o processo de modo a repetir o erro. Afinal, uma nova rede vertical é mais fácil de ser criada do que uma organização horizontal, o que podemos apelidar de uma ‘anti-rede’.

Recursos financeiros e concordância política dos participantes resolveriam a questão para as estações que irão se afiliar. Prova de que isso funciona é a permanência do modelo da Rede Globo, seguido de perto pelos demais sistemas comerciais que operam nacionalmente com a vinculação de dezenas de grupos regionais [é importante levar em consideração que a vasta penetração geográfica das redes privadas (90% das emissoras de TV são ligadas aos seis principais grupos) é fruto de um processo de articulação que tem como comissão de frente ganhos financeiros e apoio político local e nacional] e o apoio de aproximadamente 1,6 mil prefeituras, que mantêm mais de 3 mil retransmissoras de televisão pelo interior do Brasil. Em alguns casos, os contribuintes dos municípios pagam para que seja retransmitido o sinal de até cinco redes em sua localidade. As redes lucram, o morador paga.

No caso dos grupos privados, as vantagens oferecidas às afiliadas comerciais são participação na receita publicitária e poder político regional. Para os prefeitos, o retorno é principalmente eleitoral com alguma bonificação ao município para assegurar a fidelidade da retransmissora à programação da cabeça-de-rede. Em troca, os ‘sócios majoritários’ distribuem seu sinal em praticamente 100% do território nacional, o que garante anunciantes de peso e poder de formação de opinião em escala nacional. [O sistema privado atual foi estabelecido com o apoio da política de segurança nacional dos sucessivos governos militares. Seu auge foi o uso dos satélites brasileiros para a interligação das emissoras regionais com as cabeças-de-rede. Como demonstra farta literatura, a maior beneficiada com este processo foi a Rede Globo.] Em síntese, este é o modelo vigente no Brasil há quase 40 anos.

Berço público

As mensagens deste governo vão no sentido de que é preciso criar um modelo alternativo à lógica desumanizante do mercado. Quais seriam os bônus oferecidos aos futuros integrantes da chamada rede pública? Promete-se não fazer uma ‘TV chapa-branca’, estabelecer mecanismos de inserção de produção independente e de controle público, dar carona para os canais primos-pobres em seus multiplexes, financiar a migração digital e outros benefícios tentadores. O desenho na prancheta do comitê executivo formado para pensar a TV Brasil até sobrevoa esses pontos. Só que a timidez é tamanha, e os itens esquecidos são tantos, que as pretendidas horizontalidade estrutural e democracia organizacional se perdem já de saída.

Com boa vontade, benesses como essas podem até seduzir as emissoras universitárias, comunitárias e legislativas convidadas a se integrarem à iniciativa do governo e ávidas por ganharem as ondas hertzianas. Mas com as educativas, a maior parte delas atrelada à lógica dos governos estaduais e estabelecidas em sinal aberto há mais de duas décadas, a conversa é outra. Historicamente, a pouca disposição para a formação de redes verticais foi uma constante no seio das emissoras estaduais.

Quem tem memória (ou usa bem o Google) sabe que não é a primeira vez que se tira do papel uma iniciativa dessas no Brasil. A mais recente, na década de 1990, foi a Rede Pública de Televisão (RPTV). Um esforço louvável, mas morto prematuramente no momento em que algumas de suas proponentes resolveram hegemonizar a grade de programação impondo seu conteúdo majoritariamente no horário nobre. Uma prova cabal de que verticalidade e autoritarismo é um modelito que veste melhor no auto-intitulado moderno e democrático mercado. [Cálculos simples de se fazer analisando a programação das emissoras regionais revelam que a maioria das afiliadas das redes privadas não produz localmente mais do que 15% do conteúdo que distribui diariamente. Muitas emissoras educativas, como a TVE do Rio Grande do Sul e a TV Cultura de São Paulo, hoje produzem em casa mais de 30% da sua grade.] Não aprendendo com a história, o governo pretende começar uma rede pública partindo justamente dessa experiência malograda.

Mais curioso é que o governo implementará uma Globo de sinal contrário depois de ouvir a sociedade em um processo inédito de criação de um espaço público que articulou, ao longo de quase um ano, entidades representativas do chamado ‘campo público de televisão’. Faz isso depois de despender recursos e tempo para estudar os demais modelos existentes no mundo e sistematizar diversas contribuições, criando um produtivo e legítimo debate nacional jamais visto na história das comunicações da nossa jovem democracia. Faz isso tendo em seus quadros pessoas que sabem como funciona (ou deveria funcionar) uma televisão que não reproduza o modelo vigente no setor privado.

Quero crer que são justamente essas pessoas que continuam tentando reverter as idéias de um ministro neófito em políticas públicas de comunicação, ao qual foi dado um cheque em branco para conduzir o trabalho.

O presidente Lula dá seu aval persuadido por um mito que encanta a todos nós: o modelo BBC é o melhor do mundo e seria o mais adequado para uma rede de televisão brasileira voltada ao interesse público. Não tenho dúvidas que ele é eficiente e parece ser o melhor para o contexto da Europa. Por lá, os sistemas de comunicação eletrônica nasceram de forma majoritariamente pública, sustentados por taxas cobradas diretamente dos cidadãos e submetidos a gestões fiscalizadas por conselhos formados por representantes da sociedade. Mesmo assim, a entrada na competição de grupos privados pós-Tatcher, principalmente com os serviços pagos por satélite, mudou a situação.

Princípios norteadores

Desde o final da década de 1990, o modelo vem bebendo em outras fontes para se manter. Prova disso, é a compra de produções independentes que consigam neutralizar o interesse do público pelo conteúdo provocativo e iconoclasta dos canais comerciais; a instituição do Channel Four para a negociação com 300 produtoras independentes; e o questionamento sobre a cobrança da taxa que financia o sistema. E as constantes revisões da Royal Charter que criou a BBC com consultas públicas que procuram respostas principalmente para a questão do financiamento e da gestão.

Se ainda vale (com ressalvas) para a Europa, ouso sustentar que este não é o modelo para o Brasil. Por que não deixar Londres um pouco de lado e olhar para os Estados Unidos com menos preconceito? Desde 1969, lá funciona o Public Broadcasting Service (PBS). Valendo-se de um modelo organizacional que sugere uma ‘anti-rede’, o sistema público de televisão dos EUA conseguiu se estabelecer como uma verdadeira rede horizontal. Como não o vi explicado publicamente durante o processo de discussão, tomo a liberdade de trazer algumas informações. Não o defendo na íntegra, mas acho que existem bons caminhos, principalmente em termos de governança, accountability e financiamento.

Para começar, eles possuem um quadro de diretores integrado pelos dirigentes de diversas emissoras públicas norte-americanas dentro do total de associadas (são 26 diretores atualmente eleitos pelas 354 estações dos 50 estados). Suas reuniões são trimestrais e até bimestrais (o calendário é definido com antecedência e abrange dois anos). Alguns encontros são abertos ao público em geral. Um encontro anual reúne representantes de todas as estações associadas, além da diretoria profissionalizada.

Em um segundo nível de decisão, a administração fica a cargo de um grupo de 11 executivos profissionalizados. Reproduzo o quadro abaixo para demonstrar a amplitude do que eles entendem como uma rede pública:

** Presidente e CEO

** Executivo-chefe de Operações

** Executivo-chefe Financeiro e vice-presidente sênior (cuida também dos negócios da rede)

** Executivo-chefe de Conteúdo

** Executivo-chefe de Tecnologia

** Diretor de Serviços de Programação e vice-presidente sênior

** Executivo-chefe do Conselho Geral e Secretaria Corporativa (cuida dos departamentos Jurídico, Relações Comerciais e Relações Regulatórias e Legislativas) e vice-presidente sênior

** Executivo-chefe da PBS Kids e Mídias da Próxima Geração e vice-presidente sênior (cuida das áreas de conteúdo infantil e multiplataforma digital)

** Executivo-chefe de Programação de TV e vice-presidente sênior

** Vice-presidente sênior de Serviços Interativos

** Controller e assistente do tesouro (cuida da administração financeira e de investimentos da rede, além da auditoria interna)

Todas essas pessoas interagem em diversas comissões: executiva, finanças, serviços de emissoras, interconexão, governança corporativa e nomeações, auditoria, orçamento, força-tarefa de diversidade, indicadores de desempenho corporativo e outras comissões temporárias como a de revisão dos padrões editoriais. O interessante também são os princípios norteadores, a designação de papéis, responsabilidades e os padrões editoriais da rede. Leia mais clicando aqui.

Cultura massacrante

Creio que o principal diferencial da PBS é um ponto que os formuladores do governo falam pouco. A PBS não produz programação. Tudo é adquirido de suas estações associadas e de produtores independentes (nacionais ou internacionais). Depois de montado o pacote de programação, ele é distribuído às emissoras associadas. Este modelo, financiado por um fundo público mantido pela CPB, gera de tempos em tempos programas excepcionais que acabam internacionalmente distribuídos por seu grau de excelência. Um dos exemplos mais conhecidos é Sesame Street (Vila Sésamo). Produzido inicialmente pela televisão educativa nacional foi guindado para o horário nobre da PBS e depois ganhou o mundo (120 países e 30 versões nacionais).

É preciso entender que só teremos uma indústria audiovisual pujante quando ‘anti-redes’ no estilo PBS pipocarem pelo país, dando chance para que formatos inovadores e conteúdos experimentais tenham campo para crescer e multiplicar.

No início, uma rede com esse perfil será traço de audiência? Com certeza. A PBS tem quase 40 anos e mesmo assim luta contra a maré de operar uma rede com finalidades públicas num ambiente de uma cultura audiovisual massacrante. Mas temos que começar em algum momento. Do contrário, continuaremos lutando pelo conteúdo nacional (basicamente o da Globo) e remetermos a busca por conteúdos nacionais para um futuro mais que imperfeito. Para fazer isso, definitivamente o sistema privado brasileiro não é referência.

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Jornalista, coordenador de projetos do Epcom – Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação – e membro eleito do Conselho Deliberativo da Fundação Cultural Piratini Rádio e Televisão, mantenedora da TVE-RS e da Rádio FM Cultura