Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Autonomia em risco na nova TV pública

Quando o governo federal anunciou a intenção de construir uma rede pública de televisão, setores da sociedade logo se preocuparam em definir as diferenças fundamentais entre emissoras públicas e estatais.


Para ser de fato pública, a nova TV deveria ter gestão independente do governo, financiamento não contingenciável e uma programação que refletisse a diversidade da sociedade brasileira. Não cumpridas essas premissas, a nova instituição acabaria por se constituir como uma TV estatal ou governamental, mas não uma TV pública.


A apreensão de que tais princípios não fossem respeitados não nos impediu de apoiar a iniciativa. Afinal, é evidente a necessidade de instituir no país um autêntico sistema público de comunicação, autônomo e independente dos governos e do mercado.


Historicamente, o setor comercial de rádio e TV tem se mostrado incapaz de garantir o debate plural sobre as questões centrais para o Brasil. São inúmeros -e permanentes- os exemplos em que os interesses particulares dos donos da mídia se impõem ao interesse público, com resultados desastrosos para a democracia.


Conselho de ‘personalidades’


A polêmica ‘público X estatal’ parecia ter sido dirimida com a realização do 1º Fórum Nacional de TVs Públicas, em maio deste ano, quando governo, emissoras do campo público e organizações da sociedade civil assinaram a Carta de Brasília, documento que estabelecia diretrizes para a nova TV pública: deveria ser independente em relação ao governo federal, com autonomia para estabelecer sua programação e gerenciar seus recursos.


O conselho gestor da TV Brasil, explicitava o documento, deveria ser representativo da sociedade e, em sua composição, o governo não deveria ter maioria. Buscava-se, assim, afastar o risco de a emissora se tornar braço político do Executivo federal, qualquer que seja seu ocupante.


Nos últimos meses, prevaleceu a convicção de que o governo cumpriria o compromisso assumido e daria efetividade aos princípios pactuados.


De fato, alguns princípios parecem estar se concretizando. Será um avanço se o governo realmente adotar um modelo de rede horizontal e descentralizado. Também é positivo o incentivo à autonomia das emissoras estaduais em relação aos governos locais.


Entretanto, o que parecia consolidado -o caráter público da nova instituição- está sob risco. A proposta atual do governo contraria os princípios da Carta de Brasília ao estabelecer mecanismos de gestão vinculados direta e exclusivamente ao Executivo federal. Pela proposta, tanto o conselho gestor da TV (responsável por zelar pelas finalidades públicas da instituição) quanto a presidência da nova emissora seriam indicados pelo presidente da República, sem nenhuma necessidade de aprovação por órgão independente.


Ora, com um conselho de ‘personalidades’ indicado pelo presidente, a TV perde sua autonomia e independência, com ameaça a seu caráter público. Não é a mera existência de um órgão gestor que confere à emissora esse caráter público. É preciso que ele seja plural e representativo, preservando a independência da instituição em relação ao governo. Além disso, é a própria sociedade quem deve escolher os seus representantes.


Ousadia e coragem


A idéia de um governo que indica, em nome da sociedade, quem a representa é paternalista e antidemocrática, independentemente de quem sejam esses indicados.


Alega o ministro Franklin Martins (Comunicação Social) que representantes de instituições no conselho gestor da emissora tendem a defender interesses corporativos. A preocupação com a possível contaminação da instituição por interesses particulares é legítima, mas a solução proposta é a pior possível.


É certo que não deve haver no conselho vagas fixas para nenhuma instituição. O desafio é estabelecer mecanismos democráticos e participativos de indicação, seja por conferência, seja por eleição direta.


Esse modelo já é utilizado -e bem-sucedido- em estruturas como o Conselho Nacional de Saúde e o Conselho das Cidades que, embora tenham atribuições distintas daquelas do conselho de gestão da nova TV pública, também têm a missão de representar o conjunto da sociedade.


A ousadia e a coragem que o governo teve ao propor a criação de uma nova rede de televisão devem permanecer na escolha de seu modelo de gestão. Neste momento de definições, é imprescindível zelar pelo caráter efetivamente público da futura instituição, para que nenhum governo, a qualquer tempo, possa utilizá-la como um instrumento político. Que assim seja, para o bem da ainda incipiente democracia brasileira.


 


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Respectivamente, graduado em comunicação social pela Escola de Comunicações e Artes da USP e mestrando em direitos humanos pela Faculdade de Direito da USP; egraduado em comunicação social pela Escola de Comunicações e Artes da USP e mestre em políticas de comunicação pela London School of Economics and Political Science (Inglaterra); ambos são coordenadores do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social