Quando se trata de misturar ingredientes como sexo, fama, poder e política em um coquetel explosivo, o modo de objetivação jornalística dos acontecimentos se desvencilha da retórica da precisão e troca o rumo da qualidade pelo atalho do coração. No caso do chefe de Estado francês e da cantora, ex-modelo, os jornais em geral, de raiz burguesa, foram extremamente precisos. Mas em relação à fórmula do espetáculo e suas estratégias de midiatização das emoções que se exercem, como disse o sociólogo espanhol José Vidal-Beneyto, ‘sobre a política, reduzida à conquista e gestão do poder’, a confinaram ‘aos escritórios dos profissionais de marketing e de comando’. (El País, 5/1/2008, p. 12).
Nicholas Sarkozy chegou ao Cairo com Carla Bruni, a bordo de um jato particular do empresário e amigo, o industrial Vincent Bolloré, proprietário do canal Direct 8 e acionista dos jornais Direct Soir e Matin Plus e da agência AP, entre outras empresas, que já o havia presenteado com uma viagem de iate a Malta, após a vitória nas eleições presidenciais de maio passado.
Durante a visita às pirâmides de Queóps, Quéfren e Miquerinos, o casal foi amplamente iluminado. Na foto mais interessante, publicada no dia 31 de dezembro, os dois corpos ocuparam um pequeno espaço em que não existia distância entre eles, nem diferença entre ambos e em que o gigantesco monumento duplica a borda da cena e determina o ligeiro movimento inclinado dos corpos. A cena parece ter sido habilmente montada para jogar com imagens arcanas que se replicam automaticamente em nossa mente e atualizá-las nos elementos visíveis que Sarkozy e Bruni deixaram para trás: no momento do registro, a dupla mantém a mirada fixa, exatamente na direção oposta a nossa, que nos distraímos com a beleza do conjunto. O que a dupla contempla – e se vê que faz isso com muita intensidade – é algo que só poderíamos ver se o fotógrafo fosse outro e estivesse voltado justamente para o lado oculto da representação.
Espaços do comum
Seguindo por essa pequena abertura que a imagem permite, vemos que a nós, espectadores que fixamos o olhar na dupla, se apresenta o que já conhecemos. É neste sentido que o campo da política dá ao jornalismo pequenas porções daquilo que se alinha à agenda midiática e está no gosto geral – sensações e migalhas de intimidade – e este produz, em troca, novos relatos de histórias arcanas, com muito pouca narrativa e embaladas em espetáculo.
A vida cotidiana, graças a essa produção da vida arquitetada por diferentes atores e levada a cabo pelos jornais, ficará para um segundo plano. Assim, mesmo acusado, com razão, de manipular a mídia e encobrir com ruído midiático suas encrencas políticas, Sarkozy aparecerá radiante ante os leitores após o anúncio do divórcio de Cécilia e as humilhações que lhe infligiu o presidente líbio, Muammar Gaddafi, durante sua absurda estada parisiense.
Marine Le Pen, a vice-presidente da Frente Nacional, de extrema-direita, criticou de maneira muito rápida, adiantando-se a outras formações políticas, as práticas de marketing e ficcionalização das emoções que embalaram o romance. Não passa de ‘um conto de Natal barato, uma cortina de fumaça para fazer esquecer os verdadeiros problemas do país’, disse ela. De fato, esse exibicionismo enjoativo e rosa, que coloca no primeiro plano a dimensão afetiva, desvia o interesse das dificuldades políticas com as quais já se enfrenta o atual primeiro governante francês. Certamente, o mesmo romance que humaniza um fiel e ferrenho defensor do Leviatã maquia outras histórias bem menos açucaradas.
Os sentidos de proximidade e compreensão que produz, bem como os efeitos que nos apresenta, incidem sobre o coadjuvante de uma dita política de civilização, cuja retórica de revitalizar e transformar a vida social e política francesa ao ritmo de golpes de efeito (como a nomeação de oponentes políticos, cenários cuidadosamente montados para a libertação de jornalistas e a tripulação do avião detidos no Sudão,…), ofusca uma política neoconservadora que, em consonância com os interesses do mercado e o realinhamento internacional do Estado francês, recorre abertamente ao agravamento e à penalização das tensões e conflitos sociais, como mostra exemplarmente o tratamento dado a setores populares que habitam nas periferias urbanas, mais particularmente aos mais jovens entre eles.
Vidal-Beneyto, convidando-nos a exercer continuamente uma atitude crítica, acredita que os elementos exógenos que se parasitaram na política, multiplicaram a corrupção e privaram os seus líderes de toda responsabilidade pelo exemplo. Ao mesmo tempo e de maneira paradoxal, essas práticas reforçaram o prestígio dos políticos entre os poderosos, pela sua indiscutível eficácia de obter resultados positivos.
Nesse sentido parecem refletir o que ocorreu na Espanha a partir de meados dos anos 1980, quando os governos socialistas promoveram a contaminação do privado na vida política espanhola. Durante aqueles anos, o fenômeno que agora parece emergir na França, anunciava um desdobramento do social-liberalismo que, além de confundir a vida privada com a pública, transformava em objeto de privatização econômica cada vez mais espaços do comum e do enorme bolo estatal.
Assunto privado
Nos anos 1990 e primeiros anos do novo século, os governos conservadores estenderam e aprofundaram as privatizações, alçando conhecidos personagens vinculados a sua formação política ao comando de grandes empresas privadas que tiveram origem em anteriores privatizações.
O romântico romance configura igualmente uma manifestação de uma época marcada pelo escrutínio permanente e pormenorizado das vidas dos atores e cada vez mais dos atores políticos. A exibição do relacionamento afetivo entre um governante e uma artista permitiu que na França se tratasse midiaticamente um político da mesma forma com que são tratados cantores e outras stars do mundo e das indústrias culturais, exibindo Sarkozy com um certo prazer arrevistalhado das fofocas infames, muitas vezes promocionais, sobre celebridades instantâneas. Assistimos, portanto, a um espetáculo que consuma uma nova redução da débil democracia representativa.
O romance entre o presidente e a cantora começou no dia 3 de novembro do ano passado, duas semanas depois da separação de Sarkozy, quando ele recebeu uma comissão formada por artistas e gente do mundo dos espetáculos que havia feito um relatório sobre pirataria na internet, entre os quais se encontrava Bruni. No início de dezembro, o publicitário Jacques Séguéla ofereceu em sua casa um jantar para editores, escritores, jornalistas, Nicolas e Carla.
Sarkozy, 52, se divorciou em outubro da mulher, Cécilia. Seu namoro com a italiana Bruni, 39, o manteve em foco mesmo no fim do ano, época em que os sindicatos estão quietos na França e os líderes dos países ricos não costumam marcar reuniões de cúpula.
Os franceses reagiram com um desdém invejável a tanto barulho. Em pesquisa recente, 89% dos entrevistados opinaram que o romance entre Sarkozy e Bruni é assunto privado. Em outras palavras, o recado parece ser o seguinte: os políticos podem dedicar parte de seu tempo a cultivar intensamente suas relações amorosas, dentro e fora do casamento; o importante é saber não confundir o público com o privado e pessoal, não diluir as coisas do Estado nos affaires pessoais.
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Respectivamente, jornalista, professora e pesquisadora da Unisinos; e sociólogo, professor da Universidad Autónoma de Barcelona