Continua o ‘empenho’ do Brasil na sua disputa pelo troféu de país mais violento e corrupto do mundo. Qual poderia ser a contribuição da mídia brasileira para se alcançar esse objetivo? De muitas maneiras isso pode ocorrer. Aliás, considerando que vivemos na era da comunicação e da informação (Manuel Castells), jamais o Brasil conseguirá o título anunciado sem a concorrência da mídia.
Vejamos o ‘ótimo exemplo’ que foi dado pela TV Globo na primeira semana de 2008. Quanto isso interfere na formação da personalidade das crianças? A criança que vê violência na TV será um adulto violento? Nos países avançados, tudo isso está sendo discutido diuturnamente: fala-se em ‘código deontológico’, respeito à ética, legislação dura, controle estatal etc. Nos países exóticos, parece que tudo está sendo feito para se conquistar o troféu citado. Vejamos o caso do Brasil.
A mais importante novela da TV Globo neste momento (Duas Caras), que é vista por milhões de pessoas, caiu no Ibope. Entrou na área de risco (35 pontos). Era preciso aumentar o índice, tendo em vista a concorrência, os anúncios, as receitas da empresa etc. Duas Caras é de autoria de Aguinaldo Silva, que havia prometido não mais fazer novelas com violência e tráfico de drogas, no estilo Tropa de Elite. A pontuação subiu rapidamente. Qual é a fórmula? Violência. A novela bateu com isso novo recorde: 41 pontos. Como? Mostrando violência e tráfico de drogas na invasão de uma favela.
Experiências agressivas
No seu folhetim, como relata Keila Jimenez (O Estado de S. Paulo, 05/01/08, p. D7), Aguinaldo chegou a criticar produções como Cidade de Deus e a novela da Record Vidas Opostas por mostrarem muita violência e muitas cenas com armas na favela. Parece até que viraram ‘roteiro’ para a Globo! Aliás, é trilhando por esse caminho que o Brasil vai chegar à premiação ‘tão almejada’. Mas nada de preconceito contra a Globo. A Record e o SBT, dentre outras, fazem a mesma coisa. Aliás, o SBT agora deliberou exibir pancadaria violenta (lutas livres das ligas norte-americanas, golpes mortais, sangue etc.) no período da tarde, que é o horário em que as crianças mais vêem televisão. Como se vê, tudo é feito da maneira ‘mais correta’ imaginável.
Em sua resenha sobre o livro Handbook of Children and Media, uma extensa coletânea de artigos sobre a relação da Criança com as Mídias, de Dorothy Singer e Jerome Singer (org.), Gilka Girardello analisou os seguintes aspectos, dentre outros (veja no Google ‘mídia e criança’):
a) a relação das mídias com os medos, ansiedades e percepções de perigo das crianças, discutida por Joanne Cantor no capítulo 10. A autora conclui que, de acordo com o somatório das pesquisas recentes, os conteúdos das mídias podem, sim, ter efeitos prejudiciais consideráveis sobre o bem-estar emocional das crianças. Ela lista as implicações disso para pais e educadores, e aponta a necessidade de medidas institucionais mais fortes para a proteção das crianças quanto aos efeitos adversos das mídias;
b) os efeitos da violência televisiva sobre a agressividade das crianças, que é o tema do capítulo 11, escrito por Brad Bushman e L. Rowell Huesmann. Para eles, a violência nas mídias não é a razão central da agressividade e da violência social, nem mesmo sua causa mais importante. Eles afirmam, porém, que ‘as evidências cumulativas de pesquisa revelam que a violência nas mídias é um dos fatores que contribui significativamente para a agressividade e a violência em nossa sociedade’ (223-4);
No capítulo 12, Jo Groebel relata um estudo realizado pela Unesco sobre a violência nas mídias de uma perspectiva transcultural, a partir de um questionário proposto a 5 mil crianças de 12 anos de idade, em 23 países. O objetivo do estudo era identificar possíveis diferenças culturais, assim como a influência de diferentes experiências agressivas no ambiente real (guerra e criminalidade) e de diferentes ambientes midiáticos, sobre a relação entre as mídias e a violência.
Avante, Brasil!
Dentre as muitas e importantes conclusões deste estudo, o mais amplo feito até agora internacionalmente sobre o tema, destacam-se:
a)
91% das crianças da amostra tinham acesso a um aparelho de TV – a televisão é ainda a fonte de informação e entretenimento mais importante para as crianças de todo o mundo, se desconsiderarmos a interação face-a-face;b)
as crianças de todo o mundo passam em média três horas por dia diante da TV;c)
quando solicitadas a indicar o nome de um adulto exemplar, a maioria das crianças (26%) citou heróis de filme de ação, seguidos por astros pop e músicos (18,5%) – cerca de 90% das crianças disseram acreditar em (um) deus;d)
o maior desejo de 40% das crianças era ter uma família (…) estável;e)
cerca de um terço das crianças entrevistadas vivia em contextos sociais problemáticos e com altos índices de agressividade – cerca de um terço das crianças que viviam nesses ambientes disse acreditar que a maioria das pessoas no mundo é má (em comparação com pouco mais de um quinto das crianças das áreas menos violentas);f)
um efeito unidirecional entre as mídias e a violência ‘real’ não pôde ser determinado em nível global, nem poderia ser testado empiricamente – mas o estudo focalizou o papel das mídias ‘no complexo sistema da cultura e das experiências pessoais’ (p. 265). As crianças das áreas mais violentas relataram uma maior semelhança entre sua realidade e o que vêem na televisão;g)
um herói tipicamente transcultural é O Exterminador, vivido por Arnold Schwarzenegger e, a julgar pela amostragem da pesquisa, conhecido por cerca de 88% das crianças de todo o mundo. Das crianças em contextos violentos, 51% gostariam de ser como ele; nos contextos menos violentos, apenas 37% gostariam de ser como ele.Em suma, concluem os autores, ‘combinada com a violência real que muitas crianças experimentam, existe uma alta probabilidade de que orientações agressivas e não pacifistas estejam sendo promovidas. Mas mesmo em contextos de baixa agressividade o conteúdo violento das mídias é apresentado em um modelo que o valoriza. Apesar de as crianças lidarem de formas diferentes com esse contexto em diferentes culturas, a presença transcultural do problema reflete o fato de que a agressão é interpretada como uma boa solução para os problemas em diversas situações’ (p.267).
Para concluir: como é ‘interessante’ ver a ‘sagacidade’ da mídia brasileira se retro-alimentando para explorar a violência, a criminalidade e o grotesco. Se a lógica midiática é a da dramatização da violência e do crime, quando se faz a premiação dos melhores trabalhos do ano claro que será algo dessa área que vai vencer.
Vejamos o exemplo do 7º Prêmio Estado de 2007, que constitui ‘uma mostra da qualidade da produção editorial do jornal’ (O Estado de S. Paulo, 29/12/07, p. A16). Reportagem Especial: ganhou a que cuidou do ‘Golpe nas vítimas da Gol’. Segundo lugar: ‘Invasão no Complexo do Alemão’. O caderno ‘Metrópole’ levou o primeiro lugar na categoria Edição com a cobertura da ‘Tragédia da Cratera do Metrô’, em São Paulo. Na categoria Fotografia, três trabalhos foram premiados: ‘Seqüestradores em Ação’ (‘bandidos’ [sic] disfarçados de polícia tentavam seqüestrar um empresário), a ex-diretora da Anac fumando charuto durante uma festa ocorrida no período mais agudo do caos aéreo brasileiro e a ‘Na mira’ (foto do governador do estado de São Paulo apontando um rifle). Como se vê, também a mídia vem ‘contribuindo’ decisivamente para o Brasil se converter no país mais violento e mais corrupto do mundo. Avante, Brasil!
******
Doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP