O presidente argentino Néstor Kirchner tem pouca sorte com dólares clandestinos escondidos em malas e sacolas. Mais azar ainda depois que os dois casos acabaram virando o prato principal das reportagens de Jorge Lanata, um inquieto repórter/comentarista que ganhou fama no jornalismo investigativo argentino no diário Página 12, virou personagem no jornal Perfil e agora vai partir para um vôo solo.
Lanata foi a estrela principal do Perfil na investigação do escândalo da descoberta, em junho passado, de uma sacola com 60 mil dólares cash no banheiro privativo da ministra da Economia, Felisa Miceli. O episódio, que acabou conhecido como ‘banheirogate’, provocou a renúncia da ministra, um mês depois.
No primeiro sábado de agosto, uma mala contendo 790 mil dólares foi apreendida no aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, trazida por um venezuelano que viajava de carona num jatinho fretado por assessores do todo-poderoso ministro do Planejamento, Julio De Vido. Novo prato-feito para o Perfil e para Jorge Lanata, que transformaram a investigação jornalística na marca registrada do jornal. E mais dores de cabeça para Kirchner, cuja mulher é candidata favorita às eleições presidenciais de outubro próximo.
A reportagem de Jorge Lanata sobre o escândalo da mala de Ezeiza foi a última que publicou no Perfil. No sábado, 18 de agosto, ele pediu demissão para preparar o lançamento de um novo jornal que circulará em março do ano que vem. A única coisa certa sobre a mais nova aventura do ‘Gordo’ (seu apelido nas redações) é que ela terá como alvo predileto a senhora Cristina Fernandez de Kirchner, 54 anos, caso seja eleita.
Nesta entrevista, feita por e-mail, Jorge Lanata contou para o Observatório da Imprensa o que pensa sobre o jornalismo investigativo e sobre a corrupção na Argentina.
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A sucessão de denúncias de corrupção entre altos funcionários do governo de Néstor Kirchner é uma prova de que a imprensa da Argentina está mais vigilante ou que a corrupção é mais intensa hoje do que no passado?
Jorge Lanata – A divulgação de um volume maior de denúncias de corrupção nem sempre tem a ver com as estatísticas, mas, às vezes, com as condições em que estas denúncias são publicadas. O governo Kirchner está perdendo poder e apoio há vários meses e isto facilita a imprensa, que até o momento estava calada e que agora se mostra mais ativa. A administração Kirchner cooptou, durante os últimos anos, grande parte da imprensa por meio de regalias como o aumento da publicidade estatal, produzindo um ‘namoro’ que agora começou a entrar em crise. Ao mesmo tempo, a intensificação de conflitos internos no próprio governo permite o surgimento de um maior número de informações e dados, graças a denúncias de uns tentando prejudicar a outros.
Qual ou quais dos seguintes elementos considera que mais influenciaram a decisão da imprensa argentina de colocar o governo Kirchner sob a lupa? Repórteres e editores mais capacitados para o jornalismo investigativo? Busca de manchetes mais chamativas para enfrentar a concorrência? Interesses político-eleitorais dos jornais? Algum outro motivo?
J. L. – Em alguns veículos há uma disposição de satisfazer as demandas do mercado na hora de publicar alguma investigação. Quando fundamos o jornal Pagina 12, em 1987, a investigação, que estava fora de moda desde os anos 1960, voltou a entrar em foco. Os grandes jornais tiveram que dar mais conteúdo às notícias (que não podiam publicar porque iam contra seus interesses) desenvolvendo uma formula similar, que passaram a chamar de ‘jornalismo independente’ – o que é uma tautologia, porque o jornalismo é sempre independente, caso contrário é publicidade, é panfleto político. A diferença entre eles (os grandes jornais argentinos) e nós (a redação do Página 12) na hora de investigar é que nós sempre achávamos ministros com problemas, enquanto eles se limitavam a sub-secretários ou funcionários ainda menos graduados.
Muitos dos escândalos que sacudiram a opinião pública do seu país resultaram de denúncias feitas por funcionários públicos. Isto geralmente é uma conseqüência de interesses pessoais contrariados, uma espécie de vingança. O senhor concorda com este enfoque? E se concorda, por que há tanta desunião entre funcionários públicos?
J. L. – As fontes das denúncias são muito diversas, desde o rapaz encarregado de fazer uma fotocópia de documento e que faz duas para nos entregar, até funcionários da própria Presidência, interessados em prejudicar colegas. Uma informação nunca é inocente, quem a fornece tem alguma razão para tal. Mas que atitude devo tomar? Perguntando-me quem me está passando a informação, por que e se ela é correta? A resposta a esta pergunta tem, inclusive, um viés generacional. Nos anos 1970, em geral, nós nos preocupávamos, primeiro, em descobrir quem era o responsável pela informação e que interesses estavam por trás dela, o que nos transformava numa espécie de vanguarda protetora da consciência dos leitores. Nos anos 1980, passou a ser mais importante investigar se a informação era verdadeira e, em caso positivo, publicá-la. Pessoalmente creio que a informação tem um valor revolucionário, mas também é uma catarse.
Entre todas as denúncias envolvendo altos funcionários do governo Kirchner, qual delas provocou maiores danos à imagem pública do presidente e seu projeto político?
J. L. – Desculpe se menciono um caso pessoal, mas creio que a denúncia envolvendo a descoberta de uma bolsa com dinheiro no gabinete da ministra da Economia teve um alto custo político para o governo.Eu escrevi a reportagem que foi capa do Perfil.
O Brasil vive um processo similar ao da Argentina em matéria de denúncias envolvendo funcionários do governo federal. O senhor acredita que é uma mera coincidência ou há um processo comum em marcha? O fato de que ambos os países sejam governados por presidentes apoiados pela esquerda é um fator importante neste processo?
J. L. – Acredito que ver toda a América Latina como uma região caminhando para a esquerda é um erro, ou pelo menos uma visão apressada. [Michele] Bachelet, no Chile, não é a mesma coisa que Tabaré [Vazquez], no Uruguai, nem muito menos [o presidente venezuelano Hugo] Chávez ou Rafael Correa [do Equador] ou Evo [Morales, da Bolívia]. No caso de Kirchner, acredito que ele está enredado em seu próprio discurso político: fala desde uma suposta posição de centro-esquerda, mas governa a partir de uma direita, mais segura. Evo Morales, por seu lado, encarna um projeto verdadeiramente insólito de governo indigenista, num país à beira da secessão, enquanto Correa e Chávez se propõem a governar a partir da esquerda, mas adotam atitudes cada vez mais autoritárias. Na comparação entre Brasil e Argentina, me parece que devemos levar em conta também grandes diferenças entre as respectivas burguesias locais.
Qual foi o papel do público argentino na investigação dos escândalos e denúncias de corrupção governamental? Assistiu passivamente ou colaborou com as investigações, fornecendo novos indícios ou provas?
J. L. – Depende de cada caso e dos jornalistas autores das denúncias. Mas, de maneira geral, não existe entre o grande público uma preocupação com as instituições. A maioria da população ainda prefere os que ‘roubam, mas fazem’.
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Jornalista, editor do blog Código Aberto