O que sobrou do Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT) – a Lei 4.117, de 27 de agosto de 1962 – completou 45 anos na segunda feira (27/8). Velho e desatualizado, ele ainda é – por incrível que possa parecer – a principal norma legal da radiodifusão brasileira, levando-se em conta, sobretudo, que a Lei Geral de Telecomunicações (a Lei 9.472/1997) retirou dele toda a parte referente às telecomunicações [ver ‘De volta para o futuro, 45 anos depois‘]. Aliás, na pressa da privatização das telecomunicações e na contramão do que ocorre no resto do mundo, a Emenda Constitucional 08 de 1995 já havia separado a radiodifusão das telecomunicações.
O CBT, na verdade, é o símbolo perfeito da regulação – ou da ausência dela – no setor de radiodifusão. Sua elaboração e aprovação no Congresso Nacional marcam a fundação da Abert – Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão –, que até hoje é a principal representante dos interesses dos empresários de radiodifusão. A maioria desses empresários apoiou o golpe de Estado que, apenas um ano e meio depois da aprovação do CBT, destituiu do poder o presidente João Goulart, responsável por 52 vetos à Lei 4.117, todos posteriormente derrubados no Congresso Nacional, numa inédita demonstração de força da radiodifusão privada no país.
Os artigos cujos vetos foram revogados determinaram, dentre outros, os prazos de 15 e 10 anos para as concessões de televisão e rádio, respectivamente, e o deferimento da prorrogação da concessão se o órgão competente não se pronunciasse em 120 dias. Mais importante, todavia, são as omissões do CBT em relação aos limites da propriedade e à propriedade cruzada dos meios. Essas omissões são as principais responsáveis pela concentração da propriedade da mídia entre nós.
Coronelismo eletrônico
Na verdade, a única limitação existente à propriedade dos meios de comunicação – e, mesmo assim, ignorada – foi introduzida cinco anos depois no CBT em modificação feita pelo Decreto 236/1967. Em seu artigo 12, o decreto reza que:
‘Cada entidade só poderá ter concessão ou permissão para executar serviço de radiodifusão, em todo o País, dentro dos seguintes limites: (…)
I – estações radiodifusoras de som:
locais: ondas médias, 4; freqüência modulada, 6; regionais: ondas médias, 3; ondas tropicais, 3 (sendo no máximo 2 por estado); nacionais: ondas médias, 2; ondas curtas, 2;
II – estações radiodifusoras de som e imagem – 10 (dez) em todo o território nacional, sendo no máximo 5 (cinco) em VHF e 2 (duas) por estado; (…)
Essas limitações, no entanto, se tornam inócuas porque, contrariamente a toda evidência, o Ministério das Comunicações considera ‘entidade’ como significando ‘pessoa física’ e, ademais, não leva em conta o parentesco.
Por outro lado, não existe no CBT qualquer restrição à propriedade cruzada dos meios, isto é, à possibilidade de um mesmo grupo empresarial controlar, num mesmo mercado, emissoras de rádio (AM e/ou FM) e televisão (aberta ou paga).
Ademais, não é clara no CBT a restrição àqueles que estiverem em gozo de imunidade parlamentar para ser concessionários de rádio e/ou televisão. O Parágrafo Único do Artigo 38 determina que o parlamentar não possa exercer a função de diretor ou gerente de empresa concessionária. Apesar da Constituição de 1988 também proibir que deputados e senadores mantenham contratos ou exerçam cargos, função ou emprego remunerado em empresas concessionárias de serviço público (letras a. e b. do item I do Artigo 54), é de conhecimento público o fenômeno do coronelismo eletrônico que historicamente tem caracterizado o vínculo de oligarquias políticas regionais e locais com a radiodifusão no Brasil.
Marco regulatório
O resultado de tudo isso foi a formação e consolidação histórica de um sistema de mídia que tem, desde as suas origens, a propriedade cruzada e o vínculo político como uma de suas principais características.
Os exemplos mais significativos, claro, são os dois maiores conglomerados de comunicações já formados no país: os Diários Associados, dominantes durante boa parte do século passado, e as Organizações Globo, hegemônicos dos anos 70 até os nossos dias. Esses grupos cresceram e se consolidaram através da propriedade cruzada e de afiliações regionais com oligarquias políticas, em diferentes estados da federação.
Dessa forma, a lição histórica que os 45 anos do CBT nos deixa é a reafirmação da necessidade inadiável de um marco regulatório para as comunicações no Brasil que substitua esse superado diploma legal. Fundado no direito à comunicação e considerando a convergência tecnológica – que dissolve as fronteiras entre as telecomunicações, a comunicação de massa e a informática – esse marco regulatório deve assegurar a pluralidade, a diversidade e o localismo nas comunicações e ter como horizonte o interesse público.
Não há outro caminho para a consolidação da nossa democracia.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007