Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Falar brasileiro, escrever português

A certa altura da famosa rapsódia de Mário de Andrade, seu Macunaíma menciona a existência de duas línguas utilizadas paralelamente no país: o brasileiro falado e o português escrito. Lá se vão quase oitenta anos desde a publicação das peripécias do herói sem nenhum caráter e a distorção apontada por ele permanece intacta como um dos mais graves instrumentos de preconceito e segregação social.

Como no Brasil tudo muda apenas para permanecer como sempre foi, está para entrar em vigor, no início do ano que vem, mais uma reforma ortográfica de nossa língua, a quarta em menos de cem anos. A justificativa desta vez é a unificação da escrita em oito países que falam ‘português’.

Tramada por diplomatas no âmbito de uma insignificante organização denominada Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a reforma que nos será impingida desconsidera alguns aspectos fundamentais: falamos uma língua estruturalmente diferente do idioma dos portugueses; mais de 80% dos falantes chamados ‘lusófonos’ vivem no Brasil; nos países africanos e asiáticos que têm o português como língua oficial, somente uma diminuta elite realmente o conhece e o emprega; o quinto idioma mais falado no mundo é este utilizado diariamente por cerca de 200 milhões de brasileiros. Nessas circunstâncias, reformar nossa ortografia para ajustá-la à língua de nações extremamente distintas da nossa soa como uma inaceitável capitulação cultural, ainda mais pelo fato de tal reforma servir muito mais a interesses portugueses.

Tolices colossais

Já no início do século passado, o filólogo e historiador João Ribeiro escrevia estas palavras atualíssimas: ‘A nossa gramática não pode ser inteiramente a mesma dos portugueses. As diferenciações regionais reclamam estilo e método diversos. A verdade é que, corrigindo-nos, estamos de fato a mutilar idéias e sentimentos que nos são pessoais. Já não é a língua que apuramos, é o nosso espírito que sujeitamos a servilismo inexplicável. Falar diferentemente não é falar errado. A fisionomia dos filhos não é a aberração teratológica da fisionomia paterna. Na linguagem, como na natureza, não há igualdades absolutas; não há, pois, expressões diferentes que não correspondam também a idéias ou a sentimentos diferentes. Trocar um vocábulo, uma inflexão nossa, por outra de Coimbra, é alterar o valor de ambos a preço de uniformidades artificiosas e enganadoras.’

Há alguns anos temos assistido a uma invasão dos meios de comunicação por professores de português apresentando programinhas normativistas nos quais os usos lingüísticos caracteristicamente brasileiros são vilipendiados. Tais ‘mestres’, que parecem jamais ter tido aulas de Lingüística em seus cursos de Letras, preconizam como única vertente válida uma língua inexistente, virtual, com muitas doses de arcaísmo, lusismo e beletrismo. O problema é que essa língua por eles preconizada – jamais falada em lugar algum – tem sido um dos mais eficientes instrumentos de separação e distinção de classes no Brasil, um dos principais suportes da manutenção de nosso status quo e sua iniqüidade recorde. Ela é produto de uma ideologia lingüística que desqualifica a cultura popular e os falares de determinadas regiões do país em nome do prestígio de um único modo de viver e de uma única visão de mundo. Daí ouvirmos com freqüência, em geral por parte de quem não tem voz em nossa sociedade, tolices colossais do tipo ‘Português é muito difícil’, ‘Não sei português’, ‘Não entendi o que ele disse, mas como falou bonito!’

‘Sentimento íntimo’

Essa reforma ortográfica, como tantas coisas no Brasil, se fará de forma autoritária, elitista e colonizada. Seria interessante se pensar numa reforma ortográfica que nos permitisse escrever como brasileiros, que aproximasse a escrita dos usos efetivos língua brasileira, levando em especial consideração sua sintaxe e sua fonética, rompendo definitivamente com o idioma dos portugueses – que tem uma destinação histórica distinta e sustenta uma cultura muito diversa da nossa.

Outro aspecto nunca mencionado nas políticas lingüísticas é o da qualidade do ensino. Enquanto a escola pública permanecer esse lixo que conhecemos, enquanto seus currículos continuarem teóricos demais, distanciados da realidade do país e alheios à diversidade que caracteriza a sociedade contemporânea, enquanto os professores continuarem ensinando esse ‘português’ virtual, o ensino da língua fracassará.

Esta quarta reforma ortográfica em cerca de noventa anos vem aí para nos infernizar a vida, desatualizar da noite para o dia nosso patrimônio escrito, espalhar ainda mais confusão nesse pindorama onde a comunicação entre as pessoas já vai tão mal.

Dá para se prever que, dentro de mais algumas décadas, lá virão os burocratas reformar a ortografia mais uma vez. Obviamente o povo mal escolarizado, os adolescentes interneteiros e os jovens criadores de modas lingüísticas continuarão escrevendo fora de qualquer padrão imposto por lei, mas conforme sua intuição de como se fazer entender apropriadamente. E os escritores que verdadeiramente vão além do ‘instinto de nacionalidade’, possuindo ‘sentimento íntimo’ do país e estilo próprio, continuarão transbordando os limites da ortografia do ‘português’.

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Professor, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, Divinópolis, MG