Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Valores democráticos dos mais instruídos

Este texto refere-se à reportagem do Jornal Nacional quinta-feira (20/8/2007) sobre o livro A cabeça do brasileiro, de Alberto Carlos Almeida. No sítio do JN, temos a seguinte chamada: ‘Os dados da Universidade Federal Fluminense desfazem a associação negativa entre elite e privilégios e mostram que os mais instruídos têm os valores mais democráticos’ (disponível aqui).

Afirmar que a elite tem os valores mais democráticos é, no mínimo, problemático. Apesar da pouca idade, lembro-me bem de quem estava nas ruas na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em março de 1964, apoiando a deposição do presidente Goulart, democraticamente eleito. Se for escrever sobre os vários momentos na história do Brasil onde a elite econômica e/ou aqueles com maior escolaridade apoiaram medidas antidemocráticas, precisaria, certamente, de um livro.

Ainda no sítio do JN, encontro a seguinte tabela que faz parte do livro:

Concordam com a frase: ‘Se alguém é eleito para um cargo público, deve usá-lo em benefício próprio.’

Analfabetos

40%

Até a 4ª série

31%

Da 5ª à 8ª série

17%

Ensino médio

5%

Superior

3%

O discurso e a prática

Em uma interpretação completamente despropositada, afirma-se, tendo por base a tabela acima,que aqueles com nível superior são mais honestos que os analfabetos. Então, como explicamos a corrupção neste país? Se aqueles com nível superior são os mais honestos não precisamos nos preocupar, uma vez que os cargos públicos exigem, em sua quase totalidade, no mínimo ensino médio completo, enquanto aqueles cargos mais estratégicos, como as diretorias dos órgãos públicos, são ocupados, em grande parte, por pessoas que passaram pelos bancos das faculdades.

O que todos aqueles com um mínimo de conhecimento na área de pesquisa em ciências humanas sabem, ou deveriam saber, é que uma coisa é o que os agentes dizem e outra, o que fazem. Em outras palavras, uma coisa é o dito; outra, o feito. Não há como separar estes dois aspectos sob risco de obter informações incompletas e em muitos casos equivocadas, sobretudo quando o que se quer investigar são comportamentos.

Não podemos interpretar discursos como se eles fossem o mesmo que práticas. É possível, analiticamente, separá-los no momento da pesquisa.

Ingenuidade intelectual

Desta maneira, o que vemos é um discurso de democracia, de honestidade, de tolerância etc. que carece de evidências para se sustentar como prática de democracia, de honestidade, de tolerância. Aqueles que responderam à pesquisa podem realmente acreditar que a democracia é superior à ditadura, que a tortura é abominável, que a corrupção é deprimente. Agora, minha experiência mostra que estas pessoas que têm maior escolaridade são aquelas que estão em maior número envolvidas em casos de corrupção, tanto como corruptoras quanto como corrompidas.

Mino Carta com sua precisão e clareza peculiar, ao comentar a pesquisa afirma:

‘A acuidade da pesquisa é, no mínimo, discutível. Resta verificar até que ponto os analfabetos entenderam as perguntas e os letrados se esmeraram na hipocrisia. Enfim, queijo de Parma sobre o macarrão: o cidadão branco é mais inteligente, honesto e educado do que o negro e o pardo. O negro é mais malandro, o pardo o menos preguiçoso, mas tem acentuada tendência para o crime.’ (Mino Carta, disponível aqui.)

Deste modo, afirmar que aqueles que têm maior escolaridade são mais democráticos, tolerantes, honestos etc. porque dizem que são é, no mínimo, uma ingenuidade intelectual.

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Antropólogo, mestrando em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA