Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A demonização na narrativa jornalística

Sartre, em suas considerações sobre o racismo, aborda o maniqueísmo como uma mascaração profunda pelo Mal. A pergunta que fazemos é: se aquele é o mal, onde estará o bem? Alguém estará preocupado em encontrá-lo?

Muitas vezes, a mídia, representada pelo debate entre jornalistas de opiniões divergentes, na tentativa de personificar o mal no oponente pratica uma sucessão de manipulações que não faz os discursos, absolutamente, serem a representação do bem. A demonização do adversário, através de palavras chulas e representações depreciativas, corrobora o pensamento de Sartre – ‘o maniqueísmo mascara uma atração profunda pelo Mal’.

O emprego intermitente, na crítica ao discurso do adversário político, de um palavreado chocante, extensivo até a altas autoridades da República, faz-nos parecer que o direito à falta de educação, permitido nos comentários, é estendido aos jornalistas e os transforma em torcedores e chefes de torcida, sendo que a análise do fato, para esclarecer pessoas, a notícia em si, torna-se irrelevante.

A utilização de expedientes, como na divulgação de eventos, com o uso da imagem, tentando atrair um determinado contingente, que, identificado em pesquisa, teima em não se conduzir para o suposto lado do bem, ou por convicção ou por desconhecimento, também é uma forma maniqueísta de atrair o mal.

Uma guerra literal

Cada lado constrói o outro lado da forma mais demoníaca possível. O que transforma os dois lados em defensores do mal, ou seja, repetindo Sartre: ‘O maniqueísmo mascara uma atração profunda pelo Mal.’

Não é comum a defesa através de atuações propositivas, ou seja, apresentar sempre uma alternativa benigna contra o lado dito como maligno.

No caso dos opositores, personagens midiáticos, que têm acesso a qualquer forma de apresentação de suas idéias, dentro de uma embalagem pré-concebida pelas mídias, a troca de argumentos se dá não pela defesa ou ataque, por exemplo, de programas bem-sucedidos ou mal-sucedidos, mas de uma forma agressiva, como se as contestações fossem bombas a serem lançadas ao outro lado.

É uma guerra na sua forma literal.

O valor da notícia

Os atores envolvidos no processo jornalístico não só apresentam o fato. Nas abordagens dos assuntos preferem a entonação monocórdia, muitas vezes a ironia facial, como se estivessem vestindo, naquele momento, o manto da castidade incontestável.

A função jornalística permite a performance teatral? A mídia pode teatralizar? Apontar o errado, o irresponsável, por si só deveria ser o suficiente. A necessidade de se conduzir o telespectador, o leitor, o ouvinte, prova uma não-convicção e uma não-certeza de que para a sociedade aquilo que se comenta possa ser considerado um crime.

O risco da mídia – o grande risco – está no fato de ser desacreditada se a interferência do locutor, a ironia do articulista, for levada em consideração na análise da notícia. Se o ator não for bom, ou se for pego em alguma impropriedade, a seriedade do fato se desvanece diante da má performance.

Pequenos detalhes, como a leve expressão de subir as sobrancelhas, um olhar ou o riso irônico, a utilização de algum bordão, a perpetuação de um mesmo palavreado classificatório para definir mensagens diferentes, correm o risco de plastificar a crítica, e ser um amontoado de palavras.

A notícia corre o risco de cair em descrédito e estar ao sabor da interpretação. E, em existindo uma relação de empatia entre emitente e receptor, o valor da notícia se perde. A simpatia pode levar à inusitada situação de o personagem ser maior do que a peça apresentada. Por outro lado, a antipatia pode levar uma notícia ao descrédito.

‘Chamou, sim’

No artigo de 23/08/07, com título ‘Lula e os vagabundos’, Reinaldo Azevedo, na Veja on-line, reproduz:

Sobre um discurso feito pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para trabalhadoras rurais

‘Mais importante ainda é o seguinte: se alguém disser para vocês, em qualquer lugar do mundo, que nós vamos mexer no direito dos aposentados brasileiros ou da mulher trabalhadora rural, vocês podem saber, sem olhar na cara, que quem está falando é mentiroso. Porque eu tenho consciência de que, muitas vezes, uma mulher trabalhadora rural ou um trabalhador rural que precisa, para cumprir a lei, prestar informação com documentos, tenho clareza de que o trabalhador urbano tem que contar o tempo de serviço, mas eu penso sempre o seguinte: se a gente quiser ver a cara de quem trabalha no campo, de sol a sol, a gente não precisa de documento. Do vagabundo, a gente precisa do documento, impressão digital e outras coisas mais. Mas, do povo trabalhador, que trabalha de sol a sol, a gente olha a cor da pele, a gente olha a grossura da mão e a gente sabe que aquela pessoa é trabalhadora e, por isso, os trabalhadores não irão perder os seus direitos.’

Na análise do jornalista Reynaldo Azevedo no Veja On-line, artigo datado de 23/08/2007, acerca de o presidente ter chamado os trabalhadores urbanos de vagabundos:

Voltei

É, chamou, sim. Se, sendo benevolente com ele, não dá para dizer que chamou todos os aposentados urbanos de vagabundos (ainda acho que a intenção foi essa), afirmou, com certeza absoluta, que todos os vagabundos pertencem ao grupo dos trabalhadores urbanos.’

‘Uma frase infeliz’

A respeito de Paulo Zottolo e o movimento ‘Cansei’, do mesmo articulista.

No artigo de 22/08/07, com o título ‘O Piauí é aqui’:

‘Nesta terça-feira, empresários do Piauí decidiram realizar um boicote aos produtos da marca Philips em protesto à declaração de Zottolo. O grupo Claudino, que tem mais de 300 lojas de departamentos em dez Estados e era o quinto maior comprador da Philips no Brasil, mandou suspender negócios com a empresa e retirar todos os produtos das lojas. Um dos diretores do grupo, João Claudino Júnior, disse que recebeu ligações do executivo da Philips pedindo para reconsiderar, mas não desistiu da idéia.’

‘Voltei

O pseudo-regionalismo nordestino (já falo dele) se juntou ao esquerdismo de salão da grande imprensa de São Paulo e do Rio para criar uma ‘causa’. Nunca tantos defenderam o Piauí por tão pouco – ou melhor, por nada. Estão usando uma frase sem dúvida infeliz, já afirmei isso, para tentar transformá-la numa espécie de síntese dos que se opõem ao governo Lula.’

O raciocínio de infelicidade em uma afirmativa toma uma forma tênue quando o personagem analisado é alguém que defende uma determinada forma de pensar. Ao mesmo tempo, a infelicidade da palavra não é admitida ao presidente, que falara de improviso.

A Philips e o racismo

Com oportunidade, aproveitamos a fala do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, no BNDES, em 11 de maio de 1998, e que foi aproveitada como manchete pelos jornais com a afirmativa corrente até hoje de que chamara os aposentados de vagabundos.

‘O valor médio dos benefícios da Previdência Social cresceu e tem que ser mantido. Para isto, é preciso fazer a reforma, para que aqueles que se locupletam da Previdência não se locupletem mais, não se aposentem com menos de 50 anos, não sejam vagabundos num país de pobres e miseráveis.’

Sobre a mesma afirmativa do Sr. Paulo Zottolo sobre o Piauí, feita por Paulo Henrique Amorim.

‘O Piauí é o nordeste’

‘O presidente da Philips do Brasil, Paulo Zottolo, um dos líderes do movimento ‘Cansei’, disse ao jornal Valor: ‘Se o Piauí deixar de existir ninguém vai ficar chateado’.

Diante dessa manifestação explícita de racismo, o ‘Conversa Afiada’ acaba de encaminhar o seguinte e-mail à presidência da Philips mundial: ‘Does Philips consider itself a blatant racist corporation?’

O meu amigo Fernando Lyra, pernambucano, ministro da Justiça escolhido por Tancredo Neves, leu nesta manhã de sábado, dia 18, o noticiário sobre o ‘Cansei’. Me ligou para dizer o seguinte: ‘Para o presidente da Philips, o Piauí é o Nordeste.’

Num almoço muito divertido, Fernando Lyra lembra que há pouco tempo o presidente da Philips era Marcos Magalhães, um nordestino de Pernambuco, da mais alta competência empresarial e sensibilidade social.’

Melhorar a discussão

Evidentemente que a narrativa demonizada é explícita em defender uma determinada posição política. Ela, infelizmente, esconde a análise do assunto, visando a municiar o leitor de informações que possam contribuir para formar uma opinião.

Reinaldo Azevedo comenta uma estatística sobre o Bolsa-família:

O que significam os números do IBGE sobre o Bolsa-Família?

Os dados comprovam, primeiro, que o foco do Bolsa-Família é bom, melhor que os programas de transferência de renda tradicionais, mesmo os que foram criados depois da Constituição de 1988. Mas, além disso, indicam também que se trata de um programa que não tem capacidade de transformar a vida dos pobres. Esse é o desafio maior que os organizadores do programa enfrentam. Como afirmei em um recente estudo a respeito, o problema é que, uma vez interrompido o programa, a sua clientela volta ao status marginalizado original.

Programas compensatórios não constroem por si portas de saída da pobreza: é preciso projetá-las, para que os pobres as abram.’

Faltaram as soluções para as portas de saída, que, realmente, são os pontos preocupantes do sistema. Em alguns momentos, no entanto, o bom jornalismo aparece mesmo em pessoas que atacam ou defendem uma determinada situação política. Falta-lhes, entretanto, a colaboração de idéias, isso, sim, uma decisão séria para melhorar a discussão do país.

Contabilizaram um débito

Recentemente, no movimento chamado ‘Cansei’, em São Paulo, utilizaram-se os organizadores de duas imagens. A primeira de um negro, devidamente escolhido pela sua idade, um conservador, a expressão de insatisfação através de uma imagem séria.

A escolha do ser humano como avalista de um movimento social corre o risco de definir o movimento pelo outro lado.

Senão vejamos. Sartre, em suas Considerações sobre o racismo, escreve: ‘A utilização do negro assume uma dubiedade, ao mesmo tempo em que passa uma não discriminação é discriminatório.’

Ao se apossar da figura de um negro, portanto, utilizando a suposta figura adversária, o movimento ‘Cansei’ caiu em uma armadilha maniqueísta, que não permite uma defesa consistente.

Sendo considerado um movimento elitista e, portanto, coisas de pessoas brancas – no que rapidamente os opositores se apressaram em não identificar pessoas negras no movimento –, o ‘Cansei’ quis demonstrar que seus integrantes não tinham a discriminação.

E a armadilha funcionou, pois utilizaram uma imagem de quem os opositores não acham que possa representar o movimento, o símbolo da exclusão, do não beneficiário dos progressos sociais. Ao mesmo tempo, apostaram que a imagem atrairia simpatias, o que prova que estavam em um lado definido – e incorporaram o feito, contabilizando um débito.

Um objeto ideológico

Ou seja, para provar que não eram discriminatórios, apresentaram um suposto discriminado. Do mesmo jeito, a armadilha funcionaria se apresentassem o lado oposto: um branco. A armadilha funcionaria também se apresentassem um casal. Quem seria o negro? A mulher? Quem seria? Um homem? E se fossem dois homens, ou duas mulheres, quem seria quem?

Maniqueísmo na mídia, ou na divulgação, exacerba sentimentos, transforma o normal em algo potencialmente explosivo.

Outro panfleto do movimento mostra quatro personagens televisivos. A credibilidade de qualquer movimento não pode passar pelo atestado de personagens. É fácil separar o personagem do autor? A simbiose entre os dois ajuda ou prejudica?

O patrulhamento é algo inevitável. O Mal personificado pelos dois lados tenderá sempre a demonizar um e outro, o que coloca em risco o personagem e, por conseguinte, o autor. A seriedade supostamente colocada abusa do cromatismo, sendo que o cromatismo em preto pressupõe a indignação. O rosto de seriedade propõe uma demonização ao discurso oponente.

O outro lado tende a ridicularizar as posturas, tendo em vista que sendo pessoas que usam sua própria imagem para ganhar dinheiro, estariam emprestando as mesmas com um interesse obscuro, já que não são pessoas anônimas.

Portanto, mal e bem são pontos de vista de um mesmo objeto ideologicamente montado pela mídia. Logo, segundo Guimarães Rosa, Deus colocou o mal no mundo para que os homens conhecessem o bem. No final da história, a mídia não está conseguindo enxergá-lo, apesar de praticar o mal com bastante acuidade.

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Aposentado, pós-graduado em Estudos Literários, Juiz de Fora, MG