Marta Suplicy foi apenas o pivô do mais temerário ataque à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) perpetrado até hoje. Essa lei é uma das mais importantes inovações políticas desde a Constituição de 1988. Impôs a prefeitos e governadores uma disciplina financeira que nunca havia existido. Limitou os governantes, fortaleceu governo e Estado como instituições permanentes e ampliou os meios de controle democrático do poder.
Para proteger política e juridicamente a ex-prefeita de São Paulo, o governo federal abriu uma brecha nessa legislação. Para conter os protestos, aliviou a situação de prefeitos e governadores, ampliando os limites do gasto até 2016. Este é o resumo da história, que poderá desdobrar-se num amplo estrago financeiro, econômico e político, se não houver um rápido serviço de reparo e de prevenção.
Pena que a dimensão do fato, nos primeiros dias, tenha sido transmitida mais claramente em editoriais e colunas do que nas páginas do noticiário. Pauteiros, repórteres e editores, com algumas exceções, deram mais importância à figura de Helena do que à Guerra de Tróia.
A primeira notícia, assinada por José Ribamar, foi um furo do Estado de S.Paulo, publicada em manchete na terça-feira (15/3). O ministro da Fazenda, Antônio Palocci, informara ao Senado que Marta Suplicy havia descumprido uma resolução da casa e violado a lei fiscal. A Prefeitura de São Paulo havia negociado com a Eletropaulo, em fevereiro de 2004, um aditivo a um contrato de crédito celebrado em outubro de 2002. O contrato era legal, mas faltou pedir autorização do Ministério da Fazenda para o aditivo.
Divulgada a informação, o secretário do Tesouro Nacional, Joaquim Levy, contou à imprensa o detalhe que faltava: no dia 27 de janeiro, um mês depois do ofício de Palocci ao Senado, o governo editara a Medida Provisória 237 para regularizar a situação da Prefeitura de São Paulo e de várias outras. Segundo o secretário, havia uns 20 municípios na mesma condição. Uma contagem mais cuidadosa indicou apenas seis, além de São Paulo.
Brecha na lei
Não era preciso ter um olfato de sommelier para perceber o que havia ocorrido. Na exposição de motivos da MP, assinada pelos ministros Dilma Roussef, de Minas e Energia, e Antônio Palocci, havia uma estranha defesa do Reluz, o programa de iluminação objeto dos contratos. Era no mínimo estranho deixar esse tipo de investimento fora das normas fiscais. Se esse critério fosse ampliado – e por que não? – a disciplina orçamentária ficaria restrita ao gasto com cafezinho – se ninguém decidisse criar um incentivo à cafeicultura nacional. Quem acreditaria que o ministro da Fazenda entrasse numa jogada como essa por sua iniciativa?
Mas isso não era tudo. O secretário do Tesouro anunciou também que estados e municípios com endividamento acima do admitido só terão de se enquadrar em 2016. Até lá poderão receber as transferências voluntárias da União. Ficarão proibidos apenas de contratar novos empréstimos.
Com essas novidades a história mudou. Havia algo muito mais grave que a violação da regra fiscal pela prefeita Marta Suplicy. A solução seria aplicar o corretivo legal, talvez com o sacrifício de uma carreira política. Dessa forma seria preservada uma lei de excepcional importância. O governo, além disso, manteria coerência com o discurso de austeridade que o presidente recita desde antes da posse.
Na edição de quarta-feira, o Estadão matou a charada num editorial intitulado ‘Afrouxamento fiscal’. O Globo foi ao alvo, na primeira página, com a chamada ‘Ajuda de Lula a Marta põe lei fiscal em risco’. O Valor foi menos interpretativo na manchete – ‘Tesouro suaviza o ajuste de dívida de estado e prefeitura’ – mas bateu no ponto, ao citar o economista José Roberto Afonso, que descreveu a iniciativa do governo como ‘um estímulo à irresponsabilidade de governadores e prefeitos’. Segundo ele, deixar o acerto do endividamento para 2016 ‘é o inverso do que se perseguiu com a LRF’.
A Gazeta Mercantil tratou o assunto com discrição e boas maneiras, sem acentuar sua importância política. O noticiário do Estadão continuou a sair no caderno ‘Metrópole’, mesmo depois da entrevista de Joaquim Levy. O foco era a salvação de Marta pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não a brecha que se havia aberto numa das leis políticas mais inovadoras. Na sexta-feira (18/3), Claudia Safatle deu uma bela arredondada no assunto, em sua coluna semanal no Valor.
Os tolos
Os meios de comunicação ofereceram, nesse caso, três tipos de cobertura. O mais amplo foi voltado para o alcance potencial das medidas adotadas pelo governo. As piores conseqüências dessas medidas poderão até não ocorrer por causa do barulho feito por alguns jornais. Esse barulho também produz fatos.
O segundo tipo valorizou o motivo imediato das manobras de Lula e de seus auxiliares: salvar de uma grande encrenca uma das figuras mais visíveis do PT, a ex-prefeita Marta Suplicy. O grande risco de avacalhação da lei fiscal ficou em segundo plano.
O terceiro, o da Gazeta Mercantil, foi o mais frio. Mostrou simplesmente que o governo federal criou condições favoráveis a alguns prefeitos e alguns governadores. Deu pouco ou nenhum peso ao sentido político da LRF.
Haverá defensores para os três tipos de cobertura. É cedo, dirão alguns, para antecipar as conseqüências mais graves da ação do governo. Pode ser, mas outros dirão que o que se espera do jornal, especialmente diante da competição dos meios eletrônicos, é um pouco mais de perspectiva no material publicado.
Como seria a reportagem de Homero, se ele tivesse escrito a Ilíada no calor da hora? No poema conhecido, relato de uma história distante, Helena é apenas o pivô de um enorme drama. Páris, seu amante, é um garotão dourado e irresponsável, minúsculo diante dos chefes e dos heróis envolvidos na guerra. Se houvesse um mínimo de acordo entre os deuses, o livro poderia terminar no terceiro canto, no duelo entre Páris e Menelau. Mas Páris é salvo por Afrodite e vai para a cama, com Helena. No canto seguinte, Hera convence o supremo Zeus a mandar Atena ao campo de batalha para fazer os troianos romper seu juramento. A guerra prossegue.
Nesse relato, os pivôs são apenas pivôs. Na cobertura imediata dos primeiros lances do conflito, haveria preocupação com o risco enorme que se estava assumindo? Heródoto talvez tivesse esse cuidado. No primeiro livro de sua História, ele chama de tolo quem guerreia por mulher, especialmente quando ela se deixa raptar.
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Jornalista