Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Marco regulatório contra o arbítrio

Os pareceres da Advocacia Geral da União (ver em www.agu.gov.br, no link ‘Pareceres’) se constituem em acervo rico de história do Brasil e de conhecimento jurídico.

Um parecer, de 9 de novembro de 1945, prova a importância do acervo da AGU e reclama uma reflexão importante sobre o artigo ‘Memória da gestação do Código Brasileiro de Telecomunicações‘, de Octavio Penna Pieranti e Paulo Emílio Matos Martins, publicado neste Observatório.

Na discussão do tema, os articulistas Pieranti e Martins transmitem ao leitor a mensagem clara, repetida ao longo do texto e na conclusão:

‘Juntos, empresariado e parte do Congresso Nacional (seja os primeiros representados no segundo, seja o inverso) constituem entrave considerável à possível (e nem sempre freqüente) oposição do Poder Executivo. Decisões, em contextos democráticos, do Presidente da República que contrariem esses interesses dificilmente encontram respaldo e apoio decisivo no Congresso Nacional.’

Num resumo, dizem que o Congresso optou pelos empresários, ao derrubar vetos do presidente da República que davam ao próprio presidente poderes arbitrários sobre o destino de cada concessão ou permissão de radiodifusão.

Divisão dos interesses

A apresentação do tema e sua discussão, no referido artigo, incidem num erro que tem sido comum nos estudos e debates acerca da regulação das comunicações no Brasil. O erro está em dividir a cena entre três atores, como que personagens de uma história infantil: dois atores ‘do mal’ (como dizem as crianças), quais sejam os empresários da comunicação e os políticos; e um ator ‘do bem’, a sociedade civil (o que inclui os indivíduos, o chamado povo, tanto quanto qualquer organização que seja contra os dois atores ‘do mal’).

Essa divisão dos interesses envolvidos é simplória porque:

1. Desconhece as importantes desavenças dentro dos dois blocos ‘do mal’: tanto a classe política, quanto a classe empresarial, têm interesses divergentes:

** Dentre os políticos, além da óbvia divisão entre situação e oposição, há a divisão entre correntes políticas e estas divisões são tão importantes que a unanimidade em torno de determinadas pautas ligadas às comunicações são de alcance impossível.

** Dentre os empresários, a divergência é tão acachapante que soa bisonho precisar descrever as divergências de interesses entre empresários de mídia escrita e de eletrônica, entre rádio e televisão, entre redes monopolistas e redes menores, entre emissoras religiosas e emissoras comerciais e entre estas e as educativas, entre produtores, distribuidores, fabricantes e empresários nacionais e estrangeiros.

2. Desconhece importantes desavenças entre os dois blocos ‘do mal’: políticos e veículos de comunicação vivem às rusgas e as histórias de veículos de comunicação fechados, lacrados, calados por autoridades, são recorrentes. Perseguições menos óbvias, como as que se relacionam ao congelamento de investimento publicitário governamental, em detrimento de certos veículos de comunicação, também são recorrentes.

3. Desconhece as diferenças de visão dentro mesmo do lado ‘do bem’: o povo quer tanta coisa da comunicação, provavelmente quer muito do que os mais sofisticados estudos acadêmicos repelem e criticam. Mas a sociedade civil tem discutido o tema? Tem visões sobre a comunicação e a importância de regulá-la de um modo ou de outro? Quais são essas visões? Em ‘Memória da gestação do Código Brasileiro de Telecomunicações’, Pieranti e Martins desconhecem a existência da sociedade civil e do povo, bem como de seus reclamos.

Os vetos de João Goulart

O debate sobre as comunicações segue, portanto, pobre. A pesquisa dos vetos ao Código Brasileiro de Telecomunicações, tema importante, continua a ser uma pesquisa por fazer.

E, neste debate, qual a importância do acervo de pareceres da AGU? É grande. Estes pareceres contam histórias de conflitos entre o Estado e os particulares, seja no uso do espectro de radiofreqüências, seja no exercício da liberdade de pensamento e expressão, seja no regime jurídico das concessões, autorizações e permissões de radiodifusão, entre tantos outros temas.

Mas, especificamente, um parecer precisa ser lido para que se compreenda como Pieranti e Martins erram, na leitura que nos oferecem da derrubada dos vetos de Goulart ao Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4117/62). O Parecer 94/0, do ilustre Themístocles Cavalcanti, então consultor-geral da República, discute a renovação, ou não renovação, da concessão outorgada, em 1937, à Rádio Farroupilha, para operar a partir de Porto Alegre (RS). O parecer responde a consulta verbal (não usual na administração pública) do ministro da Justiça ante ‘reclamações havidas’ contra o ato do governo, que considerou perempta a concessão. Seja por responder a ‘reclamações’, seja pela solicitação verbal, seja pela velocidade de sua elaboração (um dia), seja pela autoria do próprio consultor-geral, claro está que o tema era importante.

Quem ganharia com o ‘arbítrio’?

O que se discutia era a legalidade (ou ilegalidade) da decisão do governo de interromper a atividade de uma emissora de rádio (então, o veículo de comunicação de maior poder): o radiodifusor tinha direito assegurado à continuidade de sua atividade? Se não tivesse, a quem caberia decidir pelo fim da concessão?

A resposta do parecerista é clara: o governo deu, o governo tira. Por ato unilateral e lastreado numa alegação genérica de interesse público, o governo decreta a morte do empreendimento radiodifusor. Diz Themístocles Cavalcanti: ‘(…) nos termos daquele contrato tinha o Governo (sic) a faculdade de renovar ou não a concessão, a seu juízo usando de um arbítrio que encontra seu apoio na lei (…)’.

Ora, esta conclusão é de estarrecer! Dar ao presidente o poder de vida e morte sobre emissoras de rádio e de televisão significa torná-las reféns do bom humor presidencial. Derrubar esse poder do Executivo significava prestigiar a democracia, o equilíbrio entre os Poderes e ainda colocar o Estado a serviço do homem, e não o contrário.

Lido esse parecer, datado de 1945, resta clara a importância do debate em torno dos vetos do presidente da República à Lei 4117/62. E esse debate não envolve apenas o presidente e os empresários; na verdade, envolve a sociedade brasileira. A pergunta que Pieranti e Martins não fizeram (e que os estudos existentes sobre a história deste Código Brasileiro de Telecomunicações não deram conta de responder) é: com o ‘arbítrio’ (cf. o citado Themístocles Cavalcanti) do presidente da República, quem ganharia? A sociedade ganharia? A classe política ganharia? Os empresários ganhariam?

Fatores políticos, econômicos e sociais

A resposta que proponho é: ninguém ganha com o arbítrio do presidente da República, salvo o próprio presidente. Limitar o poder do presidente da República e, portanto, derrubar os vetos de João Goulart, era uma missão de enorme importância, não apenas para os empresários de radiodifusão. Limitar o arbítrio dizia (e diz!) respeito ao interesse do Brasil, aí incluídos os empresários, a classe política e a sociedade brasileira.

A confusão que se tem estabelecido, entre interesses empresariais e a evolução legislativa, parece levar alguns estudiosos à conclusão de que o Estado deva ter mais poderes, como se Estado truculento fosse sinônimo de Democracia, ou de regulação eficiente.

Ora, se a derrubada dos vetos de João Goulart, pelo Congresso Nacional, representou limitar os poderes arbitrários do presidente da República, então os estudos que identifiquem nessa derrubada uma guerra apenas do presidente com os empresários de radiodifusão serão estudos de pouca ou nenhuma utilidade para contribuir na futura revisão do marco regulatório das comunicações no Brasil. Estudos que não capturem a importância de limitar o arbítrio, estudos que não capturem a importância da longevidade do investimento – nos serviços que sejam intensivos de capital (como é o caso da radiodifusão) – repetirão visões estreitas que não iluminam o caminho por onde as comunicações deverão trilhar.

As comunicações e sua regulação sofrem influências de fatores políticos de múltiplos matizes, econômicos de diversas origens, e sociais de fontes multifacetadas. Com esta visão e com a ambição de dominar essa complexidade é que os estudiosos devem se debruçar sobre o tema. No limiar de um novo marco legislativo sobre as comunicações do Brasil, uma abordagem mais ampla – que contemple o papel dos Poderes da República, o papel dos donos da tecnologia, dos produtores de conteúdos, dos distribuidores de conteúdos, dos usuários e dos cidadãos – é imprescindível.

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Advogado, São Paulo, SP