Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Tenho medo de unanimidades que vemos na mídia’

‘Um quarto calabrês, um quarto veneto e 50% `quatrocentão´’, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo pretende imprimir à TV pública brasileira o que já parece experimentar: a pluralidade. Hoje filiado ao PPS, Belluzzo é amigo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do governador José Serra. A convite de Lula, deverá assumir a presidência do conselho curador da nova TV pública. Belluzzo, 65, terá entre suas tarefas a de mitigar a tensão entre a imprensa e o governo federal.


Segundo Belluzzo, Lula está ‘assustado’ com esse acirramento. ‘Ele acha que tem que criar um espaço público que distensione isso. Ele é muito conciliador.’ Ex-secretário dos governos Sarney e Quércia (SP), Belluzzo alerta para os riscos da ‘demonização’: ‘A mídia é isso, a mídia é aquilo. Esse tipo de reação, eu não gosto. Tenho medo. Assim como tenho medo de certas unanimidades que vemos na mídia’, criticou.


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Por que não aceitou ser presidente executivo da TV pública?


Luiz Gonzaga Belluzzo – Não quero mais aceitar um cargo público que receba uma remuneração do governo. Disse a eles que aceitava ser presidente do conselho, se eleito, que me comprometia com o projeto, desde que não remunerado.


Por quê?


L.G.B. – Cabe aos profissionais do setor. O papel do conselho é traçar as diretrizes e fiscalizar a execução do projeto de se criar uma TV não estatal, apartidária, plural e, desculpe ser um pouco pedante, mas que sobretudo permita que pouco a pouco o cidadão seja capaz de compreender o mundo onde vive. Precisamos de muita modéstia na formulação. E, paradoxalmente, ambição para não permitir que seja transformado num instrumento de poder como invariavelmente tendem a se transformar as televisões, ou as televisões estatais que não respeitam esses princípios.


Como evitar?


L.G.B. – Primeiro, o conselho tem que ser muito amplo, plural. Nenhum ponto de vista pode ser excluído. Uma TV pública tem que dar abrigo a todos os pontos de vista.


A que atribui o convite?


L.G.B. – Estranho que tenha sido a um economista. Acho que foi por conta dessa minha percepção de que é preciso que se dê curso ao debate mesmo que as idéias contrárias não sejam do seu agrado. Pode parecer simplório. Mas não é fácil.


Como o sr. enxerga a decisão do PT de ‘acompanhar’ as renovações de concessões de TVs?


L.G.B. – Isso é um problema do PT. O PT tem todo direito de pensar como ele pensa. Só que a TV pública não pode se submeter a esse tipo de coisa. Não se pode politizar uma TV pública.


O sr. considera isso um ‘problema’ do PT?


L.G.B. – Não. Há muitos grupos dos EUA que se preocupam com isso. No livro ‘The Assault of Reason’ (O ataque à razão), o Al Gore, que não é um perigoso esquerdista, faz uma análise de como o poder da mídia causou problemas sérios na decisão do povo americano de apoiar ou não a guerra no Iraque. A mídia insistiu na questão das armas de destruição em massa. Se há movimentos unânimes, não é bom para a democracia.


No Brasil, há esse risco?


L.G.B. – Às vezes, há certas ondas de unanimidade que não são boas. Por exemplo, no julgamento do Supremo. Como sou amigo de muitos juízes, eles disseram que era difícil suportar aquilo. Quando perguntaram a Hannah Arendt por que estava interessada em compreender o nazismo, ela disse: ‘Se eu não compreender o nazismo vou enlouquecer’. É preciso que se insista nisso. Vejo a TV pública como a antítese da idéia de doutrinação. A idéia de doutrinação é abominável.


O sr. acha a postura do PT e da ‘grande mídia’ doutrinária?


L.G.B. – Muitas vezes é doutrinária no mau sentido da palavra, porque não permite que vire as vísceras. Muitas vezes é uma coisa propagandista de ambos os lados. É propaganda. Não é informação, nem debate.


O PT diz que o julgamento no STF era desnecessário, pois o governo foi aprovado nas urnas.


L.G.B. – Aprendi com Ulysses Guimarães que é preciso deixar as instituições funcionarem. A idéia de que os acusados de mensalão não poderiam ser julgados é, para mim, completamente estranha. Era preciso que fossem julgados por um tribunal independente. O relatório foi feito com a maior seriedade, a despeito do clima muito emocionalizado [no STF].


E a imprensa?


L.G.B. – Simplificou. Ficou uma coisa de bandidos contra mocinhos. O mundo não é assim. Vejo alguns colunistas que têm certezas tão graníticas. Fico muito surpreendido porque não tenho essa certeza.


E a reação ao ‘Cansei’?


L.G.B. – Vi muita gente ofendida com razão. Por que não podem dar a opinião? Posso ter desprezo intelectual pelo o que estão dizendo, mas eles têm todo direito de dizer o que acham.


Na sua opinião, qual seria o tratamento ideal da mídia no caso do mensalão?


L.G.B. – Seria a evolução do caso. O que não posso é me colocar na posição de juiz. Existe uma instituição encarregada de julgar. Ficamos espantados que esteja funcionando no país. O Brasil é o país onde os de cima nunca eram afetados pela polícia, pela Justiça. É um choque do avanço da democracia. Um choque, às vezes, é dolorido e exaspera reações antidemocráticas. As instituições, de certa forma, estão funcionando. Inclusive a imprensa está se comportando de uma maneira em que é obrigada a se submeter à crítica. Tem um autor francês Paul Virilio que diz a mídia é a única instituição que cria suas próprias leis.


O sr. concorda?


L.G.B. – Um pouco. Não tem coisa mais sagrada que a liberdade de expressão. Ela não pode ser monopolizada por ninguém. Você não pode se colocar na posição de que é inatacável.


O sr. acha que a reação da mídia é ao choque democrático?


L.G.B. – Esse terremoto democrático, que se acentuou com a chegada do operário ao poder, suscitou uma reação de ambos os lados. O que não se pode permitir é que isso provoque transgressão à liberdade de opinião recíproca. O que eu temo é isso. ‘A mídia é isso’, ‘a mídia é aquilo’, é uma coisa acrítica. Esse tipo de reação, eu não gosto. Tenho medo. Assim como tenho medo de certas unanimidades que vemos em certos momentos na mídia.


Essa relação, sob tensão, é perigosa?


L.G.B. – Não é boa para o país. Pode ser conflituosa, mas não desrespeitar regras da sociedade democrática.


Lula está preocupado?


L.G.B. – Ele acha que tem que criar um espaço público que distensione isso. Ele é muito conciliador, o Lula. Ele fica muito assustado.


O sr. concorda que a imprensa seja tratada como um bloco?


L.G.B. – É simplista. Há matizes. Criou-se um embate que não é bom para o Brasil. O governo tornar a mídia num bloco monolítico. E a mídia diz ‘o governo quer censurar’.


O que o sr. acha dessa postura mais agressiva?


L.G.B. – Se você acua um gato num quarto escuro, dizem, não tem uma forma de expressão. Em ‘Origens do Totalitarismo’, quando você lê os relatos que a Hannah Arendt faz do fascismo, é claramente de um povo que se sentia acuado, economicamente, social e politicamente. O totalitarismo não permite que o indivíduo se exprima. Gera a violência. Isso é muito perigoso. Fico assustado quando vejo esse tipo de reação. A reação correta é construir um ambiente de diversidade. Não é um demônio adversário, em cima do qual você joga toda responsabilidade.


A demonização vem dos dois lados?


L.G.B. – Bastante. É o ápice da irracionalidade. O PT demoniza a imprensa e a resposta não tem sido adequada.


O sr. assusta quando fala do animal acuado como semente do fascismo…


L.G.B. – Uma sociedade em que os processos de sociabilidade se destruíram completamente. Não há mais referências a não ser o füher. O populismo latino americano é uma pálida idéia do que foi aquilo. Vocês dizem que o Lula é populista. Ele é uma figura popular. É muito democrático. Não acho que tenhamos as condições históricas do fascismo. O que digo é que a sociedade está sempre ameaçada pelo risco de salvacionismo, que, volta e meia, volta. Se você forma um consenso que não é passível de ser contraditado, corre um risco enorme.


A democracia brasileira está sob ameaça?


L.G.B. – Acho que está permanentemente ameaçada pelos poderes privados e pela idéia de que você pode ter um salvador da pátria e que o Estado pode, na verdade, controlar a vida dos cidadãos. O processo democrático envolve, necessariamente, o risco de você perder. Necessariamente perder o controle e caminhar na direção, por exemplo, de situações de monopólio de informação. Um dia li uma entrevista na Folha, do Ruy Fausto, com a qual concordo quase inteiramente em que ele diz que às vezes a esquerda não se deu conta de que o socialismo real fracassou completamente. Ele diz que a esquerda não conseguiu se reabilitar. De vez em quando você tem frêmitos controlistas. Não vai dar certo. Os pais da idéia pensaram na democracia radicalizada. É autonomia dos indivíduos produtores. É claro que é uma coisa do século 19. A sociedade ficou muito mais complexa. Mas as idéias de autonomia do indivíduo são as que deveriam guiar a nossa luta política. Isso está permanentemente em risco.


O sr. é um conselheiro do Lula e apoiou o Serra em 2002. Gostaria de entender essa relação.


L.G.B. – Conheço o Lula desde os anos 70, quando começou ser um líder sindical. Tenho uma relação afetiva com ele. Gosto muito dele. Não obstante, por que apoiei o Serra? Não porque sou amigo do Serra, mas porque achei que fosse capaz de exercer uma política econômica melhor. Exerci meu direito de divergir. Era uma disputa entre duas pessoas que acho importantes para o Brasil.


Como evitar a influência do governo na TV Pública?


L.G.B. – O recado que recebi do presidente foi que levasse com a maior autonomia possível.


Deve haver um fundo?


L.G.B. – O financiamento é fundamental. Uma TV pública, dada a missão que tem que cumprir, tem que ter regularidade na fluência dos recursos. Senão a qualidade do serviço cai. Sem falar na autonomia.


E a publicidade?


L.G.B. – A TV pública não pode disputar publicidade. Se for presidente do conselho, não vou admitir.