A obrigação precípua da imprensa não é só informar, mas informar a verdade, e esta deve ser soberana.
A verdade muitas vezes atrapalha, seja a governos, seja a grupos com interesses escusos. Nos países onde não existe um regime democrático – como China, Coréia do Norte ou Cuba –, quando a verdade começa a atrapalhar, os jornalistas são sumariamente presos ou marginalizados, para que não possam exercer a sua profissão. Em outros onde teoricamente existe a democracia e é impossível, diante da opinião mundial, calá-los dessa forma, eles são simplesmente eliminados fisicamente, como tem acontecido na atual Rússia, com um número assustador de profissionais assassinados.
Na Itália, durante o regime fascista, que durou 23 anos, a imprensa que desagradava o regime foi amordaçada de todas as formas. Finda a Segunda Guerra, instalou-se no país uma verdadeira democracia que dura até hoje sem qualquer mácula.
Mas existe um forte poder paralelo, que tomou o nome generalizado de Máfia. É uma organização criminosa originária da Sicília, no início de século 19, que depois se espalhou no sul da Itália com outros nomes: N’andragheta, na Calábria, Camorra, em Nápoles, Sacra Corona, na Puglia.
Sem raiva, sem extremismos
Seus chefes não são tratados pelas populações locais como criminosos, mas são respeitados e reverenciados como pessoas honoráveis. Eles agem como se essa fosse a verdade, se sentem acima do bem e do mal e donos da verdade, com uma prevalência moral equivocada e viciada.
A impunidade existe escorada no omertà: uma atitude de obstinado silêncio em denunciar qualquer relato de que se tenha conhecimento.
Os que ousam enfrentar essas organizações selam seu destino – são eliminados impunemente, como acontece com juízes e autoridades policiais. O fato assusta os jornalistas, que preferem não ver o que acontece.
Mas agora surge Lirio Abbate (37), redator da mais importante agência de notícias italiana, a Ansa – Agenzia Nazionale Stampa Associata (Agência Nacional de Imprensa Associada), que resolve enfrentar a máfia denunciando vereadores, secretários municipais, diretores de hospitais, professores universitários que andam junto com mafiosos e chegam até a usar o beijo como cumprimento. Abbate assumiu como sua obrigação denunciá-los, sem raiva, sem extremismos, mas como um jornalista que se empenha em contar aquilo que pode documentar.
Honra esquecida
Um dia é chamado ao distrito policial, onde lhe dizem que não deve se preocupar, pois será protegido discretamente. Claro que ele se preocupou e conseguiu saber que durante uma conversa telefônica entre dois mafiosos seu nome fora citado como sendo alguém que deveria ser eliminado.
Em outra ocasião, encontrou em seu carro o bilhete de um amigo que lhe sugeria tomar cuidado. A polícia, tentando acalmá-lo, garantiu-lhe uma escolta permanente, mas isso o impediria de trabalhar e contatar seus informantes. A direção da Ansa resolveu trazê-lo de volta a Roma para a redação central.
Ali ficou alguns dias, mas resolveu voltar pois havia um trabalho a ser terminado. No dia de sua chegada, por acaso descobriu que haviam colocado sob seu carro uma bomba incendiária. Depois disso, lançou um desabafo que, mais do que isso, é um compromisso com sua profissão:
‘É um paradoxo. Você acredita que deve fazer um trabalho acurado de jornalista para iluminar os interesses da opinião pública e da sociedade civil. Aí você descobre que é um ingênuo, que ninguém quer olhar para essa parte suja, preferem ver o outro lado, não se interessando pelo real. Então por que o faço? Por que não ouço quem me diz ‘deixa para lá, esquece’?
Sabe por que resolvi fica na Sicília? Por honra. Sim, por honra. Não pela monstruosa, louca e ridícula honra com que mafiosos enchem a boca e que lhes permite serem fracos com os fortes e fortes com os mais fracos, mas aquela honra que me dá o respeito próprio, que me impede de inclinar-me à força do medo, de aliar-me àquilo que desprezo. Aquela honra que muitos sicilianos esqueceram de cultivar.’
******
Jornalista