Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Imprensa entre o tsunami e a glaciação

Esqueça o modelo de jornalismo que você conhece. O jornal impresso diário já perdeu a posição como vanguarda no processo de formação de marcas e criador de hypes, ou ondas, ou tendências massificadas, ou qualquer outro título que o comunicador queira dar ao fenômeno da explosão de expressões, atitudes, tiques culturais, que caracteriza nosso mundo hiperveloz. O jornal diário ficou para trás. Sorte do jornalismo.

Aos poucos, vai se formando entre analistas da mídia a convicção de que o renascimento da imprensa escrita será possível a partir da renúncia ao seu papel histórico de vanguarda na evolução das relações sociais e políticas. A vanguarda agora pertence a uma entidade intangível, não identificável, mutante mas efetiva, que pode ser bem compreendida pela Teoria do Caos.

Mas deixemos a lucubração nesse parágrafo e demos uma olhada no mercado. Olhe bem os anúncios estampados na edição de hoje do seu jornal. Atente principalmente para os grandes jornais europeus e americanos: não há praticamente mensagem que você já não tenha visto na TV ou na internet, ou que não tenha ouvido no rádio ou mesmo em comentário de bar. Sabe por quê? Porque os estrategistas de comunicação dos grandes anunciantes perceberam que os jornais diários impressos – e, por extensão, as revistas semanais – não criam tendência. O valor da mídia impressa está na consolidação de tendências, e isso não é pouco.

Saída para o dilema

Em cima dessa constatação pode-se construir uma estratégia eficiente para o posicionamento de um diário no confuso cenário no qual, tentando resistir à avalancha da internet, a mídia impressa se enterra cada vez mais numa crise sem fim. Os leitores desaparecem, ocupam seu tempo com outra coisa ou migram para a telinha, mas o conteúdo online não oferece o resultado financeiro de que a empresa precisa para sobreviver.

Veja o que diz Kevin Roberts, o principal executivo da Saatchi&Saatchi, empresa do grupo Publicis, uma das principais agências de publicidade do mundo: ajudar os anunciantes a construir marcas bem-sucedidas não é mais o grande objetivo dos jornais. ‘Essa era uma idéia do século 20 para as condições do século 20’, diz Roberts, segundo o diretor de Comunicações da Associação Mundial de Jornais, Larry Kilman. Em um de seus comunicados da semana passada, Kilman alerta os gestores de jornais para a apresentação que Kevin Roberts vai fazer no 58º Congresso Mundial de Jornais, marcado para o fim de maio em Seul, destacando as recentes afirmações do publicitário sobre a necessidade de se conquistar a lealdade do público ‘muito além da razão’.

Bem entendido, o conceito pregado por Roberts pode ajudar os gestores de jornais a encontrar uma saída para o dilema da queda crescente dos números de circulação paga, tendência que resiste a todo tipo de promoção e às mais inventivas idéias dos seus departamentos comerciais. O público simplesmente não enxerga mais os jornais como uma necessidade para se sentir conectado à realidade.

Humildade e grandeza

Então, o que resta à mídia impressa? Resta o caminho do centro, diria um monge zen. E não estaria errado. O caminho do centro é a busca de uma posição de resistência flexível na qual, ao fazer afirmações de valor, o jornal pode agregar em torno de sua marca um número considerável de leitores ativos, influentes, educados, com poder de compra e, portanto, valiosos para o anunciante.

Nada de massas, nada de buscar a ilusão do milhão de exemplares à custa de brindes que sangram o caixa e reduzem a percepção de valor do jornal. No centro, no eixo exato entre a novidade e a especulação, aí está a posição ideal do jornal diário.

Voltemos à Teoria do Caos, tema que movimenta interessante grupo de discussão liderado pelo jornalista Walter Falceta, no Orkut. Se, de fato, há uma ordem subjacente ao caos e, por muito evidente, falta a um grande número de indivíduos o instrumental necessário para dar algum significado a este mundo mutante, rápido, surpreendente a cada segundo, está aí um papel nobre para o jornalismo impresso: ajudar o cidadão a consolidar uma compreensão desse mundo aparentemente caótico.

Nada de querer ser mais rápido que a internet ou mais divertido que a televisão. O jornal impresso deve, diariamente, oferecer ao seu leitor as ferramentas para que ele forme sua visão de mundo. Sua Weltanschauung, como diria Sigmund Freud. Só que isso implica alguns pressupostos nada fáceis de realizar. O primeiro deles, um exercício de humildade e grandeza – que, diria o caminhante zen, andam juntas – que consistiria em abdicar da tentativa de impor premissas ao leitor, oferecendo-lhe, em vez disso, valores consistentes.

Contra as correntes

O jornal precisa se situar, em termos de visão, entre o tsunami e a glaciação. Atualmente, sabemos que a mídia impressa não consegue competir com os meios eletrônicos pela oferta de notícia quente. Por outro lado, também não alcança maturidade suficiente para oferecer ao público uma visão satisfatoriamente clara da História. Não pode descrever o tsunami em tempo real, por impossibilidades técnicas, e também não consegue explicar ao leitor o processo de aquecimento global, e lhe dar uma dimensão aproximada do significado desse fenômeno.

Entre a emergência e o longo prazo, ficam os leitores perdidos, ou ludibriados pelos cortes epistemológicos, tentativas de definição estrita do objeto da notícia, que mal disfarçam a intenção de dar consistência a premissas que nem sempre resistem a meia reflexão. É como se os jornais não buscassem leitores, mas correligionários.

Detalhe: quem disse que um jornal diário precisa correr atrás de tendências majoritárias faltou às aulas de História. Ou nunca visitou os arquivos de um velho diário. Nos momentos cruciais de suas existências, os jornais mais respeitados do mundo se colocaram contra as correntes majoritárias, fincando estacas de resistência a movimentos aleatórios das massas. Mas não em cima de premissas, como ocorre nos momentos de mediocridade como este em que vivemos. Em cima de valores, da compreensão mais profunda do significado da imprensa, que, apesar de tudo, ainda tem sua melhor representação no periódico impresso.

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Jornalista