Algo de muito estranho está acontecendo com os jornalistas da grande mídia no Brasil. Enquanto, por exemplo, florescem mundo afora cursos acadêmicos de graduação e pós-graduação sobre ‘estudos de mídia’ (media studies), entre nós ainda se questiona arrogantemente a legitimidade de uma das mais importantes instituições do mundo moderno – a mídia – ‘ser tratada como um bloco’.
Para certos jornalistas, ‘tratar a mídia como um bloco’ é ignorar que possa haver algum tipo de competição (pluralidade) entre as empresas que produzem jornalismo e entretenimento ou alguma diversidade de conteúdo entre os veículos que elas controlam. Não se reconhece a existência de uma instituição que se orienta por normas empresariais e rotinas profissionais padronizadas, independente da eventual pluralidade e diversidade que ainda possa existir e da relativa autonomia de trabalho do jornalista. É essa instituição – o coletivo dos jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão – que se chama universalmente de mídia e que se transformou em ator político central nas democracias contemporâneas.
Essa explicação preliminar sobre a existência da mídia (!!!) vem a propósito de um livro que acaba de ser lançado pelo C3 – Centro de Competencia en Comunicación, uma unidade regional de análise da comunicação para América Latina da Fundação Friedrich Ebert (FES), com sede em Bogotá, Colômbia.
Efetividade perdida
A FES é uma instituição que ‘baseia seus programas no ideário da social-democracia alemã e européia e mantém escritórios em mais de 70 países do mundo, sempre com a finalidade de cooperar na consolidação e no desenvolvimento de regimes democráticos e participativos’ e está no Brasil há mais de 30 anos.
O livro, cujo título é Se nos rompió el amor – Elecciones y medios de comunicación, América Latina 2006, reúne 12 estudos de 15 especialistas, 11 deles sobre o papel da mídia nas eleições presidenciais realizadas em 11 países da América Latina, entre novembro de 2005 e dezembro de 2006. O décimo segundo estudo trata das eleições municipais e parlamentares realizadas em El Salvador.
A leitura desses textos é extremamente reveladora porque mostra como muitas das questões que foram discutidas entre nós ao longo do processo eleitoral de 2006 – e continuam na agenda pública – também estiveram e estão presentes nos debates realizados nos países vizinhos.
A tese principal do livro, simplificadamente, é de que o ano de 2006 passará para a história das relações entre a mídia e as campanhas eleitorais na América Latina como aquele em que os candidatos ‘romperam seu amor pela mídia’ e preferiram a comunicação direta com a cidadania. Neste processo, a mídia perdeu seu protagonismo e converteu-se em polêmico ator político. O resultado foi que nasceu um ‘novo amor’ entre candidatos/governantes e as populações, um amor sem mediadores, que converteu a mídia na ‘vilã’ da vida política.
Os estudos chegam a várias conclusões, dentre elas, que a mídia se converteu em…
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ator que tomou posição política e abdicou de sua responsabilidade ‘iluminadora’ nos processos eleitorais; e**
observadora interessada e intencionada abdicando de seu papel central de ser fórum da democracia.Como conseqüência, em pelo menos 6 dos 11 processos eleitorais estudados – Bolívia, Chile, Brasil, Nicarágua, Equador e Venezuela –, a mídia perdeu efetividade na decisão de voto tomada pela maioria dos votantes já que não logrou converter seu desejo em decisões eleitorais. Nas outras cinco eleições – México, Peru, Costa Rica, Colômbia e Honduras – apesar de os candidatos apoiados pela mídia terem vencido as eleições, a mídia perdeu credibilidade e legitimidade.
Questões e constatações
Apesar de tudo, conclui-se também que a mídia continua sendo o cenário privilegiado onde as campanhas eleitorais se desenrolam; que o cidadão dificilmente pode decidir seu voto com base na informação, na análise e na opinião difundidas pela mídia; e que a mídia se converteu em parte do conjunto de instituições que é necessário mudar, da mesma forma que é necessário mudar as velhas práticas políticas, os partidos e a corrupção.
Como se vê, não foi somente no Brasil que se questionou o papel da mídia nas eleições. Ademais, a publicação de um livro que analisa o papel da mídia em 11 eleições presidenciais realizadas na América Latina, num período de 12 meses é, em si mesmo, uma excelente oportunidade para comparações e análises sobre o processo eleitoral, momento definidor das democracias.
Sem ignorar que as conclusões dos estudos publicados em Se nos rompió el amor – Elecciones y medios de comunicación, América Latina 2006 serão rejeitadas pela grande mídia brasileira – que, aliás, sequer admite a sua existência como instituição coletiva – é reconfortante saber que questões e constatações que se fazem aqui coincidem com questões e constatações que também se fazem em outros países.
As relações da mídia com a democracia entraram definitivamente na agenda pública de discussão. E não somente no Brasil.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007