Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Manifesto dos sem-mídia



O que você lerá a seguir é o manifesto que será lido diante da sede da Folha de S.Paulo no próximo dia 15 de setembro, por, supõe-se, dezenas de leitores do blog do autor deste manifesto, ou seja, de meus leitores, que, junto comigo, estarão lá no dia marcado.


Vivemos um tempo em que a informação se tornou tão vital para o homem que passou a integrar o arcabouço de seus direitos fundamentais. Defender a boa qualidade da informação, pois, é defender um dos mais importantes direitos fundamentais do homem. É por isso que estamos aqui hoje.


No transcurso do século 20, novas tecnologias geraram o que se convencionou chamar de mídia, isto é, o conjunto de meios de comunicação em suas variadas manifestações, tais como a secular imprensa escrita, o rádio, o cinema, a televisão e, mais recentemente, a internet. Essa mídia, por suas características intrínsecas e por suas ações extrínsecas, tornou-se componente fundamental da estrutura social, formada que é por meios de comunicação de massa.


Em todas as partes do mundo – mas, sobretudo, em países continentais como o nosso –, quem tem como falar para as massas controla um poder que, vigendo a democracia, equipara-se aos Poderes constituídos da República. E, vez por outra, até os suplanta. Essa realidade pode ser constatada pela simples análise da história de regiões como a América Latina, em que o poder dos meios de comunicação logrou eleger e derrubar governos, aprovar leis ou impedir sua aprovação, bem como moldar costumes e valores das sociedades. Contudo, há fartura de provas de que, freqüentemente, esse descomunal poder não foi usado em benefício da maioria.


Não se nega, de maneira alguma, que as mídias, sobretudo a imprensa escrita, foram bem usadas em momentos-chave da história, como nos estertores da ditadura militar brasileira, quando a pressão (tardia) de parte dessa imprensa ajudou a pôr fim à opressão de nossa sociedade pelo regime dos generais. Todavia, é impossível ignorar que a ditadura foi imposta ao país graças, também, à mesma imprensa que hoje vocifera seus neo-pendores democráticos, nascidos depois que sua recusa pretérita de aceitar governos eleitos legitimamente atirou o país naquela ditadura de mais de vinte anos.


O lado perverso da mídia também se deve, por contraditório que possa parecer, à sua natureza privada, uma natureza que também é – ou deveria ser – uma de suas virtudes. Nas mãos do Estado, a mídia seria uma aberração, mas quando é pautada exclusivamente por interesses privados seu lado negro emerge tanto quanto ocorreria na primeira hipótese, pois um poder dessa magnitude acaba sendo usado por diminutos grupos de interesse. Nas duas situações, quem sai perdendo é a coletividade, pois o interesse de poucos acaba se sobrepondo ao de todos.


A submissão da mídia ao poder do dinheiro é um fato, não uma suposição. Os meios de comunicação privados nada mais são do que empresas que visam ao lucro e, como tais, sujeitam-se a interesses que, em grande parte das vezes, não são os da coletividade, mas os de grandes e poderosos grupos econômicos. Estes, pelo poder que têm de remunerar o ‘idealismo’ que lhes convém, cada vez mais vão fazendo surgir jornalistas dispostos a produzir o que os patrões requerem, e o que requerem, via de regra, é o mesmo que aqueles grupos econômicos, o que deixa a sociedade desprotegida diante da voracidade daqueles que podem esmagar divergências simplesmente ignorando-as.


É nesse ponto que jornalistas e seus patrões contraem uma união estável com facções políticas e ideológicas que não passam de braços dos interesses da iniciativa privada, dos grandes capitais nacionais e transnacionais, do topo da pirâmide social. E a maioria da sociedade fica órfã, indefesa diante do poder dos de cima de alardearem seus pontos de vista como se falassem em nome de todos.


Agora mesmo, na crise que vive o Senado Federal, vemos os meios de comunicação alardearem uma suposta ‘indignação nacional’ com o presidente daquela Casa. Esses meios dizem que essa indignação é ‘da opinião pública’, apesar de que a maioria dos brasileiros certamente está pouco se lixando para a queda de braço entre o presidente do Congresso e a mídia. Nesse processo, a ‘indignação’ de meia dúzia de barões da mídia é apresentada como se fosse a ‘da opinião pública’.


O poder que a mídia tem – ou pensa que tem – é tão grande que ela insulta a ampla maioria dos brasileiros que elegeu o atual governo, dizendo que tal maioria tomou a decisão eleitoral que tomou porque é composta por ‘ignorantes’ que se vendem por ‘bolsas-esmola’ pagas por esse governo. Retoma, assim, os fundamentos do voto censitário, que vigeu no alvorecer da República, quando, para votar, o cidadão precisava ter um determinado nível de renda e de instrução. E o pior é que a teoria midiática para explicar porque a maioria da sociedade não acompanhou a decisão eleitoral dos barões da mídia esconde a existência de cidadãos como estes que aqui estão, que não pertencem a partidos, não recebem ‘bolsas-esmola’ e que, assim mesmo, não aceitam que a mídia tente paralisar um governo eleito por maioria tão expressiva criando crises depois de crises.


É óbvio que a mídia sempre dirá que suas tendências e pontos de vista coincidem com o melhor interesse do conjunto da sociedade. Dirá isso através da confortável premissa (para os beneficiários maiores do capitalismo) de que as dores que a prevalência dos interesses dos estratos superiores da pirâmide social causa aos estratos inferiores permitirão a estes, algum dia, ingressarem no jardim das delícias daqueles. É a boa e velha teoria do ‘bolo’ que precisa primeiro crescer para depois ser dividido.


É por essas e por outras que os meios de comunicação, sobretudo no Brasil, sempre tomaram partido nos embates políticos. Demonizam políticos e partidos que grupos de interesses políticos e econômicos desaprovam e, quando não endeusam, protegem os políticos que aqueles grupos aprovam. Isso está acontecendo hoje em relação ao governo federal e à sua base de apoio parlamentar, por um lado, e em relação à oposição a esse governo e a seus governos estaduais e municipais, por outro. Resumindo: a mídia ataca o governo central em benefício de seus opositores.


Os meios de comunicação se defendem dizendo que atacam o governo central porque ele nada faz de diferente – ou de melhor – do que fazia a facção política que governava antes. Alguns veículos, mais ousados, dizem que os que hoje governam favorecem mais o capital do que seus antecessores. Outros veículos, mais dissimulados, adotam um discurso quase socialista ao criticarem os lucros dos bancos e o cumprimento dos contratos que o governo tem garantido. A mídia chega a fazer crer que apoiaria o governo federal se ele fizesse despencar a lucratividade do sistema bancário e se rompesse contratos. Faz isso em contraposição ao que dizia dos políticos que estão no poder no tempo em que estavam na oposição, quando dizia que não poderiam chegar ao poder porque, lá chegando, descumpririam contratos e prejudicariam o sistema bancário.


A mídia brasileira garante que é ‘isenta’, que não é pautada por ideologias ou por interesses privados e que trata os atuais governantes do país como tratou os anteriores. Não é verdade. Bastaria que nos debruçássemos sobre os jornais da época em que os que hoje se opõem ao governo federal estavam no poder e os comparássemos com os jornais de hoje. Veríamos, então, como é enorme a diferença de tratamento. Nunca a oposição ao governo federal foi tão criticada quanto na época em que os que hoje estão no governo, estavam na oposição; nunca o governo foi tão defendido pela mídia quanto era na época em que os que hoje estão na oposição, estavam no governo.


Não é preciso recorrer a registros históricos para comprovar como os pesos e medidas da mídia diferem de acordo com a facção política que ocupa o poder. Basta, por exemplo, comparar a forma como os jornais paulistas cobrem o governo do estado de São Paulo e como cobrem o governo do país.


A mesma facção política governa São Paulo há mais de uma década. Nesse período, o estado foi tomado pelo crime organizado. A saúde pública mergulhou, ainda mais, num verdadeiro caos. A educação pública permanece como uma das piores do país, a despeito da pujança econômica paulista. Assim, começaram a eclodir desastres nunca vistos na locomotiva do Brasil que é São Paulo.


Ano passado, uma organização criminosa aterrorizou este estado. Essa organização nasceu e se fortaleceu dentro dos presídios controlados pelo governo paulista. A Febem, destinada a recuperar jovens criminosos, consolidou-se como escola de crimes e as prisões para adultos alcançaram o status de faculdades do crime. No início deste ano, uma rua inteira ruiu por causa de uma obra da linha quatro do metrô paulistano, administrado pelo governo paulista. Várias pessoas morreram. Foi apenas mais um de muitos outros acidentes que ocorreram nas obras do metrô de São Paulo e a mídia não noticia nada disso, o que lhe deixa óbvio o intuito de proteger o grupo político que governa o estado mais rico da Federação e que se opõe ferozmente ao governo federal.


A mídia exige CPIs para cada suspeita que a oposição levanta sobre o governo federal, mas não diz uma palavra de todos os escândalos envolvendo o governo de São Paulo. Omite-se quanto à violação dos direitos das minorias parlamentares na Assembléia Legislativa paulista, violação perpetrada pelas maiorias governistas – maiorias que nos últimos anos enterraram dezenas de pedidos de investigação do governo paulista, controlado por políticos que estão entre os que mais exigem investigações sobre o governo federal.


Seria possível passar dias escrevendo sobre tudo que a imprensa paulista deveria cobrar do governo do estado de São Paulo, mas não cobra. Ler um jornal impresso em São Paulo ou assistir a um telejornal produzido em São Paulo, só serve para saber o que faz de ruim – ou o que a mídia diz que faz de ruim – o governo federal. Quase não há informações sobre o governo paulista e críticas, há muito menos. O desastre causado pela obra da linha quatro do metrô paulistano foi coberto pela mídia por uns poucos dias. Depois, o assunto desapareceu do noticiário e nunca mais voltou. A mídia esconde e impede qualquer aprofundamento no caso e a sociedade fica sem satisfação.


Assim é com tudo que diga respeito a políticos e partidos dos quais a imprensa paulista gosta. E o mesmo se reproduz pelo país inteiro. A mídia carioca, a mídia baiana, a mídia gaúcha, as mídias de todas as partes do país fazem o mesmo que a paulista, pois todas obedecem aos mesmos interesses, controladas que são por um número ridiculamente pequeno de famílias ‘tradicionais’ que dominam a comunicação no Brasil.


O lado mais perverso desse processo é o de a mídia calar divergências. Cidadãos como estes, que assinam este manifesto, são tratados pelos grandes meios de comunicação como se não existissem. São os sem-mídia, somos nós que ora manifestamos nosso inconformismo. Muito dificilmente é dado espaço pela mídia para que quem pensa como nós possa criticar o seletivo moralismo midiático ou as facções políticas amigas dos barões da mídia. A quase totalidade dos espaços midiáticos é reservada àqueles que concordam com os grandes meios de comunicação. Jornalistas que ousam discordar são postos na ‘geladeira’. A mídia impõe uma censura branca ao país.


Claro precisa ficar que os cidadãos que assinam este manifesto não pretendem, de forma alguma, calar a mídia. Pelo contrário, queremos que ela fale ou escreva muito mais, pois queremos que fale ou escreva tudo, não só o que quer.


Mais do que um direito, fiscalizar governos e difundir idéias e ideologias é obrigação da mídia. Assim sendo, os signatários deste manifesto em nada se opõem a que essa mesma mídia critique governo algum, facção política alguma, ideologia de qualquer espécie. O que nos indigna, o que nos causa engulhos, o que nos afronta a consciência, o que nos usurpa o direito de cidadãos, é a seletividade do moralismo político midiático, é o sufocamento da divergência, é o soterramento ideológico de corações e mentes.


Por tudo isso, os signatários deste manifesto, fartos de uma conduta dos meios de comunicação que viola o próprio Estado de Direito, vieram até a frente deste jornal dizer o que ele e seus congêneres teimam em ignorar. Viemos dizer que existimos, que todos têm direito a ter espaço para seus pontos de vista, pois a mídia privada também se alimenta de recursos públicos, da publicidade oficial e, assim sendo, tem obrigação de não usar os amplos espaços de que dispõe como se deles proprietária fosse. Seu papel, seu dever, é o de reproduzir os diversos matizes políticos e ideológicos, de forma a que o conjunto da sociedade possa tomar suas decisões, de posse de todos os fatos e matizes opinativos.


Em prol desse objetivo, hoje está sendo fundado o Movimento dos Sem-Mídia. Trata-se de um movimento que não está cansado de nada, pois mal começou a lutar pelo direito humano à informação correta, fiel, honesta e plural. Aqui, hoje, começamos a lutar pelo direito de todos os segmentos da sociedade de terem como expor suas razões, opiniões e anseios e de receberem informações em lugar desse monstrengo híbrido – gerado pela promiscuidade entre a notícia e a opinião – que a mídia afirma ser ‘jornalismo’. [São Paulo, 15 de setembro de 2007]

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Comerciante, São Paulo, SP; http://edu.guim.blog.uol.com.br