O governo deu um passo na direção certa ao convidar o professor Luiz Gongaga Belluzo para presidir a rede de TV Pública a ser instalada no país. [N.R.: Belluzo não aceitou a presidência, mas deverá dirigir o conselho curador da rede.] Para um projeto de tal envergadura, era preciso começar com uma liderança do mundo da cultura e do saber.
Inexplicavelmente, o mesmo governo está andando para trás na definição do modelo gerencial e operacional da TV pública. A proposta de extinguir a Radiobrás, fundindo todo o seu acervo com o da TVE para criar uma nova entidade, tem todas as chances de dar errado, além do equívoco fundamental de acabar com o único sistema importante de comunicação oficial do Estado brasileiro. No seu lugar haveria um contrato de prestação de serviços pelo qual a TV pública produziria informação de Estado minimamente necessária.
Como se vê, o caminho escolhido é de todos o mais complicado. Implica em fundir entidades totalmente diferentes, cada uma carregando pesos mortos, inclusive passivos trabalhistas e problemas funcionais. Só se explica se há um objetivo oculto de aproveitar a oportunidade para se desfazer desses ‘pesos mortos.’ Cria-se um monstro jurídico, para resolver oportunisticamente problemas antigos que nada têm a ver com o projeto. Além disso, já começa dando à TV pública, ainda que sob contrato de prestação de serviços, também a tarefa de comunicação estatal.
A ira do baronato
O que mais intriga é que a solução para a separação entre comunicação pública e comunicação oficial já estava dada, bastando aprofundar a demarcação existente: atribuir à TVE, que é uma Organização Social de fins públicos, portanto já bem independente do Estado, o papel de esqueleto ou núcleo articulador da rede pública, e limitar a Radiobrás ao papel específico e exclusivo de comunicação oficial, transferindo parte de seus equipamentos, programas e concessões para a TVE.
Das nove concessões de rádio e TV da Radiobrás, pelo menos metade tem vocação para comunicação pública e poderia reforçar o esquema TVE, constituindo o embrião do novo sistema público, sem precisar criar novas empresas ou extinguir a Radiobrás. Agência Brasil, TV a cabo NBR e o canal internacional Integración poderiam continuar como partes de um sistema estatal de comunicação.
Realmente não dá para entender a lógica da fusão. Por que criar tantos problemas e descartar uma solução óbvia? Solução que já havia sido proposta várias vezes durante o primeiro mandato – na ocasião, para acabar com a ambigüidade dos papéis da Radiobrás, que atuava ao mesmo tempo como sistema público e estatal.
Pode ser que o verdadeiro objetivo seja o de acabar com a obrigatoriedade de transmissão da Voz do Brasil, cedendo à campanha lançada em 1995 por 850 emissoras privadas de rádio. Os barões da mídia, não satisfeitos em faturar 23 horas por dia sem pagar nada pelas concessões outorgadas pelo Estado, ainda querem acabar com a única hora em que o Estado tenta se comunicar diretamente. A Voz do Brasil é ouvida por mais de 50% da população, sendo que 11% a ouvem regularmente. A desconfiança se justifica porque a campanha foi apoiada publicamente pela direção da Radiobrás já no governo Lula. Dentro dessa lógica, o governo ofereceria a Voz do Brasil no altar do sacrifício para aplacar a ira do baronato contra a criação da TV pública.
Competição é com empresa privada
Se for isso, o governo está cometendo um erro grave. Está aceitando ingenuamente a tese de que comunicação estatal é necessariamente ‘jornalismo chapa-branca’, ou seja, algo condenável; de que a comunicação do Estado é por natureza autoritária, enquanto a dos barões da mídia é a democrática e pluralista. Ora, informação oficial precisa, abrangente e acurada dos atos de governo e suas razões, é hoje uma obrigação de todos os Estados democráticos, um atributo da sociedade da informação.
A diferença entre comunicação oficial de Estado, num regime democrático, e a produção de uma rede pública, não está no grau de veracidade, independência e pertinência social dos conteúdos – que deve ser elevado em ambos os casos – e, sim, nas funções de cada programação, portanto no seu ‘mix’: a estatal tem as funções principais de divulgar as campanhas sanitárias, educativas e outras de utilidade pública e prover informação básica, precisa e acurada sobre os atos do governo. Serve, inclusive, como fonte de informação primária para o jornalismo das empresas privadas, como era o papel histórico da Agência Brasil da Radiobrás. Ainda hoje, a Agência Brasil é acessada por quatro a cinco milhões de vezes por mês por pessoas e entidades de todos os tipos, em especial pauteiros e correspondentes estrangeiros, à busca de informação primária sobe atos e agenda de governo. Também produz mais de mil fotos por mês de uso livre pela mídia.
Já a rede pública tem a função de produzir informação jornalística, cultura, crítica e entretenimento movidos estritamente pelo interesse público, em competição qualificada com o jornalismo das redes privadas, esse movido essencialmente pela busca de lucro e, portanto, pelos índices de audiência. A competição da rede pública não é com a do Estado, é com a da empresa privada.
Imbróglio burocrático
Comunicação oficial de Estado não é propaganda. É um serviço público essencial nos Estados modernos. Por trás dessa concepção de que comunicação do governo é algo nefasto está também a idéia de que o Estado é nefasto; quanto menor, melhor. É a proposta neoliberal do Estado mínimo. E também o equívoco conceitual de considerar que o Estado não faz parte da esfera pública, quando ele é a mais pública de todas as partes dessa esfera.
Se o governo extinguir a Radiobrás estará caminhando na contramão da história. O que ele deve, isso sim, é acabar com prática nefasta de usar dinheiro público para fazer propaganda de si mesmo. E proibir essa prática também nos estados e municípios.
Deixar a Radiobrás e a TVE onde estão, apenas desbastando e separando mais claramente seus papéis, é a solução orgânica mais simples para a instalação da rede pública de TV no Brasil. E tem mais: é a solução que mantém, até geograficamente, a separação entre comunicação pública e estatal, deixando a Radiobrás perto do poder e localizando o núcleo de produção jornalística da rede pública bem longe desse poder, no Rio de Janeiro, a cidade civilista e libertária por excelência , ou mesmo em São Paulo. É um equívoco adicional sediar o jornalismo da TV pública em Brasília, com seu Plano Piloto elitista, contaminado pelas relações promíscuas de poder.
Uma nova rede pública de TV deve começar como se começa uma nova universidade: atraindo para o seu projeto as melhores cabeças de cada campo do conhecimento e partindo diretamente para a produção desse conhecimento. No caso da TV, para a produção de três ou quatro programas de grande qualidade e impacto. O resto é imbróglio burocrático. Não leva a nada.
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Jornalista e professor da Universidade de São Paulo, colaborador da Carta Maior e autor, entre outros, de A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro (1996) e As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998 (2000)