O relógio marcava 13h30. As pessoas no restaurante dividiam a atenção entre suas refeições e a televisão. A mulher na TV vestia roupas tão simples quanto a sala de sua casa, de onde ela, ao lado do filho doente, implorava por doações de medicamentos, fraldas… alimentos. Enquanto isso, no estúdio, o apresentador berrava por justiça e, incansavelmente, criticava todas as esferas governamentais, certo de que exercia o papel social do jornalismo.
No outro dia, a cena se repetia com outro cidadão e uma nova mazela social; novos olhos se comoviam e vidravam na televisão, gerando mais espectador e, conseqüentemente, mais anunciantes para a emissora.
Segundo Márcia Franz Amaral, nota-se que desde a década de 1980 predomina no jornalismo brasileiro ‘a idéia da utilidade social da mídia e da necessidade dos jornais responderem às demandas cotidianas dos cidadãos. Servir o leitor passa a ser mais do que uma função social, torna-se uma atividade lucrativa’. A observação de Amaral se completa no discurso de Luiz Martins (2002), que diz:
‘Ocorre, porém, que um dos critérios de noticiabilidade é a hierarquização dos ‘fatos noticiáveis’ segundo sua importância. Pode acontecer, então, que o noticiamento desejado seja reconhecido, mas ganhe o destino da cesta do lixo se algo mais importante no entender dos selecionadores vier a se sobrepor.’
‘Clima de suspense’
O que se vê é uma tentativa frustrada de se fazer um jornalismo popular, que se utiliza do drama alheio para gerar receita, seja na venda de exemplares, seja com anunciantes. Como diz Amaral, ‘somos especialistas em abordar o segmento popular da grande imprensa a partir da condenação: sensacionalismo, degradação, ganância, lixo cultural, anti-jornalismo… A impressão que se tem é que o jornalismo ocupa um lugar desprovido de preocupações sociais e a ele cabe falar para aqueles dispostos a ouvi-lo’.
Com as redações cada vez mais próximas dos setores de marketing, criou-se um jornalismo dito popular que transforma as mazelas do cotidiano em acontecimentos extraordinários. É interessante o comparativo feito por Ramão Gomes Portão (1980) entre o tratamento de choque dado à notícia e a divulgação de um produto.
‘Para valorizar providências rotineiras na área da política, por exemplo, dentro da praxe administrativa ou das normas legislativas, as medidas agora são anunciadas num clima de suspense, previamente trabalhadas para conseguir a conotação de mensagem de impacto. O mesmo critério é observado no lançamento de qualquer produto.’
Políticas editoriais omissas
O jornalismo que se apresenta hoje à sociedade acredita que publicar imagens de chacinas, de gente desesperada por uma ajuda, é exercer uma função social. Kovach e Rosentiel (2003) defendem o conceito da imprensa-cidadã como aquela que tira as pessoas da letargia e oferece uma voz aos esquecidos. Entretanto, o cidadão comum só é notícia quando morre, quando é preso ou quando está necessitado, sempre apresentado da maneira mais impactante possível.
O que se tem hoje é um jornalismo dito popular que tenta atrair o cidadão comum, tanto como leitor como fonte, através do sensacionalismo, que por sua vez desperta a curiosidade do público, gerando receita para o veículo. É difícil encontrar reportagens que não coloquem o cidadão na situação de desdém, que não façam dele mercadoria. Ele não tem voz para sugerir ou para apresentar suas idéias ou os projetos sociais de sua comunidade. Ele só pode clamar, dramaticamente, por socorro. Isso quando seu fato não é substituído pelos jornalistas por uma informação que traga menos benefício social, porém atraia mais anunciantes.
Na contramão deste jornalismo sensacionalista aparece o Jornalismo Público, descrito por Luiz Martins da seguinte maneira:
‘O que tem caracterizado, no entanto, o jornalismo público é a intenção de não apenas se servir dos fatos sociais no que eles apresentam de dramático, mas agregar aos valores/notícia tradicionais elementos de análise e de orientação do público quanto a soluções dos problemas, organizações neles especializadas e indicações de serviços à disposição da comunidade.’
Ainda segundo o autor, este conceito de jornalismo busca uma identidade com o público ‘através de um jornalismo comprometido com os avanços social, econômico, cultural e humano, e não apenas faturando em cima das mazelas do cotidiano’. Entretanto, Martins afirma que os meios de comunicação de massa brasileiros não se declaram praticantes do jornalismo público, o que revela, senão desconhecimento dessa categoria como um campo específico, pelo menos a inexistência de algo programático, que faça parte de suas políticas editoriais.
Expansão da cidadania
Ao contrário dos jornais ditos populares, como Agora, Extra, Diário Gaúcho e o Dia, que têm em sua linha editorial o cidadão comum como fonte principal, os demais veículos de comunicação só se voltam para eles quando da produção de factóides. Segundo Martins, ‘o ideal seria que a prática de um verdadeiro jornalismo público abrisse espaço para as entidades sem fins lucrativos e voltadas para causas de interesse social’.
Para Amaral, o que falta na imprensa brasileira é o ‘hábito de pensarmos o jornalismo no plural… sem por isso termos que abrir mão dos princípios éticos. As mesmas razões éticas que nós, jornalistas, temos para não sujeitar nossa atividade ao mercado de bens materiais, deveriam levar-nos a refletir mais sobre o mercado simbólico envolvido na atividade jornalística’.
O que se espera do jornalismo hoje é que ele não se paute pela ‘ruptura da rotina’, mas que agende ‘permanentemente assuntos que não são novos’. Nesse momento, entram em ação as redes de informação para o Terceiro Setor, que devem ter como proposta substituir o sensacionalismo da pauta das redações por exemplos de cidadania, sejam eles produzidos pela própria sociedade civil ou por grandes corporações. Que o cidadão se torne fonte, que a sociedade civil organizada fale, mas para reportagens que busquem a expansão da cidadania, e não o deleite pelo sensacionalismo.
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Jornalista, Salvador, BA