Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Direitos autorais e ética profissional

Segundo a Lei de Direitos Autorais brasileira, qualquer tradutor pode pegar um livro em domínio público, traduzir e apresentar a um editor. E, claro, a ele pertencerá o direito patrimonial e moral dessa tradução, a não ser que ele ceda a terceiros o direito patrimonial, já que o moral é inalienável. Em outros casos, qualquer tradutor pode ceder os direitos patrimoniais a um editor, permanecendo, contudo, com os direitos morais. Logo, há, no que se refere a direitos, dois tipos de tradução e por isso nós, tradutores, temos de protestar contra abusos de direitos cobrindo esses dois tipos de situações.


O texto do abaixo-assinado, ou manifesto, não pretendia, contudo, discutir essas questões, ainda mais porque mesmo os direitos morais não são reconhecidos no caso que constitui nosso móvel, tendo os editores infratores chegado ao ponto de atribuir textos de um tradutor a outro tradutor, que aceitou esse papel.


Prós e contras da legislação


Seja como for, há mais questões a serem tratadas:


1. Por que nós, tradutores, não podemos comprar direitos de tradução, mas só vender direitos da tradução?


O legislador simplesmente partiu do fato de o uso ser esse e o consagrou, o que é natural, já que a lei não veio de uma consulta pública aos tradutores, tendo atendido mais a alguns tradutores consagrados e aos editores.


2. A lei dos direitos autorais permite que assinemos os contratos que assinamos, mas não nos impede de lutar para haver outros tipos de contrato. No capítulo da cessão de direitos (Capítulo V – Arts. 49-52), a lei faculta firmar contratos de vários tipos, respeitadas as demais determinações suas, podendo assim algum editor reconhecer direitos patrimoniais a um tradutor. Não é porque isso não costuma acontecer que não poderia vir a acontecer.


3. Uma coisa interessante é que esse capítulo V permite entender que o uso de uma tradução em um meio que não o contratado (ou seja, se cedemos direitos para um livro e o texto é usado num CD, p. ex.) geraria novo pagamento.


4. Enfim, o legislador não tem como prever todos os casos específicos. Para estes existem as regulamentações, jurisprudências e tribunais. Podemos ser a favor ou contra os dispositivos legais, mas a lei estabelece o que estabelece. E teremos de lutar para mudar a lei, se for esse nosso desejo.


5. Por fim, há outra questão mais ampla que envolve a relação entre direitos do tradutor ao seu texto e os direitos do editor de fazer uma revisão. Bem, tudo depende do que se chama de texto legível – e me refiro a isso porque a alegação dos editores para alterar textos cujos direitos foram cedidos (em geral antes da revisão) é a legibilidade. Os contratos admitem que o editor recuse um texto (o que é justo), mas não que o tradutor recuse uma revisão (o que é injusto). Embora um texto efetivamente ilegível seja fácil de verificar – e quem o produz, em geral, não é tradutor profissional –, um texto sujeito a diferenças de avaliação sobre qualidade não o é. Há casos em que o revisor pode piorar ou mutilar ou prejudicar o texto traduzido, seja por rigidez gramatical, excesso de rapidez na revisão, ignorância do assunto, baixa remuneração, ou porque não ficou meses em contato com o livro e não o percebe como a totalidade que é, ou então porque o editor parou no tempo ou não entende que um livro escrito há 50 anos não pode ser traduzido como um que foi escrito há cinco, já que, se a língua muda segundo o ambiente social, o clima de época tem de ser preservado a par do respeito a novas formas de expressão. Há hoje tradutores que preferem traduzir os fragmentos de Heráclito, p. ex., como fragmentos, o que eles são, e não como um texto coeso e coerente, o que eles não são.


‘Criação intelectual nova’


Por tudo isso, temo muito o direito que se atribuem revisores e editores de dizer o que é um bom texto, muitas vezes sem que o tradutor seja consultado. Um bom texto é algo que vai bem além da gramática, mas a incorpora sensatamente. E é preciso mencionar os graus de aceitabilidade de um texto a depender da situação de sua tradução, algo a que editores e tradutores europeus são sensíveis. Estamos cansados de ver substituir, para dar um exemplo caricato, mas não menos real, ‘bonito’ por ‘lindo’, na página 11, e ‘lindo’ por ‘formoso’, na 105, e concluir disso que o tradutor não escreveu bem. Não deveria a decisão envolver todos – tradutores, revisores, editores, e até, em casos de muita dúvida, especialistas em lingüística do texto, do discurso? A indefinição nesse plano também facilita abusos aos direitos: basta fazer mudanças cosméticas e dizer que o texto é outro, com alguns pontos ‘coincidentes’, para furtar-se ao cumprimento da lei. Mas os dispositivos legais não são nada simples. Vejamos por alto:


Detêm direitos autorais


‘XI – as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova.’


Basta mostrar de alguma maneira que não é ‘criação intelectual nova’ para não haver direitos. Nas ‘definições’, a lei define vagamente e aí temos de enquadrar a tradução, a obra derivada: ‘g) derivada – a que, constituindo criação intelectual nova, resulta da transformação de obra originária’, mas não define ‘criação intelectual nova’!


Unir a classe


Art. 14. É titular de direitos de autor quem adapta, traduz, arranja ou orquestra obra caída no domínio público, não podendo opor-se a outra adaptação, arranjo, orquestração ou tradução, salvo se for cópia da sua.


Basta provar que não é cópia porque a lei não define o que é cópia (p. ex., 50% de plágio é cópia?). E veja que isso só serve para obras em ‘domínio público’. Se não, o titular não pode se opor! Por que isso está aí? Porque sem domínio público o editor é o titular?


Além disso, o artigo 7 (‘São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como…’) pode mesmo permitir outra interpretação para que se use um texto escrito destinado a um livro impresso num CD e se diga que não há direitos adicionais a pagar, quando haveria porque é outra forma de reprodução, que rende novo lucro…


Enfim, estou convencido de que há necessidade de se criar a classe dos tradutores para alguma coisa melhorar. Unidos teremos alguma chance. Há muitos anos tento unir… Atualmente, tento ver se ajudo os tradutores em formação para os quais dou aula a fazerem isso pela minha geração, que não conseguiu.


‘Globalização’ e ‘mundo babélico’


Num mundo sempre mais globalizado, a babélica tarefa do tradutor requer dele considerações éticas sempre mais amplas, que vão do conhecimento dos objetivos específicos dos clientes ao traduzir um dado texto ao impacto de uma dada tradução no mundo atual, passando pela ‘educação’ do cliente quanto à escolha do profissional tradutor e à avaliação da qualidade das traduções. O tradutor vive num ‘intervalo’. O tradutor deve acostumar-se a viver no intervalo do contato entre culturas, no interstício da inter-incompreensão constitutiva entre as culturas, no paradoxo de a tradução ser necessária porque as línguas têm muitos aspectos diferentes, mas ser possível porque elas têm também muitos aspectos semelhantes. Obrigado a ocupar essa posição, o tradutor tem a importante responsabilidade ética de respeitar todas elas. E como deve agir para fazer isso, ainda mais num mundo babélico?


‘Mundo babélico’, principalmente hoje, talvez seja apenas outra maneira de dizer mundo. O mundo já veio a existir, seja qual for a nossa versão desse surgimento, babélico, pois nasceu não na uniformidade, mas na diversidade – diversidade da geografia e da ecologia, tão intimamente associadas, diversidade humana. E não seria possível considerar as grandes navegações um momento de ‘globalização’? (E apenas lembro do Império romano.) Só que não havia tanto contato entre as partes e as pessoas do mundo como hoje.


O ‘espírito’ e a ‘letra’


O ato de tradução é um contato que envolve tanto o acordo como o confronto, uma ‘negociação’ específica entre dois diferentes, ou duas diferenças. Há um diferente do qual se traduz e, para esse diferente, a língua para a qual se traduz também é um diferente. O diferente a ser traduzido, apesar da globalização, ainda é local: um falante de uma dada língua dirige-se a seus pares. O diferente para o qual traduzimos requer que um falante de uma dada língua se dirija a seus pares e não aos pares do autor que ele traduz.


Assim, traduzir é um dilema, um problema, mas um dilema e um problema fascinantes, porque é preciso descobrir o ‘justo meio’, a expressão que diga ao mesmo tempo ‘esse texto é de um autor norte-americano’ e ‘esse texto está escrito em português por um tradutor’ ou, simplesmente, ‘esta é uma tradução do inglês norte-americano para o português’. Quem traduz, portanto, não pode nem fazer desaparecer o diferente – que é o discurso na língua que não é a sua – nem impô-lo ao segundo diferente que é o discurso em sua língua, o discurso que nasce da tradução, outro discurso que pretende dizer o ‘mesmo’, só que a outras pessoas.


Num contexto babélico globalizado, há ainda mais exigências nesse respeito a dois senhores para que possamos melhor servi-los. Porque nesse caso temos de servir a dois senhores, na qualidade de ‘parteiros’ do sentido fecundado numa dada língua e que nasce em outra. E a situação fica ainda mais complicada porque quem traduz está dilacerado entre duas exigências contraditórias: de um lado, a de que respeite o ‘espírito’ (e mesmo a ‘letra’, para alguns) da língua estrangeira e não se importe com a língua estrangeira; do outro, que respeite o ‘espírito’ (e mesmo a ‘letra’, para alguns) da língua não-estrangeira e não se importe com a língua estrangeira.


As portas da compreensão


Assim, não se precisa ser fiel ao texto para ser fiel ao ‘original’. O texto é o veículo de um discurso e este é uma representação interessada do mundo (composta por uma descrição de um estado de coisas, no âmbito de regras de uso da linguagem, a partir de uma intencionalidade determinada pelo contexto). Logo, ser fiel ao ‘espírito’ do texto pode implicar desrespeitar a ‘letra’ do texto, que afinal é só o ‘veículo’ do espírito, embora só por meio dele possamos ter acesso a esse ‘espírito’. Traduzir é encontrar meios numa língua de dizer o que se diz em outra. E por isso exige ética. A tradução traz um ganho: vê no texto o que o autor não pode ver porque para ele o texto é ‘natural’, enquanto para o tradutor é uma avis rara, um alien, até ser traduzido…


Não se perde nada ao traduzir, exceto a ilusão essencialista de que haveria algo dado a ser perdido. E sempre se ganha porque se permite que os textos se tornem acessíveis. O sonho é, adaptando Mallarmé, ‘sugerir’ na língua 2 a atmosfera da língua 1 sem matar o sabor da língua 1 nem impô-la à 2; por exemplo, deixar perceber que algo vem do francês mas está escrito legitimamente em português. A única perda possível viria da distorção do dito e/ou do modo de dizer, o que é aético e imperdoável. Responsabilidade ética de traduzir exige, assim, uma grande responsabilidade ética. E assumir essa responsabilidade ética, sem criar álibis para si mesmo, mas com a certeza de que o erro é inevitável e até parte da condição humana, é a base do ato de interpretação legítima que é a tradução. Não criar álibis impede o tradutor de dizer ‘eu não sabia’, mas não o impede de dizer ‘errei’ e até o obriga a isso, se erros houver. Porque traduzir é sempre interpretar, legitimamente, ou seja, sem impor ao texto a traduzir as preferências ou idéias do tradutor. O ato ético do tradutor é babélico: trata-se de evitar a ‘confusão’ e abrir as portas ‘celestes’ da compreensão, algo que está sujeito, como todo ato e qualquer ato humano, à incompreensão. Dos autores, dos editores, dos leitores, dos colegas tradutores…


 


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O nome do tradutor — Lia Wyler

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Mestre pela USP, doutorando em Lingüística Aplicada no LAEL-PUC/SP e tradutor profissional