Se a grande mídia brasileira, via jornalismo verdadeiro, destacasse mais – no contexto da crise capitalista norte-americana – o que está acontecendo com o dólar, certamente estaria prestando serviço mais competente à população brasileira, que se embala acriticamente na euforia lulista de que o país está com sobra de caixa para comprar a dívida externa – quando isso é tremendo equívoco.
O poder midiático, no entanto, é profissionalmente suficiente para equivocar-se conscientemente. Quando os bancos viram que o dólar ia para buraqueira geral, pressionaram o governo, a partir do final da Era FHC, e intensificaram, com sucesso, na Era Lula, sua tese de internalizar a dívida externa, transformando-a em dívida interna, por meio da desdolarização desta. A grande mídia foi contratada para bater palmas na arquibancada, a fim de saldar esse gesto de benevolência governamental com o dinheiro do contribuinte para satisfazer a banca. Tremendo calote na população.
Quando a desdolarização começou, o dólar estava perto dos R$ 3,00; agora, está beirando os R$ 1,50. Grande negócio para os banqueiros. Se tivesse ocorrido o contrário, ou seja, se os economistas neoliberais, que tomam conta das finanças nacionais, fossem, realmente, do tipo do nacionalista Hjalmar Schacht, o mago das finanças da República de Weimar e do III Reich, seguidor da linha de Friedrich List, a coisa teria, talvez, outra figuração.
A riqueza real
Com o dólar barato, a dívida pública interna, que, na verdade, é a dívida externa internalizada, aí, sim, Lula poderia cantar de galo, destacando que o endividamento, graças à desvalorização do dólar, estaria virando pó. Mas, como, inteligentemente, o governo brasileiro desdolarizou a dívida interna, salvando os aplicadores em dólar da desvalorização…
Burrice histórica: trocar o sobrevalorizado (real) pelo sobredesvalorizado (dólar). Luis Nassif, no seu livro Os cabeças de planilha, deixa uma lição: o entreguismo nacional, que, no Encilhamento, se expressa no cabeçudo Rui Barbosa, continua até hoje. Os bancocratas conseguem armar as favoráveis situações para os banqueiros, depois, compensatoriamente, viram ‘banqueiros de calça curta’ (Lauro Campos). Pedro Malan, Edmar Bacha, Bracher, Maílson e uma série de filhotes, colocados pelos banqueiros para administrar governos neorepublicanos, estão muito bem situados nos conselhos de administração dos grandes bancos nacionais e internacionais, pontificando nas colunas dos jornais e revistas, divulgando a ideologia bancocrática. Lula, mais avançado, mais inteligente, buscou seu homem das finanças diretamente no Banco de Boston. Lançou mão dos banqueiros de calças longas.
O fato é que a boa jogada no mercado internacional é comprar reais, como destacam aplicadores de sucesso, porque o Brasil, com a sua classe política entreguista, ancorada nos editoriais da grande mídia, é, realmente, a riqueza real, especialmente, no momento em que o dólar queima nas mãos dos seus detentores em busca de outros ativos. Aqui tem ouro, tem petróleo, tem minérios, alimentos a dar com pau, enfim, tudo que está se valorizando frente ao dólar, enquanto as autoridades monetárias tupiniquins acumulam dólar que se desvaloriza.
Suprema humilhação
Daqui a pouco, teremos, com os prejuízos que a desvalorização da moeda norte-americana provoca, que intensificar o uso da moeda boa (real sobrevalorizado) para atacar a moeda má (dólar sobredesvalorizado). Certamente, a grande mídia aplaudirá, como tem feito sempre ao longo da Nova República, que se transformou no laboratório especial do Consenso de Washington, depois da crise monetária dos anos de 1980.
O poder midiático não está informando, com o devido esclarecimento histórico, para formar opinião sobre o curso do novo sistema monetário já colocado em prática pelo pragmatismo capitalista, diante do fato óbvio de que o dólar está virando inflação no bolso de quem o possui. O exemplo que vem da Arábia Saudita é ilustrativo. Os árabes estão sob pressão inflacionária do dólar porque importam trigo cotado em euro. Como a moeda norte-americana se desvaloriza frente ao euro, os produtos cotados em euro pressionam a inflação, impondo déficit em contas correntes nos países importadores.
Vai se configurando o que Hjalmar Schacht, bem antes de Keynes, disse, em 1926: o comércio olha para a moeda forte e abandona a moeda fraca, atacada pelos déficits. Os próprios comerciantes norte-americanos estão aceitando, preferencialmente, euro aos dólares, na praça de Nova York e nas demais cidades do país. Suprema humilhação para Tio Sam.
Felicidade exagerada
Enquanto predomina o dólar como moeda de referência, as mercadorias, para não serem desvalorizadas em dólar, aumentam de preço, até que surja moeda de referência substitutiva. O preço do petróleo sobe acima de 100 dólares o barril como forma de compensação pela desvalorização da moeda norte-americana, visto que ainda não há condições políticas para que os árabes – e os chineses, também – deixem o dólar e optem pelo euro – ou uma cesta de moedas – como forma de escaparem das pressões inflacionárias. Até quando deixarão o dólar queimando em seus bolsos?
Na semana passada, a escalada descendente da moeda norte-americana e a inflação que ela começa a produzir não mereceram maiores apreciações da grande mídia, distraída pela reforma tributária, o mais do mesmo – seis por meia dúzia –, visto que não visa ao fundamental, ou seja, a redução da carga tributária. Se grandes detentores de dólares, como árabes, começam a reclamar da inflação em dólar, dado que se torna necessário sacar mais moeda de Tio Sam para comprar a mesma quantidade de comida cotada em euro, por que segurar o pepino?
Não seria sinal mais que evidente que as importações possam ser, de agora em diante, cotadas em euro, fato que se traduziria em pressão inflacionária para quem, como o Brasil, se vangloria de estocar dólares? Seriam inteligentes as autoridades monetárias brasileiras que estocam dólar e burros os comerciantes norte-americanos, que já vendem em euros?
Se se recebe baixo juro pelo dólar estocado e, ainda por cima, tem que se despender mais dólar para gastar em importações tendentes à cotação em euro, por que ficar exageradamente feliz, como se mostrou o presidente Lula, com a estocagem dolarizada, cujo custo de manutenção vai se tornando desinteressante financeiramente?
Inflexíveis vencedores
É instrutivo demais ler sobre a crise bancária de 1931 – Hjalmar Schacht, Setenta e seis anos de minha vida, da Editora 34 (pág. 351). O quadro, salvo variações características da história do momento, é mais ou menos semelhante porque na base de tudo está a disposição do mercado para explorar agressivamente oportunidades de negócios criadas especulativamente, quase sempre em cima de imóveis, para começar; depois, dissemina-se. Os preços esquentam, chegam à fervura, ao ponto em que os mais espertos, percebendo que a canoa vai virar, fogem e deixam o pepino para os prejudicados, a maioria.
Na crise bancária de 31, o setor imobiliário é o estopim, como agora, nos Estados Unidos. O excesso de empréstimos gera inadimplência quando o mercado não vê mais possibilidades de ampliar a taxa de lucro e os ativos sobrevalorizados, com a fuga, tornam-se ativos desvalorizados. O Danat-Bank, da Áustria, na ocasião, foi à bancarrota e desencadeou crise bancária em toda a Europa. A conseqüência veio em forma de desvalorização monetária generalizada como forma de os países serem competitivos entre si. O roteiro do desastre é o mesmo descrito por Alan Greenspan, em A era da turbulência para explicar as crises financeiras depois da crise do keynesianismo, no final dos anos de 1970, e a ressurreição do neoliberalismo a partir dos anos de 1980.
Como a Alemanha, prisioneira dos acordos de Versalhes, não podia seguir a Inglaterra, que desvalorizava seguidamente a moeda para tentar dominar o mercado via exportações, viu seus créditos no exterior virar fumaça. Os inflexíveis vencedores de Versalhes criaram o monstro nazista.
Desvalorizar para competir
Os bancos centrais estão apavorados. Os grandes bancos norte-americanos encalacraram-se. O oxigênio do comércio, o crédito, está bloqueado na circulação inter-bancária, visto que o sistema está bichado. Nesse ambiente em que ninguém acredita em ninguém, a aposta no dólar, como fez e faz o governo, é altamente controversa. Caso o país tenha que pagar parte crescente das suas importações em euro, importará inflação em vez de deflação dos preços externos, pagando-as em dólar.
Por enquanto, o dólar barato combate a inflação interna, mas se tiver que pagar importações cotadas em euro, no compasso do descrédito internacional da moeda norte-americana, como experimentam, amargamente, os árabes, relativamente, às importações de produtos europeus neste instante, agitando o mundo árabe, já que a inflação desorganiza as relações de produção e desassossega os trabalhadores, se os salários caírem demais?
Que vantagem haveria na estocagem monetária dolarizada? Vai se configurando o quadro que se ampliou na crise monetária de 1931, quando os países em geral passaram a desvalorizar a moeda para competir com a desvalorização da libra, a fim de fugir da inflação. Quem vai manter moeda sobrevalorizada diante do dólar sobredesvalorizado para perder mercado para os produtos norte-americanos cotados pela metade do preço?
Sociedade adormecida
As mercadorias norte-americanas, provavelmente fabricadas/contrabandeadas da China, começarão a inundar o mercado da periferia capitalista. Os bancos já prevêem que o dólar, em junho/julho, poderá chegar aos R$ 1,50. Se chegar a R$ 1,50, pode descer a R$ 1,40, a R$ 1,30, a R$ 1,20, a R$ 1 ou até abaixo de R$ 1,00, como ocorreu no Plano Real, em 1994, quando a cotação, em determinado momento, se fixou em R$ 0,80 por US$ 1,00. Há uma enchente monetária em dólar que não pode ser enxugada pelo juro alto norte-americano, pois geraria recessão mundial, pelo menos até pintar o novo presidente ou presidenta norte-americano/na.
Ficaria explícito o esplêndido negócio histórico de ter desdolarizado, há pouco mais de quatro anos – que visão, a dos banqueiros! – a dívida pública interna, pagando perto de R$ 3,00 por US$ 1,00. Igualmente, evidenciaria a inteligência brasileira expressa na estocagem do dólar desvalorizado, que poderá ser utilizado para pagar importações cotadas em euro, ao mesmo tempo em que se recebe juro quase negativo pelo estoque monetário desvalorizado, ao passo que se paga pelo real desdolarizado-sobrevalorizado o juro real mais alto do mundo. Gênio.
A grande mídia parece estar dopada nesse contexto, pois não trata assunto tão palpitante como merece. Ou ela quer que a sociedade fique assim mesmo, adormecida, para não saber o que está acontecendo?
Nova coordenação monetária
Se for levada em consideração a experiência de Schacht, segundo Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central na Era FHC, o mais importante formulador de políticas econômicas na Alemanha de 1923 a 1944, que pôs fim à hiperinflação, os bancos internacionais devem, neste momento, estar articulando seriamente como criar novas bases de um sistema monetário no compasso da queda do dólar, que vai deixando de ser referência internacional, ao se transformar em fonte inflacionária. Alguém leu uma bela reportagem, ultimamente, sobre a história monetária capitalista?
O fundamental, diz o mago das finanças de Hitler – destronado por Goering por se negar a financiar inflacionariamente o armamentismo alemão – é fazer com que o pequeno e o médio empresário – enfim, a classe média –, que desconhecem os complexos mecanismos cambiais que marcam a relação umbilical entre governo-bancos-grandes empresários, continuem acreditando na eficiência do mecanismo bancário, pois os grandes, que sabem de tudo, podem sofrer prejuízos sem poder chiar.
Os bancos centrais, agora, teriam, sem despertar controvérsias socialmente explosivas, força suficiente para armar nova coordenação monetária internacional no rastro da forte desvalorização do dólar, que anima, conseqüentemente, disposição nacional nos países em geral para seguir o mesmo caminho como forma de sobrevivência no mundo globalizado?
Sobram as bombas
A desdolarização da dívida pública interna e a estocagem de dólares – enquanto o país precisa, desesperadamente, de grandes investimentos sociais e em infra-estrutura para se tornar gente grande no cenário da globalização – trazem, em meio à escalada da desvalorização da moeda norte-americana, uma certeza: será nova burrice –como a da desdolarização acelerada – continuar estocando moeda desvalorizada ao mesmo tempo em que se mantém a taxa real de juro mais alta do mundo para remunerar os aplicadores em moeda sobrevalorizada.
Mais inteligente ainda seria utilizar moeda sobredesvalorizada, em estoque, para importar mercadorias cotadas em moeda sobrevalorizada, deixando de lado a força da própria moeda nacional, ancorada em riquezas reais – petróleo, minérios, alimentos – que se sobrevalorizam no rastro da sobredesvalorização do dólar.
O poder midiático nacional está literalmente paralisado no meio desse vendaval monetário. Simplesmente, não sabe seguir o conselho de Vandré: quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Não faz isso porque não se tornou sujeito, e sim, objeto, incapaz de raciocinar dialeticamente, como ensina Marx, segundo o qual a leitura do capitalismo deve ser feita pela observação dos passos da moeda, do capital, cujas determinações são contraditórias, dialéticas, o inverso do pensamento mecanicista que toma conta das mentes midiáticas. Existe mecanicismo maior do que o manifestado pela cabeça de Lula em separar a dívida externa da interna, incapaz de perceber que uma é extensão da outra?
As lideranças políticas e midiáticas nacionais, mais uma vez, se mostram à altura do seu próprio nanismo histórico. O imediatismo dos acontecimentos impede que as cabeças mecanicistas, de planilha, se adiantem além do mero marketing, que descarta a história e a memória para evitar o avanço do espírito crítico. No compasso da crise monetária, que balança o mundo capitalista, a inconsciência, alimentada pela carência do debate e do jornalismo em torno do tema, é o alimento do fascismo. Jonathan Nossiter, cineasta nova-iorquino, diretor premiado de Mondovino, fala sobre o assunto, brilhantemente, em entrevista ao repórter Roberto Dávila, em seu Conexão Internacional (24/2).
Depois da Conferência de Bretton Woods, em 1944, o dólar emitido sem lastro se transformou na potência mundial, ancorada nos estoques de bombas atômicas. A arma do dólar foi utilizada para destruir o comunismo e o socialismo, enterrados na queda do muro de Berlim. O dólar, agora, despenca como fortaleza da referência monetária internacional. Sobram as bombas. Na cabeça de quem elas podem explodir, se Tio Sam ficar inteiramente nu no meio da praça global, sem poder sequer cobrir suas vergonhas com seu papel pintado sobredesvalorizado? Vem aí uma neo-Alemanha hiperinflacionária fantasiada de Tio Sam?
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Jornalista, Brasília, DF