Genovês de nascimento incerto (nascido entre setembro de 1933 e fevereiro de 1934), Mino Carta é o senhor da oposição na imprensa brasileira – virtude que ele cultiva ‘com muito orgulho’, como costuma dizer. Ele faz por merecer o título de referência no jornalismo nacional. Publicações como Jornal da Tarde, Veja, IstoÉ e Quatro Rodas, bem como a Carta Capital, a menina dos seus olhos, dão o vislumbre de seus mais de 50 anos de profissão. Considerado o ‘terrível senhor vermelho’ do período da ditadura, Carta não perdeu o espírito crítico e o senso de herói da resistência, caráter revelado, sobretudo, quando diz que ainda utiliza a sua antiga Olivetti e dispensa o computador.
Sem ter ‘rabo preso’, termo apreciado por ele quando se trata de definir seu perfil jornalístico, Carta relata também as verdades sobre a imprensa dos ‘anos de chumbo’. Na conversa, não faltaram ataques à imprensa do país, para ele medíocre e sabuja – o desafeto Mario Sergio Conti, autor de Notícias do Planalto, até rotula de pilantra.
Em entrevista ao Canal da Imprensa, revista eletrônica do Curso de Comunicação Social do Centro Universitário Adventista (Unasp), que debate em sua 41ª edição os 20 anos da redemocratização do Brasil, Mino Carta relembra o Jornal da República, criado por ele em agosto de 1979 e que, apesar de efêmero, buscou fiscalizar o poder e resguardar um período importante da história do país.
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Em Dependência ou morte: a questão da liberdade de imprensa – o caso República, a jornalista Vera Lúcia Rodrigues afirma que a maioria dos jornalistas que compunham a redação do Jornal da República possuía filosofias diferentes. Foi possível estabelecer uma harmonia dentro do jornal?
M. C. – Sim. Havia, é claro, dentro da redação pessoas mais de esquerda e pessoas menos de esquerda. Por isso eu digo que era um jornal de centro-direita. Mas era um jornal definidamente voltado à recuperação da liberdade, à recuperação do sonho de democracia. Agora, dava perfeitamente para sobreviver porque as questões centrais eram muito claras. Era um tempo em que havia no Brasil uma oposição que, embora virtualmente dividida no detalhe, estava realmente compactada em torno de algumas idéias básicas. E a idéia básica era ver-se livre da ditadura militar.
Então o Jornal da República surge como um porta-voz da liberdade de imprensa no país?
M. C. – Bem, a linha editorial não se reduzia apenas a isso. O Jornal da República pretendia ser um jornal voltado para os interesses do país. E naquele momento o primeiro interesse que havia era acabar com a ditadura militar, donde ser esse o primeiro interesse do jornal. Mas ele entendia que havia um processo em curso que mantinha o Brasil num projeto crescente de industrialização e era, portanto, um jornal que se interessava muito pela relação de capital e trabalho. De alguma forma, era de centro-esquerda, o que na época significava ser praticamente uma publicação subversiva.
O senhor afirma que jornais como O Globo, Estado de S.Paulo, Jornal do Brasil e a própria Folha de S.Paulo não foram censurados durante o regime militar. Isso contraria o que eles pregam. Houve ou não censura nestes jornais?
M. C. – Não houve. O que houve foram alguns pequenos episódios em que eles, no começo da censura, foram alcançados como todo mundo por ordens que vinham pelo telefone e depois começaram a vir pelo telex. Eles foram alcançados também por essas ordens no começo da censura. Mas eu acredito que no caso da Folha, do Globo, nunca houve nada. O Jornal do Brasil teve algum pequeno problema, porém num caso específico. Não havia censura efetivamente.
O Estadão teve censura num quadro especial. Ele era dos jornais brasileiros o que mais havia defendido e invocado o golpe de 1964. Mas a questão é que ele depois participou de uma briga interna do novo poder. E nessa briga quem realmente perdeu foi o pessoal da UDN (União Democrática Nacional), da velha UDN. O jornal acabou censurado e o Carlos Lacerda foi cassado. Mas era uma briga interna, uma intriga entre primos.
A censura caiu então sobre os jornais alternativos. O Jornal da República foi um deles?
M. C. – Não. Quando surge o Jornal da República não havia mais censura. Ele surgiu até mesmo porque não havia mais censura. Era um jornal que se sentia à vontade para ser tentado.
Já que não houve censura, por que o jornal fechou em tão pouco tempo?
M. C. – Fechou em pouco tempo porque faltou apoio, porque, embora lançado num momento politicamente oportuno e produzido por uma equipe muito boa, careceu de um projeto financeiro substancioso. Então, logo verificamos que, sem um respaldo financeiro, nós não poderíamos ir adiante. Acumulamos em quatro meses e vinte dias uma dívida monstruosa. Tivemos de recorrer a um banqueiro que tinha um sonho jornalístico também, Fernando Moreira Sales – ele próprio tomou a iniciativa de nos procurar. Basicamente, ele comprou a IstoÉ, que fazia parte do nosso grupo, cobrindo essa dívida muito grande contraída pelo jornal.
Essa falta de respaldo financeiro não pode ser considerada como censura?
M. C. – Não. Não absolutamente. Eu suponho em primeiro lugar um volume de publicidade respeitável. E eu nunca encarei a publicidade como censura. Agora, quando eu falo em apoio financeiro, me refiro a gente que podia entender quais eram as intenções do jornal, as verdadeiras intenções, e compartilhar delas.
Em Notícias do Planalto, Mario Sergio Conti relata que o senhor mostrou o projeto do Jornal da República ao general Golbery. Isto de fato aconteceu?
M. C. – Mas é claro que não. O Mario Sergio Conti é um pilantra. Ele é um verdadeiro sabujo que pulula na imprensa brasileira – uma imprensa coalhada de sabujos. Claro que eu não mostrei. Mas ele conta também que eu fui demitido da Editora Abril, por exemplo. E eu nunca fui demitido dela. Eu me demiti, inclusive, porque não queria levar embora um único tostão do Grupo Abril. Isso eu digo e repito e ninguém nunca me contestou. Só ele me contesta porque foi a essas alturas um sabujo do senhor Roberto Civita.
A sua atuação como diretor de redação da Veja influenciou no fechamento do Jornal da República?
M. C. – Evidentemente eu era um jornalista marcado porque não era simpático ao regime militar. E tampouco era simpático à direita brasileira. Enfim, me consideravam um perigoso senhor vermelho – com muita honra de minha parte. Na hora em que o Jornal da República sai – embora Mario Sergio Conti diga que eu o mostrei ao general Golbery –, é claro que o regime militar ficou atento ao que eu e os demais componentes da redação poderíamos fazer ali.
Mas eu creio que a repulsa maior veio dos próprios concorrentes e veio da falta de compreensão de alguns empresários que, pelo contrário, poderiam ter entendido que aquele era um jornal do futuro. Porém, eles não quiseram se envolver. Foi isso o que aconteceu. É muito simples. E acho até que já estava escrito. Para mim não foi uma surpresa, em outra análise. Tentamos e não deu certo.
O senhor diz que não mostrou o projeto do Jornal da República a Golbery. Mas ele era uma de suas fontes.
M. C. – Claro. Foi uma fonte preciosa em muitas oportunidades. Eu conheci o general Golbery durante o governo Médici. Ele, nesse tempo, era presidente da Dow Chemical do Brasil. Eu o conheci no Rio de Janeiro. Nesse tempo ele me falou muito, e em várias oportunidades em que estive com ele, do projeto que pretendia levar adiante à sombra do general Geisel. A candidatura Geisel ainda não estava decidida, mas ele pensava que à sombra do Geisel, um general de grande prestígio, seria possível levar adiante um projeto de distensão.
Essa distensão significaria o começo de uma abertura no sentido de acabar eliminando o regime militar por uma decisão própria. Quer dizer, o próprio regime acabaria se retirando e devolvendo o poder aos políticos. E mesmo com mil percalços ele acabou levando esse projeto adiante. Isso, por exemplo, não me tornou simpático ao Geisel. O maior elogio que recebi na vida foi do general Figueiredo, o último dos generais-presidentes. Ele disse o seguinte: ‘Ao contrário do Roberto Marinho, ao contrário do Victor Civita (achando que eu era uma figura comparável a esses senhores; não sou porque esses senhores são patrões e eu não sou patrão), Mino Carta, que é um chato, que reescreveria o Evangelho se dependesse dele e que era odiado pelo general Geisel, apesar disso tudo, inimigo do regime, um chato de galochas, é o único que não tem rabo preso.’ Eu acho que foi perfeito porque eu nunca tive rabo preso.
Então, o senhor Mario Sergio, que é um jornalista medíocre, como infelizmente o é a maioria dos jornalistas brasileiros, este sim, tem rabo preso porque serve ao seu patrão. Não precisa haver censura se o patrão manda e eles executam. No entanto, repito: eu nunca tive rabo preso. O Golbery era uma ótima fonte, mas não que ele estivesse ali para me proteger. Eu perdi todos os meus empregos e o Golbery não mexeu uma palha (risos).
O fato da Veja assumir uma linha editorial hostil ao regime militar contribuiu para que o Grupo Abril não recebesse uma concessão de TV durante a ditadura?
M. C. – Não, não. A Veja teve uma posição contrária ao regime militar enquanto eu estive lá. Tão logo eu saí, ela mudou de rumo. Foi totalmente protegida por Antônio Carlos Magalhães. E recebeu uma televisão. Não um canal aberto como a Globo. Mas eles receberam a TV deles: a TVA.
Qual foi o motivo da sua saída da Veja? Foi por causa de censura?
M. C. – Foi pelo fato de que o ministro da Justiça, o (Armando) Falcão, subordinou a saída da censura à minha saída. Eu era a razão da censura. E é verdade. Tão logo saí, a Veja se tornou igual aos outros e começou a apoiar o regime militar.
O senhor chegou a ser preso pelo Dops (Departamento de Ordem Pública e Social)?
M. C. – Preso não é a palavra a meu ver. Uma vez eu fui obrigado a me submeter a um interrogatório que se repetiu por três dias, conduzido pelo famoso Sérgio Fleury. Outra vez eu fui interrogado três dias consecutivos e me colocaram na companhia de torturados para que eu pudesse perceber qual era o risco que corria. E numa outra ocasião, aí sim fui preso, mas a prisão não durou mais que um dia. Eu não dormi na prisão, o que foi muito bom (risos). Então não diria que fui preso como tantos outros foram. Certamente nunca ninguém tentou bater em mim, ou pior, me torturar.
O fato de o senhor ser um estrangeiro chegou a causar intimidação nos militares, o que evitou problemas maiores?
M. C. – Não. Não creio. Eu nem sou um estrangeiro. Cheguei aqui quando menino,estudei aqui. Aliás, quem nasce aqui não tem méritos nenhum. Eu escolhi.
O senhor ainda continua crítico quanto ao jornalismo brasileiro?
M. C. – O jornalismo brasileiro é simplesmente ridículo. Você acha que é possível haver democracia num país onde se pode ser dono de tudo ao mesmo tempo, jornal, revista, televisão, internet, telefonia etc.? É possível? O Brasil não sabe ainda o que é democracia. Basta ver como as pessoas dirigem os seus veículos automotores. O privilégio começa ali. Quem tem carro já tem um privilégio. No entanto, é um país que está a caminho, eu espero. E o que é trágico é que o Brasil poderia ser uma potência, pois é favorecido de mil maneiras. Não é porque tenha uma elite imersa, incompetente. Todas as nossas empresas de mídia estão falidas. Isso não impede que o poder se encante com a Globo – uma entrevista na Globo é o máximo. Mas a Globo está quebrada.
O jornalismo da Carta Capital é um exemplo a ser seguido pela imprensa brasileira?
M. C. – Eu acho que nós praticamos um jornalismo excepcional. Se você comparar a Carta Capital com o resto da imprensa brasileira, dá pena. Isso eu sei porque tenho colegas estrangeiros que confirmam claramente. O jornalismo brasileiro é muito ruim. Você não acompanha o mundo pela imprensa brasileira, você não sabe o que acontece. E não é ruim somente por obra de um projeto ardiloso, feito para nivelar por baixo, desprezar o leitor, o ouvinte ou o telespectador. Não é só por isso. É porque os jornalistas não acreditam naquilo que fazem. E eles fazem coisa ruim, um mau jornalismo.
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Aluno do 3.º ano de Jornalismo do Unasp e articulista da revista Canal da Imprensa