Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um debate que precisa de audiência

A TV está passando por uma grande transformação. Há grandes investimentos em pesquisas para promover a migração do padrão analógico para o digital. Isso implicará mudanças profundas neste que já se consolidou como o meio de comunicação mais influente das nossas sociedades.

Nas poucas reportagens em que aborda o tema, a mídia brasileira trata desta mudança de maneira limitada, como se ela representasse apenas uma melhoria da qualidade da imagem (a chamada alta definição). A mesma imprensa também procura reduzir o tema a uma escolha entre três padrões já existentes: o norte-americano (ATSC), o europeu (DVB) e o japonês (ISDB) – o que, na realidade, oculta o debate político em torno desta mudança.

A chegada da TV digital é muito mais do que a escolha de um dos padrões já implementados no mundo: é um debate que precisa ser acompanhado de perto pela sociedade brasileira, pois se as decisões tomadas num futuro próximo produzirão forte impacto no modo como assistimos televisão e nas formas de sociabilidade mediadas pelas tecnologias, podem também alterar o cenário de concentração dos meios, contribuir para as políticas de inclusão digital e permitir uma apropriação do público sobre o privado.

Portanto, o debate sobre a TV digital deve se tornar efetivamente público imediatamente, sob o risco de todos nós, cidadãos e cidadãs do Brasil, desperdiçarmos uma rara oportunidade de caminharmos rumo à democratização das comunicações e, conseqüentemente, do país.

A falsa polêmica entre importar um padrão e desenvolver um sistema nacional

O debate sobre o desenvolvimento da TV digital no Brasil tem sido reduzido a duas possibilidades extremas: ou se importa o sistema completo (padrão japonês, europeu ou norte-americano), ou se produz tudo localmente. Na verdade, as pesquisas em andamento no país revelam que o sistema brasileiro ideal deveria reunir elementos já ‘consagrados’ em outros países e outros que precisam ser desenvolvidos nacionalmente.

Não há interesse em inventar a roda. Se todos os sistemas usam, por exemplo, um padrão de multiplexação de vídeo (processo de junção de diferentes sinais de vídeo em um só feixe de transporte), não há necessidade de criar algo específico para o país. Por outro lado, mesmo que escolhamos um sistema já existente, será necessário fazer adaptações para a realidade brasileira (por exemplo, quanto à recepção do sinal, dada a nossa topografia específica).

Considerando que um sistema seria uma ‘colagem’ de diversas tecnologias usadas para diferentes finalidades – antenas inteligentes, som, modulação e codificação do sinal, set top box (aquela caixinha acoplada que já usamos para a TV paga), softwares, entre outras coisas – podemos concluir que a questão central neste debate não está entre importar um padrão ou desenvolver um padrão exclusivo brasileiro, mas em encontrar o melhor sistema para o país.

As perguntas que devemos fazer são: quais são as vantagens de produzir nacionalmente elementos do sistema de TV digital a ser adotado no Brasil? Por que os empresários do setor defendem a simples adoção de um ‘padrão’ já existente? Por que o governo hesita diante deste debate? Por que a sociedade não está sendo envolvida neste processo?

Em primeiro lugar, a produção local tem o objetivo de fortalecer a pesquisa brasileira (estimulando nossas universidades e centros de pesquisa e gerando empregos qualificados), diminuir nossa dependência externa de produtos de alta tecnologia e criar uma indústria nacional, iniciativas fundamentais para que o país não perpetue sua dependência tecnológica e industrial em relação aos países desenvolvidos.

Em segundo lugar, somente um modelo desenvolvido a partir das realidades do país pode responder ao desafio de ser um instrumento que impulsione nosso desenvolvimento social, cultural, político e econômico. Basta dizer, neste caso, que uma TV digital brasileira pode ser um importante instrumento de inclusão digital, o que não é uma necessidade para um país como os Estados Unidos, cujo padrão prioriza a alta definição ao invés da interatividade. No Brasil, menos de 20% da população usa computador e Internet em casa, mas mais de 90% têm TV. E a TV digital permite que a TV seja interativa. Sendo assim, por que não usar esta TV interativa para fazer inclusão digital? Tal exemplo é um dos que evidenciam a necessidade de desenvolvermos uma tecnologia nacional.

Interatividade a serviço da sociedade

As ‘maravilhas’ da TV digital apresentadas pela imprensa são novidades vinculadas à criação de serviços comerciais, como venda interativa, jogos, consultas personalizadas (previsão do tempo, resultado de jogos), pay-per-view, etc. Ou seja, novidades que certamente incrementariam os lucros dos detentores das emissoras de televisão.

A TV digital, entretanto, pode cumprir um importante papel na afirmação da cidadania. Com o uso da interatividade, por exemplo, a TV pode disponibilizar nas casas dos brasileiros serviços interativos de educação (que respondem às demandas específicas de cada usuário), de governo eletrônico (declaração de imposto de renda, pagamento de taxas, extrato de fundo de garantia, boletim escolar dos filhos, etc.), uso de correio eletrônico (cada brasileiro com uma conta de e-mail) e, no limite, acesso à toda a Internet.

Outro grande impacto da TV digital que deve ser urgentemente discutido pela sociedade é a possibilidade de inserção de mais canais de TV, a chamada multi-programação. No mesmo espaço onde hoje se transmite um único canal, a TV digital permite a recepção de quatro novas programações (desde que não seja adotada a alta definição). Se levarmos em conta que a TV digital irá ocupar (ao final do período de transição) o espaço que vai do canal 7 do VHF ao 69 do UHF, veremos que se torna perfeitamente possível a ampliação dos emissores de programação e, assim, a ampliação significativa dos produtores de conteúdo televisivo. Assim, além dos operadores privados e estatais, também sindicatos, associações, ONGs, movimentos sociais e emissoras geridas coletivamente poderiam ter seus canais.

Mas o interesse do empresariado de comunicação evidentemente não é discutir a possibilidade de outros sujeitos ocuparem novos canais em um espaço que historicamente foi monopolizado por ele. As associações que o representa possuem um forte lobby junto aos poderes da União (Executivo, Legislativo e Judiciário), que dificulta quaisquer mudanças que apontem para uma maior democratização da radiodifusão.

Em relação à TV digital, os empresários têm demonstrado grande resistência em aceitar o desenvolvimento de tecnologia nacional.

Primeiro, porque, ao invés de uma política industrial brasileira, eles preferem fazer acordos comerciais com as multinacionais que representam os sistemas já existentes (Sony, Phillips, Nokia, Siemens, Motorola, etc).

Segundo, porque preferem usar o potencial da TV digital para a criação de serviços comerciais e não para governo eletrônico ou educação à distância, por exemplo.

Terceiro, porque temem que serviços interativos possam atrair para a TV digital as empresas de telecomunicações, que, em geral, são estrangeiras e possuem muito mais recursos financeiros do que as emissoras de televisão do Brasil.

Por fim, as emissoras querem reproduzir com a TV digital o atual cenário de concentração e negar a possibilidade de participação de novos atores neste espaço. A defesa da alta definição, propagandeada para os modelos norte-americano e japonês, mais do que uma estratégia comercial para atrair o consumidor pela melhoria da qualidade da imagem, significa impedir o surgimento de novas programações e, portanto, de novos ‘concorrentes’, sejam eles públicos ou privados.

Helio Costa: representante dos interesses privados?

O governo FHC previa a escolha entre os três sistemas existentes. No governo Lula, o debate avançou para a possibilidade de se criar um Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD). Ainda em 2003, foi criado um fórum governamental (Grupo Gestor) para definir as políticas da TV digital, assessorado por um Conselho Consultivo com representantes da sociedade civil. Em paralelo, o governo divulgou 22 editais de pesquisa para que consórcios formados por universidades, centros de pesquisa e empresas pudessem desenvolver as peças que, juntas, formariam o SBTVD.

Apesar destes avanços que apontavam para o desenvolvimento de tecnologia nacional para um SBTVD, o atual ministro das Comunicações, Helio Costa (PMDB-MG), ignorou todo este acúmulo e anunciou que o desenvolvimento de uma pesquisa nacional era secundário diante da necessidade de se começar logo as transmissões digitais, praticamente descartando quaisquer mudanças no cenário atual.

Mais recentemente, as ações do ministro revelam a nítida intenção de considerar exclusivamente os interesses dos empresários detentores das concessões públicas, fazendo da TV Digital instrumento de ampliação do potencial comercial destas emissoras – e nada mais.

Tal prática pode ser comprovada pelo profundo desrespeito aos processos em andamento, tanto em relação ao Conselho Consultivo quanto em relação aos consórcios de pesquisa: em reuniões realizadas nas últimas semanas, por exemplo, Hélio Costa tem anunciado que já negociou com o Ministério da Fazenda a isenção de impostos para a importação de equipamentos.

Segundo tem declarado publicamente, o ministro defende que os parceiros fundamentais nas decisões sobre o SBTVD são as redes de televisão e, por isso, é delas que devem partir as diretrizes para a digitalização da televisão brasileira. Ou seja, ao invés de defender os interesses do país, Hélio Costa atua como um típico representante de interesses particulares, aproveitando-se do momento político conturbado para cristalizar um modelo que, fosse o debate sobre a digitalização transparente e democrático, seguiria outro rumo.

Ainda que não seja o único interessado no tema da TV digital no interior do governo Lula, a opinião do ministro deverá ser considerada nas decisões políticas a serem tomadas em breve pelo governo.

É importante lembrar que, ao todo, foram previstos R$ 80 milhões para o desenvolvimento do SBTVD. Destes, somente R$ 38 milhões foram liberados. Mesmo com poucos recursos, os pesquisadores já demonstraram que a inteligência nacional é perfeitamente capaz de construir um sistema bastante complexo e satisfatório do ponto de vista técnico. Por isso, não é possível tolerar argumentos vindos do próprio governo que defendem que o país não possui condições de desenvolver o SBTVD.

Sociedade civil pela democracia nas comunicações

Diante da postura do titular da pasta das Comunicações, que coloca em xeque o desenvolvimento do Sistema Brasileiro de TV Digital, é preciso reafirmar com convicção que somente um sistema desenvolvido nacionalmente será capaz de dar respostas satisfatórias às necessidades do país. Mais do que desenvolver um sistema, porém, é fundamental que as decisões sobre a TV digital – que são políticas, não técnicas – sejam fruto de um amplo debate público, não exclusivo do Executivo federal e dos empresários do setor.

Para que o interesse público prevaleça, a sociedade civil deve, com urgência, se tornar protagonista dos debates que envolvem a TV digital, tanto pela valorização do Comitê Consultivo como pela introdução de mecanismos que possibilitem a participação da sociedade civil nas principais decisões relativas à digitalização da televisão brasileira.

Ao mesmo tempo, é preciso garantir transparência nos processos decisórios do governo federal para que os lobbies empresariais não sejam os únicos a exercerem influência sobre aqueles que têm o poder de decidir sobre os rumos do SBTVD. Sem transparência, não há como fazer prevalecer o interesse público.

Por isso – e por acreditar que a TV digital é uma grande chance para que o país caminhe rumo à democratização das comunicações, além de uma oportunidade de elevar para um patamar político o debate sobre o direito humano à comunicação no Brasil – convocamos toda a sociedade a se engajar na luta para que o país faça uma opção por um sistema de televisão digital nacional, que atenda aos reais interesses da Nação.