A leitura das seções de cartas dos jornais e revistas é um exercício interessante para o entendimento da relação entre a sociedade e a realidade. Embora, evidentemente, todas as cartas passem pelo crivo dos interesses de cada veículo, não há como escapar das ansiedades, medos e desejos de cada missivista. Mas também não há como deixar de observar que os leitores parecem perplexos diante da realidade que a imprensa lhes apresenta. As opiniões, em geral focadas em parcelas ínfimas dos temas noticiados, denunciam certa incapacidade do público de apreender a realidade por inteiro, seja nas questões políticas, seja nos fatos econômicos ou nos relatos sobre as mazelas sociais.
E não são apenas os leitores que sentem, eventualmente, que a realidade apresentada pela mídia se apresenta fragmentada. Jornalistas também se queixam de que certos temas parecem hoje mais complexos do que eram há alguns anos. Certamente, tanto leitores como profissionais da imprensa têm motivos para sentir certa perplexidade diante da velocidade com que o mundo parece caminhar.
Como diz o economista Ignacy Sachs, vivemos hoje como quem caminha sobre cacos de paradigmas, mas isso não explica a incapacidade da imprensa de reunir em seus relatos as facetas variadas dos fatos. Apenas mostra que ela tenta ainda explicar o mundo contemporâneo utilizando paradigmas que já perderam a validade, ou que nunca tiveram, ou cuja aplicação sempre serviu para justificar um sistema social e econômico injusto e incapaz de oferecer esperanças de um mundo aceitável.
Lucro como prioridade
Quando se fala em economia, por exemplo, fica difícil explicar a insistência da imprensa, de modo geral, em justificar o lucro sem qualquer relação com outros elementos do sistema produtivo, como a propriedade dos insumos naturais, os efeitos da atividade no meio ambiente, ou a utilidade de determinados produtos, ou mesmo os efeitos sociais de certos processos.
A imprensa deveria assumir a vanguarda dos debates sobre os modelos de desenvolvimento, mas se nega a abandonar os velhos paradigmas que buscam justificar o lucro como prioridade de todos os negócios. Por mais que certas forças econômicas – às quais a imprensa majoritária eventualmente se alia – procurem, de tempos em tempos, desautorizar os estudos científicos sobre os males causados ao planeta por práticas de produção irresponsáveis, não há como fugir às evidências de que o sistema precisa mudar.
O avanço da globalização, com todas as suas intercorrências – como o terrorismo e o aumento da vulnerabilidade nas relações de negócios e de Estado –. colocou a nu a natureza do capitalismo depois que seu contraponto, a economia socialista, foi descartada pela imprensa e por muitos pensadores como uma alternativa viável. Acontece que foi justamente por se apresentar como único modelo de desenvolvimento possível para todo o planeta que o sistema econômico vigente começou a ser visto em sua plenitude, com todas as misérias que carrega, entre elas a que coloca sob risco a sobrevivência do ser humano.
Não se está aqui afirmando, claro, que o sistema soviético ou o modelo chinês possam ser considerados exemplos de preservação ambiental e justiça social. Muito ao contrário e longe disso: são também histórias escabrosas de destruição de recursos naturais e truculência política. Mas o que se considera triunfo do capitalismo significa também que o sistema foi colocado a nu, e o retrato não é bonito.
O triunfo ou o abismo
Essa questão, porém, fica para os especialistas. Tratamos aqui de observar como a imprensa faz o relato da realidade exposta pelo triunfo do capitalismo, e de como se nega a assumir que novos paradigmas são essenciais para entender essa realidade e para fazer a crítica do sistema. Se a percepção geral da sociedade indica que nada justifica o crescente abismo social, as diferenças de renda, a falta de segurança quanto ao futuro, a crise nos sistemas de saúde, a falta de moradias e de condições de higiene para bilhões de seres humanos e o risco de extinção de recursos naturais, seria natural que a imprensa buscasse outros paradigmas para julgar os fatos econômicos e políticos.
Mas os jornalistas insistem em utilizar velhas métricas para calcular o desenvolvimento das sociedades e não conseguem enxergar a complexidade que nos envolve. Muito provavelmente, a sensação de fragmentação que atinge leitores e comunicadores nasce dessa incapacidade de criar ou aceitar novas lentes para a observação dessa realidade. O conhecimento científico alcançado pela humanidade não deixa brechas nem justificativas para ambições menores do que a produção e distribuição de oportunidades de vida digna para todos. Ao contrário do que nos grita todos os dias a mídia, o conhecimento deve nos aproximar das utopias, e não renegá-las.
O conformismo que vaza nas cartas dos leitores retrata essa visão fragmentada, mas a realidade segue se oferecendo, inteira, para quem esteja disposto a superar os velhos paradigmas.
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Jornalista