Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Luiz Weis

‘Há 30 anos, de hoje a 20 dias, Vladimir Herzog, o Vlado, diretor de Jornalismo da TV Cultura, morreu torturado no DOI-Codi do II Exército – o ‘Tutóia Hilton’ de São Paulo onde ele se apresentou naquela sábado de manhã, como combinara com os beleguins que tinham ido prendê-lo na noite da véspera, quando ele se preparava para pôr no ar o telejornal da emissora.

Desde ontem, Dia Internacional da Anistia, até o fim do mês, uma sequência de eventos e manifestações chamará a atenção para o episódio singular que escancarou como nenhum outro as abjeções da ditadura de 1964. Porque os seus algozes não só acabaram a choques elétricos com uma vida humana como ainda tentaram impingir ao público a farsa de um suicídio impossível.

Saem agora a 6.a edição do livro indispensável sobre a tragédia, Dossiê Herzog – prisão, tortura e morte no Brasil, do jornalista Fernando Jordão, e a memória pessoal de outro jornalista, Paulo Markun, Meu querido Vlado. Além disso, estreou dias atrás o documentário Vlado, 30 anos depois, de João Batista de Andrade. Mas que pode significar o outubro de 1975 no Brasil de 2005?

A resposta mais fácil é que a pergunta é ociosa: quem conhece o valor da liberdade tem o dever, sempre, de sacudir os esquecidos, aborrecer os indiferentes e contar aos desinformados o que foram as barbaridades da tirania nascida de um golpe de Estado que, para derrubar um presidente legítimo, se fez passar por uma revolução democrática. Ainda assim, a questão procede.

Neste País, já se disse, a cada 15 anos se esquecem os 15 anos anteriores. Só por isso já seria oportuno lembrar que, ao longo de duas décadas, a ditadura eliminou presumivelmente 369 pessoas, a maioria em 224 locais de tortura. É sabido que boa parte delas, a exemplo do Vlado, era inocente de ter pegado em armas (o que os golpistas, por sinal, foram os primeiros a fazer).

Isso significa que, se tivesse resistido às sevícias, seria mais um torturado contra quem não se conseguiria construir uma acusação que ficasse em pé. Decerto seria impronunciado, ou absolvido – como tantos dos 105 indiciados no IPM do PCB a que admitiu ser filiado, e dos 4.124 processados durante o regime de força, com base na infame Lei de Segurança Nacional.

Ora, se dirá, falar disso é revolver o passado. Um despropósito, Pior: revanchismo. Afinal, se algo não está em causa, nem esteve desde que o último dos generais-presidentes saiu pela porta dos fundos do Palácio do Planalto, em 1985, é a prevalência do sentimento democrático entre os brasileiros e a robustez das instituições chanceladas por uma Constituinte eleita pelo povo.

Isso é verdade, e se de algo serve a atual crise política é para mostrar que ela não se presta a espasmos autoritários. Mas um falso Vlado também mostrou um ano atrás que o passado não passou inteiramente. Em 17 de outubro, o Correio Braziliense publicou uma foto que parecia ser a do jornalista preso e humilhado. Era, na realidade, de um padre canadense.

A primeira reação do Exército foi uma escandalosa nota de louvação à ditadura, que exumou os velhos pretextos para amordaçar o País (‘movimento subversivo’, ‘comunismo internacional’) e teve a suprema indecência de se referir às mortes ‘que teriam ocorrido’ durante ‘as atividades necessárias para desestruturar os movimentos radicais e ilegais’.

Por exigência do presidente Lula, o comandante da Arma emitiu um texto de retratação, praticamente ditado. Na Argentina e no Chile, os militares tomaram a iniciativa de pedir perdão pelos crimes de suas ditaduras. Aqui, o chamado sinceramiento ainda não chegou. O fato de que morreram muito mais civis nesses países não justifica o silêncio que impede virar a página hedionda.

De todo modo, há um sentido mais profundo, que conduz ao Brasil de hoje, em recordar a morte do Vlado. Para tal, é preciso evitar de saída a tentação de dizer que ele se imolou por suas convicções, ou qualquer coisa parecida com esse clichê, razão pela qual os brasileiros defensores da democracia, dos direitos humanos e da justiça social deveriam reverenciar o seu nome.

O que se deve reverenciar, além da integridade que era a sua segunda natureza, são os motivos pelos quais ele queria viver – no Brasil. Podendo ficar em Londres, para onde se mudara com a mulher e onde nasceram os seus filhos, resolveu voltar, em plena ditadura, porque acreditava que poderia fazer algo melhor do que meramente ‘consumir cultura’, como escrevia aos amigos.

O plano de vôo do jornalista, cineasta e criador cultural Vlado Herzog era orientado por um compromisso denso e angustiado com a divulgação da verdade, como instrumento de mudança social. E esse compromisso era a outra face de sua rara capacidade de sentir compaixão – e não menor indignação com os motivos aos quais respondia o seu temperamento compassivo.

Trabalhar com a propagação da verdade, para ele, tinha duas finalidades entrelaçadas: abrir uma brecha na muralha de exaltação patriótica que o regime do fascistizante ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’ impunha ao grosso da população, graças ao seu controle absoluto sobre a mídia eletrônica; e ajudá-la a entender porque a economia ía bem, mas ela ía mal.

Hoje, a mídia eletrônica é mais crítica do que nunca. Não há presos políticos, mas a tortura é rotina. E, entra governo, sai governo, nada tira do Brasil a condição de só não ser mais desigual do que quatro pseudo-Estados africanos. Porque parecem inamovíveis os mecanismos que perpetuam a iniquidade brasileira.

Eis, afinal, onde a memória do Vlado se encontra com o País de 2005 que o indignaria não menos do que o de há 30 anos. E eis para que serve lembrá-lo: para que não esqueçamos de nos indignar.

Luiz Weis é jornalista’



Paulo Markun

‘Vladimir Herzog, 30 anos agora’, copyright O Estado de S. Paulo, 9/10/05

‘No início da década de 70, com os grupos de extrema esquerda dizimados ou recolhidos, o diminuto e ilegal Partido Comunista Brasileiro tornou-se o alvo preferencial da repressão – com o aval do presidente Ernesto Geisel. Considerado pelos órgãos de segurança como ‘o maior perigo para as instituições democráticas’ e o grupo mais eficiente na política de acumulação de forças, o PCB entrou na linha de tiro do regime militar. Em menos de dois anos, 12 de seus dirigentes foram assassinados sob tortura e centenas de militantes foram seqüestrados, presos e processados.

A ação política no fio da navalha entre o permitido e o proibido para construir uma frente democrática contra o regime de exceção, atraiu figuras como Vladimir Herzog, que se ligou ao Partido Comunista não iludido, mas de caso pensado. Ao contrário do que muitos imaginam, nenhum de nós atuava na imprensa como teleguiados de Moscou ou do PCB. Por isso, antes de assumir o jornalismo da Cultura, Vlado deixara claro o que pretendia – e teve o aval do governo do Estado:

Jornalismo em rádio e TV deve ser encarado como instrumento de diálogo, e não como um monólogo paternalista. Para isso, é preciso que espelhe os problemas, esperanças, tristezas e angústias das pessoas às quais se dirige.

Um telejornal de emissora do governo também pode ser um bom jornal e, para isso, não é preciso ‘esquecer’ que se trata de emissora do governo. Basta não adotar uma atitude servil.

O telejornal ganhou ritmo e abrangência. Suas matérias discutiam os maiores problemas da cidade e do País, ouvindo tanto as autoridades como os cidadãos. Relembramos, em longa reportagem, os dois anos do golpe militar que havia derrubado o presidente Salvador Allende do governo do Chile. Demos o mesmo espaço às convenções da Arena e do MDB. Registramos inclusive as notícias relevantes relacionadas ao II Exército.

Mas não adiantou: tendo como pretexto uma reportagem da BBC sobre o Vietnã, começou uma campanha denunciando a Cultura como um antro de subversão. Éramos o alvo imediato, mas o que essa turma afinada procurava atingir, na verdade, eram o secretário da Cultura, José Mindlin, o governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins, o chefe da Casa Civil da presidência, Golbery do Couto e Silva, e o próprio general Ernesto Geisel.

Como os arquivos da ditadura ainda seguem fechados a sete chaves, é impossível saber se essa campanha levou à sua morte. As notinhas em colunas e os discursos na Assembléia coincidiam com a chamada Operação Radar, que nos primeiros dias de outubro arrebanhou os dirigentes do comitê estadual em seus endereços supostamente seguros.

Ao ser preso, no dia 17 de outubro de 1975, junto com Dilea Frate, minha mulher na época, eu só conhecia a tortura pelos relatos discretos de colegas que haviam passado pelos porões do regime e no impressionante relato do argelino Henry Alleg num livro prefaciado por Jean-Paul Sartre. Torturado em Argel, no início dos anos 50, Alleg resistiu inclusive ao chamado soro da verdade, o pentotal, e mais tarde descreveu com minúcias o trabalho cruel dos pára-quedistas franceses.

No Doi-Codi não repeti a bravura do argelino. Tampouco tive como praticar o jogo terrível de ganhar tempo inventando histórias falsas para permitir que outros companheiros pudessem escapar da prisão. Meus colegas de militância eram jornalistas com emprego certo e endereço conhecido, que nem sequer tinham para onde ir. Na verdade, nem cheguei ao limite da resistência física, como os que sofreram dias, semanas, meses antes de morrer ou ceder. Ao ser submetido aos mesmos choques elétricos que minha mulher recebia na sala ao lado, constatei que o limite da dor pode estar fora de nosso próprio corpo, no sofrimento alheio.

Uma semana depois, na noite de 24 de outubro, dois agentes entraram na TV Cultura procurando por Vladimir Herzog. Na manhã seguinte, cumprindo o que prometera horas antes, Vlado apresentou-se ao Doi-Codi. Foi torturado antes de ouvir dois companheiros explicarem como era inútil negar a ligação com o Partido, já devastado. Escreveu um bilhete ditado por seus algozes, admitindo sua militância, e pouco depois foi assassinado.

Às pressas, construíram a cena de seu ‘suicídio’, o 38º de uma lista a que se acrescentaria o nome do metalúrgico Manoel Fiel Filho, meses depois. Avalizada pelo próprio Geisel, ao mandar instaurar um inquérito, tendo a conclusão como premissa – feita para apurar o ‘suicídio’ de quem tinha sido assassinado sob tortura -, a farsa não foi aceita pela sociedade civil. Pela primeira vez, os brasileiros reagiram de modo firme e sereno à tamanha violência, numa mobilização coordenada pelo sindicato dos jornalistas, com a participação dos estudantes, parlamentares da oposição, igrejas e outras entidades profissionais.

No dia 24 de janeiro de 1976, junto com a nota oficial do comando do II Exército informando outro ‘suicídio’, o de Manoel Fiel Filho, a imprensa publicou um manifesto com mais de mil assinaturas, contestando o IPM do caso Herzog e o depoimento extra-judicial do jornalista Rodolfo Konder, que vira Vlado na sala de tortura.

Vlado foi parar no olho do furacão por força das circunstâncias. Entrou para a história como vítima e mártir involuntariamente. Mas a reação à sua morte foi um marco no processo de abertura política não por sua inocência, mas por suas convicções e sua ação como homem, jornalista e ser político.’



ENTREVISTA / ANTONIO NEGRI
Carlos Marchi

‘O poder de se comunicar furiosamente’, copyright O Estado de S. Paulo, 9/10/05

‘Entre o público e o privado, o filósofo italiano Antonio Negri fica com o comum, o espaço onde se mobiliza e se movimenta a Multidão. Considerado o grande pensador da nova esquerda mundial, Negri afirmou, em entrevista exclusiva ao Estado, que o terceiro mundo não está mais ao Sul do Equador, mas em todo lugar, inclusive nos países desenvolvidos. ‘O furacão nos mostrou essa realidade monstruosa: ele está em New Orleans’. O filósofo-coqueluche da Europa diz que o mundo globalizado do século 21 está, afinal, unificado, mas movido por dois vetores que se confrontam e se complementam, como yin e yang: de um lado, o Império e, de outro, a Multidão.

A globalização gerou o Império, o sistema que controla a produção e o fluxo econômico, mas também abriu as fronteiras nacionais e mundializou as relações pessoais, gerando a Multidão, a nova revolução das pessoas que se comunicam furiosamente, fora do controle de qualquer Estado, sem o estímulo das velhas ideologias e sem as limitações das fronteiras nacionais, que caminham para a extinção. Antonio Negri, 72 anos, inventor do Potere Operaio, exilado por 16 anos na França e preso por 6 na Itália – e que chega ao Brasil no dia 22 de outubro – diz que assim é o mundo novo.

‘Estou convencido de que é o comum que nos permite ampliar as liberdades’, afirma ele, quebrando pilares centenários da velha esquerda que já perfilhou com ardor e pregando um novo pensamento comunitário: ‘A Multidão não é revolucionária’, agrega, ‘mas ela pode construir uma consciência de transformações profundas’. Com o americano Michael Hardt, da Universidade de Harvard, ele é autor dos dois livros mais instigantes dos últimos anos: Império, que conceituou o sistema de dominação consolidado pela globalização; e agora Multidão (Editora Record), que será lançado dia 24, no Rio, e que explica o efeito das comunicações globais sobre a Multidão, a grande ‘assembléia-geral mundial’ do século atual.

Negri defende o presidente Lula à direita e à esquerda. Diz que o presidente brasileiro é ‘muito melhor’ que a esquerda cega que ainda se agarra a conceitos superados, como imperialismo e colonialismo. Ele não se assusta com os escândalos na base parlamentar do governo e diz que ‘democracia representativa é isto mesmo’. Põe ênfase na voz e dá um cheque em branco a Lula: ‘É provavelmente o menos corrupto de todos os governantes que conheço’. Por fim, afirma que Lula rompeu as regras da globalização quando fechou as contas do FMI e ao estabelecer linhas de relacionamento Sul-Sul – e que isso trouxe repercussões globais.

Para completar as marteladas na esquerda, Negri detona a velha e sacrossanta classe operária: diz que ela é ‘fechada sobre si mesma’, foi organizada pelo capital, excluiu os pobres e as mulheres e atua ‘dentro de um conceito diretamente produtivo’. A Multidão, observa com fé, é mais abrangente: inclui mulheres, pobres, imigrantes, e compreende todos aqueles que produzem no terreno social, e não somente sobre o terreno industrial. ‘Esta é a grande diferença’, comemora.

Negri decreta que o século americano acabou e que o presidente George Bush não conseguiu fazer com que a guerra se tornasse um elemento de legitimação do Império. ‘Hoje a guerra continua na agenda deles, mas a resistência da Multidão os impediu e continuará impedindo’. Esse filósofo cáustico, que desafia a lógica do marxismo e navega num zênite original, criando novas âncoras do pensamento social, cultivou a ira do Fórum Social Mundial ao pregar que a esquerda não podia ignorar ou combater a globalização. A globalização, alega, é irreversível. Ela existe e, mais que existir, pode se transformar em arma do povo reunido na Multidão. Eis a entrevista:

Em 2003, quando veio ao Brasil, o senhor disse ter a impressão de que Lula estaria aceitando as regras da globalização. Dois anos depois, o que pensa a respeito?

Hoje eu estou convencido de que Lula tem sido capaz de romper as regras da globalização. Lula e o governo brasileiro têm sido capazes de uma operação que raramente – e só muito raramente – foi possível a governos de grandes países, no âmbito da globalização. Estou falando do rompimento com o estatuto da dependência. Isso se deu através de duas operações fundamentais. De um lado, o acerto de contas com o FMI; de outro, a abertura, extremamente importante, de uma linha Sul-Sul. Portanto, as operações feitas por Lula inventaram uma novidade, ao quebrarem a centralização que o unilateralismo americano impunha à globalização. Esses são dois êxitos de importância global, e sua relevância internacional é muito maior do que os ganhos que o Brasil auferiu com elas.

O Brasil vive, há quatro meses, sob um enorme escândalo político na base parlamentar do PT e do governo. Isso é um sinal de decadência da esquerda ou da democracia representativa?

(Ri) Trata-se da revelação da natureza da democracia representativa, que, como os estudiosos sabem, foi fundada sobre regras de corrupção. Essas regras da corrupção são inevitáveis no âmbito de um sistema que, em vez de representar os interesses das massas – alguém diria populares, mas eu uso pouco essa adjetivação, prefiro dizer dos interesses da Multidão – dentro do governo, faz com que elas se manifestem através de uma representação, que inclui uma expropriação do poder na representação política, uma forma de representação que foi inventada há muitos séculos. Desde o nascimento do sistema capitalista, essa representação se mostrou muito útil aos interesses do desenvolvimento capitalista, porque se baseia numa série de referências de poder estranhas ao Parlamento, como o poder da mídia e das empresas multinacionais. Desse ponto de vista, vejo o governo democrático de Lula provavelmente como um dos menos corruptos entre todos os que eu conheço, do governo americano de (George W.) Bush ao governo italiano de Silvio Berlusconi. Não consigo entender por que a indignação pôde chegar a níveis tão altos.

Esse escândalo dificulta a trajetória da esquerda no Brasil e na América Latina?

No livro que publico agora com Giuseppe Cocco, Global – Biopoder e luta numa América Latina globalizada, critico a esquerda latino-americana, essa esquerda que ainda se prende a conceitos de dependência, e que não é a esquerda de Lula. Por causa da sua total incompreensão sobre os reais problemas da globalização, diria que é uma esquerda cega, que reproduz, no que diz respeito às formas de transformação no Brasil, um antigo esquema eurocêntrico. É uma esquerda que, presa aos conceitos de imperialismo e do colonialismo, nunca entendeu os grandes processos da globalização e da modernização. Lula é enormemente superior a essa esquerda.

Por que a esquerda, em geral, tem uma dificuldade colossal de administrar o poder com democracia?

Não diria que a esquerda tem uma dificuldade colossal em administrar o poder com democracia. Ela tem seguido, isso sim, os velhos critérios da democracia burguesa representativa. Insisto, não consigo entender a indignação de vocês no Brasil. Na Itália, temos um patrão. A pessoa mais rica do país é o dono do Estado e, ao mesmo tempo, da televisão e dos jornais. Por isso, não consigo entender a indignação de vocês. Vocês têm de entender que democracia é isto mesmo, e não uma outra coisa. É um sistema de representação que delega poder a alguns indivíduos mais ou menos corruptos. Lula é o menos corrupto de todos aqueles que estão no poder. O seu grande defeito foi confiar na democracia e não usar, como faz (o primeiro-ministro Silvio) Berlusconi, operações financeiras para dominar o capital dos grandes jornais.

Mas Lula bem que tentou aprovar leis para controlar a imprensa.

A ingenuidade de Lula foi, governando neste regime, não criar condicionantes para as grandes cadeias de televisão e a mídia. Ele precisa ser realista nisto. Eu sou completamente maquiavélico. O poder é o que é, essa imundície na qual estamos mergulhados, mas que, de qualquer forma, precisamos controlar.

O senhor acha que Lula fez avançar as conquistas da esquerda na América Latina?

Eu acredito que a democracia latino-americana conquistada através de Lula é irreversível. Lula vencerá. Vencerá! E eu espero que, no próximo governo, ele consiga mobilizar os movimentos sociais por dentro e não simplesmente atrelá-los ao governo. Eu penso que as grandes forças sociais, e sobretudo as grandes forças sociais da Multidão, populares, étnicas, possam movimentar-se dentro do âmbito do governo. Eu espero que tudo isso venha a acontecer no novo mandato que Lula terá. E quando estiver no Brasil insistirei, onde quer que seja, e sempre, sobre este tema. Lula não é um ditador, nem é um corrupto, é um homem que conseguiu construir uma nova idéia de democracia para a América Latina inteira. É o único que trouxe uma proposta renovadora e a apresentou em condições realistas, começando por um nível mundial, um nível global. Ora, esta burguesia brasileira, que esfacelou o País e que, também, destruiu, em vários momentos, a capacidade de governar de alguns de seus melhores quadros, agora é quem se indigna, querendo retomar o governo. O que seria esse governo da burguesia senão corrupção, organizado para obstaculizar a renovação e favorecer o seu próprio bolso?

O senhor disse que lançará, no Brasil, em parceria do professor Giuseppe Cocco, um livro sobre os efeitos da Multidão nos países em desenvolvimento. Como se formará e se manifestará a Multidão nesses países?

Falar hoje de ‘países em desenvolvimento’ é já muito redutivo. Nos EUA, por exemplo, New Orleans passou a ser um país em desenvolvimento. O tufão revelou essa realidade monstruosa – o terceiro mundo está em qualquer lugar. Você pode encontrá-lo em Los Angeles, em New Orleans, na periferia parisiense e em todos os países desenvolvidos. Hoje a discussão sobre o mundo em desenvolvimento é um problema de cada governo e este problema revela a natureza da esquerda ou da direita: a direita finge não vê-lo, a esquerda o considera. A esquerda que vale a pena, a esquerda necessária o tem na conta de primeiro problema a resolver. Mas se você disser tudo isso a grupos dirigentes do primeiro e do terceiro mundos, vai parecer incorrer em total contradição. Porque para muitos governantes esses problemas não existem. Uma das coisas mais características da globalização é justamente a generalização e a homogeneização desses problemas. O MST não existe apenas no Brasil, existe em vários lugares, nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Em todos os lugares há uma aspiração de toda uma população a se tornar cidadã.

Como funciona a evolução das massas nos países em desenvolvimento?

Esta é uma pergunta de um milhão de dólares… (ri) Há quem dê a esta pergunta a resposta do islamismo, isto é, ‘tomemos o petróleo’. Mas existem outras respostas bem mais sérias. Há aqueles que dizem: precisa haver igualdade. Precisa haver igualdade. E, uma vez que o novo modo de produção se baseia essencialmente em formação e informação, é necessário construir meios formadores e informáticos que sejam comuns, isto é, é preciso construir escolas e grandes redes de comunicação, os meios que nos permitem viver e produzir, renovar e aumentar a nossa riqueza. Esses são os projetos em torno dos quais podemos desenvolver e construir realidades comuns, deixando as privatizações de lado. Deixar de privatizar, não para tolher a liberdade – não é verdade que as coisas privadas garantam a liberdade. E digo mais: nem mesmo o regime público nos permite ampliar a liberdade. Eu estou convencido que o comum é que nos permite ampliar a liberdade. E este comum é a Multidão, que é a resposta à sua pergunta. Em nossa civilização, nós fazemos três-quartos das coisas do nosso cotidiano sem a presença do Estado. São coisas que fazemos dentro do patamar de liberdade das relações que estabelecemos entre nós. E a riqueza disso está na abundância das nossas relações sociais. Isto é o que importa: o comum. O comum é a coisa mais simples e bem repartida que existe no mundo, são as ruas, as escolas, os idiomas, todas as coisas de que nem sempre nos damos conta, mas que devemos administrar no nosso dia-a-dia.

Há dois anos o senhor disse que era preciso impedir que a guerra se tornasse um elemento de legitimação do Império. Depois de dois anos, a situação piorou?

Não, não piorou. A guerra não se tornou um elemento de legitimação do Império. Ou melhor, as forças unilaterais, os americanos, pensaram em legitimar o Império, ou o seu domínio sobre o Império, usando a guerra. Mas perderam a guerra, Bush perdeu a guerra. Hoje a guerra continua na agenda deles, mas a resistência da Multidão os impediu e continuará impedindo.

Como será a sociedade global que emergirá da Multidão?

Isto eu não sei, não sou um profeta. Para mim a Multidão é simplesmente uma definição daquela que é a realidade atual das classes produtivas no mundo. Não escrevi o manifesto do partido comunista global. Eu nunca disse que a Multidão, enquanto tal, é revolucionária. A Multidão não é revolucionária, mas também digo uma outra coisa: que ela, a Multidão, pode construir uma consciência de transformação profunda. Porque o conceito é este, não podemos confundir a realidade das transformações do mundo com a ilusão de uma mudança. As transformações já começaram a acontecer.

Qual a diferença entre classe operária e multidão? E entre população e multidão?

A classe operária é uma classe fechada sobre si mesma, organizada pelo capital, exclui os pobres, exclui as mulheres, em boa parte, e atua dentro de um conceito diretamente produtivo, a nível do sistema industrial. A Multidão inclui as mulheres, os pobres, os imigrantes; compreende todos aqueles que produzem no terreno social, e não mais simplesmente sobre o terreno industrial. Esta é a grande diferença. Se existe alguma diferença da Multidão com as populações – e neste ponto eu preciso explicar bem – é quanto às populações nacionais. Hoje, um discurso dirigido objetivamente para as populações nacionais não é mais possível. Os fenômenos migratórios são enormes e modificam, miscigenam, transformam as populações em, praticamente, todos os países do mundo.

Em seu livro Multidão há interessante discussão sobre a legitimação da violência. Não seria mais correto dizer que nenhuma violência pode ser legítima entre homens e nações?

Não há no livro a legitimação da violência, eu digo simplesmente que a violência é uma coisa normal. E me parece completamente banal que, em países como o Brasil – onde não sei bem qual o porcentual de pessoas que são assassinadas por ano, parece um porcentual muito alto, a despeito da grande quantidade de habitantes do Brasil -, se diga que a violência não existe .

No começo do livro o senhor diz que a possibilidade de fazer a democracia global acontece agora pela primeira vez. Como se fará essa democracia? Ela será feita, a seu juízo, por uma revolução lenta, um processo gradual?

O mundo está finalmente unificado e que a mundialização que experimentamos hoje é profundamente diversa daquela que o capitalismo conheceu a partir do século 16. Em primeiro lugar porque hoje os fluxos de informações, de finanças, de comandos e o político cruzam o mundo de maneira mais ou menos homogênea. A isso corresponde uma série de movimentos de informação, de mobilidade, de conhecimento e de inovações a que se coligam aqueles que são verdadeiramente produtivos. Isto é, não se produz mais apenas na fábrica da periferia de São Paulo. Hoje se produz no mundo todo, através da informação. A riqueza não é mais uma coisa produzida em um lugar, mas em espaços que são sempre definidos de maneira nova e diversificada.

Como a Multidão pode tirar proveito da globalização?

Quando eu falo de globalização e da Multidão, estou falando de uma nova organização do espaço e do tempo. A primeira questão é compreender a capacidade desestabilizadora, de ruptura, da velha estrutura moderna do poder. Os velhos governos não agüentam mais. O governo Lula foi extremamente importante porque mexeu nesse terreno. Seja como for, o governo Lula tem sido infinitamente mais inteligente do que foi o governo de outro grande personagem, Fernando Henrique Cardoso, que se movimentou apenas sobre uma questão nacional. Este é o problema. Quando dizem, por exemplo, que Lula não fez senão realizar as coisas que Cardoso havia intuído, de um certo ponto de vista isto é verdade. Mas de outro ponto de vista, soa falso, porque Lula jogou o seu poder sobre o nível global e não simplesmente na hipótese da revalorização monetária ou da invenção do Real. Esta foi uma diferença extremamente importante.

Como se fará o processo de formação da consciência das pessoas que farão a revolução da Multidão?

Eu não sei. A propósito, uma coisa que tenho notado na Europa é que a febre das privatizações passou completamente. Recorrer ao Estado é a maneira mais antiga, mais velha, além de ser própria das posições políticas hegemônicas. É o eterno jogo entre o público e o privado, entre a apropriação individualista, do individualismo possessivo, e a entrega ao Estado da defesa dos próprios interesses. Veja, são coisas que não me agradam, porque, na realidade, entre elas existe o comum. Hoje (terça-feira passada), aqui em Paris, onde estou, há uma grande greve geral dos trabalhadores, não sai um trem de metrô, as lojas estão todas fechadas. Nós, a Multidão, já nos reconhecemos como uma comunidade verdadeira e não queremos mais ter patrões. Não é que exista, no coração dessa comunidade, a igualdade chata e brutal dos sistemas totalitários, mas também não pode ser objeto de discussão que, quando saímos à rua, nós precisamos usar um meio público – e eles não podem ser paralisados. O conceito de segurança, pois, é um conceito onde tudo é medido pela satisfação e desejo dos cidadãos, e não pode ser tomado, apenas sob o ângulo da defesa contra o terrorismo. São mistificações horríveis.

Se mais adiante o Império descobrir fórmulas insuperáveis para controlar a internet, a revolução da Multidão se exaure, estará abortada?

Eu não sei. No momento, o que tem me divertido muito é o fato de que a Europa quer tirar dos EUA o controle da rede. Como você sabe, hoje a rede é controlada pelos EUA de maneira absolutamente monopolística. Mas, por hipótese, hoje é a Europa quem quer assumir esse controle, amanhã pode ser que o Brasil queira. E provavelmente haverá tentativas da parte de uma cadeia de Estados do Sul, a África, a Índia e a China. Entende? Esta coisa é extremamente importante: o século americano acabou.

A Multidão poderá resgatar o conceito de sobriedade, digamos, em relação ao consumo?

Nesta questão eu sou muito cauteloso. Nunca fui um anticonsumista. Creio que muitas vezes o anticonsumismo foi imposto, de uma maneira dura, às populações. Penso que existem níveis de consumo necessários à reprodução da vida e ao enriquecimento do saber que são absolutamente fundamentais. Eles não podem, de nenhuma forma, ser reduzidos a um estado de subconsumo.

Refiro-me a um consumo mais crítico, e não ao consumo mecânico.

Sobre isso estamos completamente de acordo, mas por outro lado, você sabe muito bem que, ao cabo, qualquer posição anticonsumista acaba sendo tomada como uma posição anticapitalista.’