A comunicação social é um campo fértil para observar os enfrentamentos políticos que se processam incessantemente entre os diversos atores que compõem a sociedade brasileira. O caráter público da comunicação social mostra quem está representado, quem está excluído, qual a correlação de forças, como certos grupos consolidam seu poder e outros são sistematicamente excluídos da arena política pública.
A compreensão do jogo político que se processa continuamente na mídia não é fácil, entretanto. Há uma pluralidade de vozes e uma infinidade de interesses representados. Os atores variam desde os proprietários dos meios, os profissionais (jornalistas, produtores culturais etc.), o governo nos seus diversos níveis, os partidos políticos e seus representantes, os anunciantes e os grupos hegemônicos (banqueiros, industriais, organizações patronais etc.), cada um deles se relacionando com os outros através de diferentes graus de tensões.
A mídia é, por excelência, um lugar de mediação política e social, um espaço de encontros e desencontros, de alianças e composições. Pode revelar-se palco de negociações contraditórias entre forças antagônicas provisoriamente aliadas ou de embate de forças opostas em enfretamento aberto. Basta ler os jornais e revistas ou escutar ao noticiário das emissoras para observar essa contraditória convivência.
Essa diversidade não significa pluralidade, tampouco. Os vínculos comerciais e político-institucionais da mídia refletem o centralismo, a concentração da sociedade brasileira e a exclusão sistemática dos segmentos sociais desfavorecidos. A mídia é um produtor histórico de difusão mercantil dos produtos simbólicos cujos processos de produção e consumo estão marcados pela divisão estrutural da sociedade.
Enfrentamento constante
Apesar do desequilíbrio, a mídia não pode representar exclusivamente os interesses dominantes. Ela precisa legitimar-se como lugar de mediação e de circulação pública de conteúdos e precisa fazer constantemente concessões de ordem política. É justamente essa contradição que torna a mídia um campo de observação rica e fértil.
Nosso país segue a tendência mundial de concentração cruzada e de fusão da mídia: os proprietários de jornal também possuem emissoras de rádio, televisão e sites de internet. Em julho de 2002, a Net-Sky detinha 61% da televisão paga no país. E assim por diante.
Além disso, 45% dos proprietários de rádio são políticos, o que revela seu poder de barganha. Por exemplo, para conseguir cinco anos de mandato, o ex-presidente José Sarney concedeu 632 emissoras de rádio FM e 314 AM a políticos (70% da freqüência foi ocupada). Das 420 emissoras de TV existentes no país em 2002, 94 pertenciam a políticos. Dos vinte e sete governadores eleitos, 12 possuíam concessão de televisão.
A identificação dos dez maiores anunciantes de jornais em 2002 ajuda a revelar a proximidade entre a mídia e os negócios. O primeiro é Casa e Vídeo (92 milhões de reais); os seguintes, pela ordem: Inpar (91 milhões de reais); General Motors (86 milhões de reais); Pão de Açúcar (82 milhões de reais); Fiat (82 milhões de reais); Gafisa (77 milhões de reais); Kalunga (66 milhões de reais); Ponto Frio (60 milhões de reais); Ford (53 milhões de reais); Casa Bahia (51 milhões de reais).
Apesar dos expressivos números, estabelecer uma correspondência imediata e direta entre mídia e poder político simplifica a questão, esconde as contradições, mascara as tensões e os conflitos. Há na mídia um constante enfrentamento entre os diversos segmentos da sociedade. Ainda que errática ou fugaz, é na mídia que os segmentos excluídos se expressam hoje as suas posições contra-hegemônicas.
Dado de realidade
Em grande medida os meios de comunicação expressam a cultura hegemônica de mercado, impregnam os imaginários e o conjunto da sociedade do modo de vida consumerista. Criam o conformismo, reduzem freqüentemente a capacidade crítica da sociedade.
Mas, a mídia não é monolítica, precisa ceder para legitimar-se como um espaço público. Dependendo das circunstâncias, ela revela mais ou menos acentuadamente as posições antagônicas, os questionamentos sociais, os modos alternativos. As forças contra-hegemônicas percebem as brechas, fazem articulações, organizam-se para a mídia, conseguem ocupar espaços e expressar-se dependendo das conjunturas.
Recentemente as ‘Margaridas’, mulheres de trabalhadores sem-terra, fizeram uma marcha marqueteira em Brasília. Apesar de mulheres e excluídas, conseguiram ocupar as primeiras páginas, espaços de todos os telejornais e expressar suas reivindicações. A mídia não é, nem pode ser, um aliado automático do poder ou do mercado. Ela é ambivalente, não é nem poderia ser insensível ao jogo político, precisa fazer alianças e concessões.
Contraditoriamente, a mídia precisa abrir espaços e legitimar-se como lugar de fala universal. Precisa manter-se publicamente como guardiã das liberdades. Reivindica para si uma autonomia frente aos conflitos e não poucas vezes coloca-se na posição anti-hegemônica.
Há inúmeros exemplos em nossa história recente. Na medida em que a democracia brasileira avança, a mídia se vê obrigada a fazer maiores concessões. Historicamente, não poderia ser de outra forma. Até porque é na mídia que os grupos antagônicos se enfrentam hoje.
A midiapolítica ou a telepolítica é hoje um dado de realidade e todos os segmentos sociais já perceberam isso. É na mídia que se realiza o jogo político do poder. Não há um só sindicato, partido, organização não-governamental ou movimento social que não tenha percebido isso e se organizado para a mídia. Todos eles têm assessorias de comunicação profissionalizada, sites bem produzidos, estratégias de marketing etc. – com resultados surpreendentes.
Nova geografia
Mal ou bem, todos lutam pela inclusão midiática. Existir politicamente é ganhar visibilidade na mídia. Ignorar isso é desconhecer a moderna disputa política. Todos os segmentos da sociedade se organizaram para ‘publicizar’ suas posições – e isso é hoje tão ou mais importante quanto ter representação nos parlamentos.
É na mídia que se definem a atualidade e a agenda pública e as prioridades políticas. Que se conquista visibilidade, se legitimam os papéis e as autoridades ‘técnicas’ e políticas; que se fiscaliza o poder e se exerce a crítica; que se canalizam as demandas e se realizam as campanhas; que se estabelecem os gostos e as preferências; que se desenvolve a vida.
Mal ou bem, todas as forças sociais se organizam para sensibilizar a mídia. É exemplar o esforço recente da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI), que criou a figura do ‘Jornalista amigo da criança’ e reverteu a pauta da mídia sobre os meninos de rua. O trabalho performático da organização ambientalista Greenpeace é outro exemplo de abertura de espaço nas primeiras páginas e tempo no horário nobre. Sem contar o merchandising social que várias entidades têm conseguido emplacar nas novelas das oito. Segundo a TV Globo, foram 132 mil inserções comerciais na sua programação em 2002 – correspondendo a um valor comercial total de 147 milhões de reais
Isso quer dizer que a mídia brasileira é democrática? Não, ela continua jogando no time vencedor. Mas, há demonstrações de que é possível, mesmo para grupos contra-hegemônicos, abrir e conquistar espaços nos meios de comunicação, apesar da luta ser dura. Com estratégias inteligentes, bem definidas e eficácia, é possível criar e ocupar espaços. A mídia é um campo de conflito de interesses e de enfrentamentos, não é um espaço monolítico.
Há uma nova geografia política em curso, desterritorializando os espaços políticos tradicionais como os partidos e o Parlamento. A referencialidade política é cada vez mais midiática.
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Jornalista, professor da UnB e coordenador do NEMP (Núcleo de Estudos de Mídia e Política).