Os relatórios dos inspetores de fábrica na Inglaterra do século 19, com capas azuis (ou pretas), ficavam em ante-salas, gabinetes e prateleiras. Quase ninguém lia aquelas maçarocas. Mas Karl Marx as leu com extremada atenção. Esses minuciosos e rigorosos relatórios foram sua base empírica para conceber a primorosa morfologia do capitalismo concorrencial, sobretudo em O Capital. Sua outra fonte foram as descrições e análises de seu amigo Friederich Engels, o único que transpôs a soleira de uma fábrica (mas na condição de patrão). Marx tinha a teoria. Os inspetores lhe deram a prática. Da alquimia resultou o mais importante livro de economia de todos os tempos.
Uma das grandes deficiências do debate intelectual é que os contendores não vão às fontes primárias. Falam de orelhada ou baseados em intérpretes. É chato e dá muito trabalho ler os documentos originais. Preferem-se os resumos ou as chaves decodificadoras. Daí resultam debates inócuos, ou contraproducentes, e uma desinteligência geral.
Esse viciado (e vicioso) hábito intelectual ajuda a explicar a inanição de certos debates. Como o recente, sobre a decisão do ministro Carlos Ayres de Britto, do Supremo Tribunal Federal, depois corroborado pelo plenário, em manifestação inicial sobre uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPT) do deputado federal Miro Teixeira (PDT-RJ). A suspensão temporária de todos os processos que tramitam na justiça por ‘delito de opinião’ com base na Lei de Imprensa, de 1967, até o pronunciamento final do STF sobre a manutenção ou não de quase um quarto dos 77 artigos dessa lei, foi saudada como se fora o ato inaugural da liberdade de expressão no Brasil.
No que não é inócua nem prejudicial, a ADPT proposta pelo ex-ministro das Comunicações do governo Lula não toca no constrangimento que sempre é imposto ao exercício da plena liberdade de imprensa. Não de hoje: desde a fundação da nação brasileira (e, já antes, e pesadamente, durante a colônia). Lendo e relendo a argüição do líder do PDT e o voto do ministro do STF me veio à memória a frankesteiniana primeira emenda, de 1969, à Constituição outorgada manu militari, em 1967. É tanta citação, remissão, vai e volta, suprime e mantém, que fica uma sensação: ao invés de limpar a área, apenas se renova a sujeira.
Pedagogia pública
Acho que alguma coisa bem simples talvez tivesse maior efeito e utilidade. Por exemplo: impedir os litigantes de ir direto à via judicial em busca de tutela contra delito supostamente cometido contra si através da imprensa. Seria necessário esgotar a via da negociação e do diálogo antes de recorrer à Justiça. Toda pessoa que se sentisse ofendida por publicação na imprensa teria que se dirigir à redação através de carta para se defender, explicar e (ou) contra-atacar.
Mas também a recusa à publicação dessa carta, no mesmo espaço e com o mesmo destaque do texto alegadamente ofensivo, já caracterizaria o crime. Bastaria ao autor da carta comprovar que ela foi entregue ao responsável pela publicação e não foi divulgada em 48 horas para caracterizar o crime de desobediência à lei. A empresa jornalística, solidariamente com o responsável pessoal pela publicação da carta, começaria imediatamente a pagar multa diária, que perduraria pelo tempo da recusa da veiculação. O recurso dos réus não suspenderia a obrigação de publicar a carta, a não ser por decisão de mérito da questão. Quantas vezes o periódico voltasse ao tema que ensejou a reação do leitor, tantas vezes o cidadão teria o direito de obrigar o editor a reproduzir sua carta, sujeitando-o a nova multa se não o fizer.
Com isso, a liberdade de imprensa serviria à democracia, ao esclarecimento das idéias, à caracterização do contraditório, à pedagogia pública. Se o suposto ofendido não se considerar satisfeito com a publicação de sua carta, aí poderá recorrer à Justiça para a reparação do dano pessoal. Mas antes terá que atender ao interesse público provocado pela manifestação da imprensa a seu respeito, ao invés de confinar o assunto aos autos dos processos, desviando-o do âmbito social.
Talvez assim, finalmente, democracia e liberdade de expressão começassem a se afinar.
***
Blogs
Para alguns tipos de leitores, os blogs na internet constituem leitura complementar. Para outros, é alternativa mesmo. Entre estes, se incluem os leitores paraenses. É a limitação da imprensa convencional a principal causa do sucesso dos blogs, que abrem espaço livre para seus leitores e divulgam informações vedadas na grande mídia. Qual seria a resposta adequada dos jornais? Melhorar a qualidade dos seus textos, não só ortograficamente, mas – e, sobretudo – em informações.
O Liberal preferiu vestir a carapuça e criou uma página dedicada à blogsfera. Presta um serviço aos seus leitores, é claro, embora cuide de selecionar blogs com menor interferência local. Mas desserve a si, ao revelar um tanto de sua inocuidade – ou inutilidade. Sugere, mesmo sem querer, que o melhor a fazer é ler os blogs, não o jornal.
******
Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)