Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando a imprensa não admite ser contestada

Persisto no assunto liberdade de imprensa. Esse conceito precisa ser muito discutido, pois crimes vêm sendo cometidos em seu nome desde que a imprensa surgiu e, de novidade, converteu-se num dos pilares das sociedades modernas e democráticas.

Não se pode conceber uma sociedade sem uma imprensa atuante, influente e que tenha meios de contestar os poderes constituídos, eventualmente se convertendo em porta-voz dos setores que não teriam meios de levantar suas vozes contra os setores mais poderosos e influentes. Ao longo da história, porém, a imprensa foi se convertendo, em grande parte, em porta-voz de grupos sociais bem específicos, sempre negando esse papel e alardeando suas atuações em momentos em que teve que se unir ao mesmo interesse comum que antes violara.

Orson Welles já morreu

Nesse aspecto, vale revermos manifestação de um comentarista do blog que mantenho na internet e que vem se manifestando com freqüência, mas que, à diferença de vários dos que visitam aquele espaço para protestar contra sua linha editorial, divergiu de maneira civilizada, ainda que o conteúdo dessas manifestações esteja eivado de meias-verdades. Leiam abaixo, portanto, comentário do leitor Antonio Thadaz, de Curitiba:

‘(…) Você diz aos jovens que no seu tempo (nosso) as esquerdas tinham que se manter caladas. E caladas, elas roubavam bancos, seqüestravam embaixadores, explodiam bombas, mutilando inocentes, e faziam guerrilha no Araguaia. Hoje, esse pessoal recebe gordas pensões do governo, inclusive o Lula.

Como sei tudo isso? Imprensa. Nos tempos duros, o JB, censurado, publicava receita de bolo no lugar da notícia. Otávio Frias tem uma longa história de resistência ao regime de exceção, Boris Casoy que o diga. O Mesquita abrigou, em sua redação, jornalistas perseguidos.

Dos grandes jornais, O Globo foi o único que teceu louvaminhas aos militares. Ou seja, a maioria da tal família midiática tem história na luta pela liberdade, liberdade essa que oportunizou [sic] ao Lula fundar e difundir seu partido.

Afirmar que a mídia de hoje paralisa o congresso [sic], atrasa projetos e provoca catarses coletivas é conferir à imprensa um poder que ela não tem. Orson Welles morreu e não deixou herdeiros.’

Bom, desde que para todos

Pelo que o leitor escreveu, ele deve ser da minha geração. Estranho, no entanto, que não saiba que quem viabilizou a ditadura militar de mais de 20 anos no Brasil foram exatamente os Mesquita, Frias e Marinho, com seus jornais, TVs e revistas acossando o governo legalmente constituído de Jango Goulart.

Parece-me raro, ainda, que o mesmo leitor não recorde do Riocentro, onde, nos estertores da ditadura militar, a ditadura colocou uma bomba, na tentativa de forjar que tinha sido colocada por aqueles que caçava, prendia, torturava e matava.

Mas o leitor em questão levanta, ou melhor, torna mais evidente o tema liberdade de imprensa. Essa liberdade de um meio de comunicação – ou de vários – difundir informações e opiniões, tem que ser acompanhada da pluralidade opinativa mais ampla, geral e irrestrita. Liberdade para informar sempre deverá pressupor liberdade de contestar o que foi informado. Quando a imprensa informa só o que quer, seja em termos de notícia ou de opinião, e não admite que se conteste o que divulgou, não há liberdade de imprensa alguma.

Liberdade de imprensa sempre será um bom conceito, desde que seja para todos os que fazem jornalismo. A liberdade de imprensa que os grandes jornais, TVs e assemelhados pedem, no entanto, é para poucos (só para eles mesmos). Ao mesmo tempo em que pedem liberdade de expressão para si, combatem a de quem não for ungido por eles.

Informar ou sabotar?

Têm sido freqüentes, na grande mídia, ataques à maior inovação ocorrida no jornalismo desde seu surgimento, o fenômeno dos blogs. Hoje mesmo (domingo, 16/03), na Folha de S.Paulo, o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony classifica de ‘chatos’ os que fazem uso da tecnologia para participarem dos grandes debates nacionais. Lamenta que a internet tenha viabilizado para qualquer um a liberdade de difundir opiniões e informações em larga escala. Quer que a liberdade de imprensa seja só para os ungidos pelo grande jornalismo.

Diante de tais premissas, podem-se formular algumas questões:

** Quando essa ‘liberdade de imprensa’ é usada para insuflar militares para que dêem um golpe de Estado, a fim de depor um governo que desagradava aos multimilionários donos de grandes cadeias de rádio, TV, jornais e revistas, que liberdade é essa?

** Como pode ser chamado de ‘liberdade’ fazer uma campanha que pede que a vontade eleitoral da maioria de uma nação seja violentada em benefício da vontade dos derrotados eleitoralmente?

** Quando os meios de comunicação divulgam que há uma epidemia de febre amarela no país e, com isso, alarmam a sociedade, de forma que pessoas que não tinham risco de contrair a doença tomam, aleatoriamente, um medicamento controlado que pode lhes causar danos, que liberdade é essa?

** Aliás, tais práticas constituem liberdade de informar ou de sabotar?

‘Descerebrados’, ‘chatos’…

Liberdade só é liberdade se todos puderem desfrutar dela. Quando a liberdade que se pede é igual a essa que os magnatas da comunicação pedem, que é só para eles, suas empresas e seus prepostos ditos jornalistas, mas que viola, cotidianamente, todos os princípios jornalísticos que remetem à pluralidade de idéias e opiniões, o que se vê é justamente o contrário de liberdade.

Há pouco, a grande mídia brasileira foi à OEA denunciar que está sofrendo processos na Justiça e que esses processos pretenderiam cercear sua liberdade de imprensa, ou seja, de fazerem acusações gravíssimas a quem quiserem sem prova alguma. Mas quando essa imprensa é acusada de práticas tão graves quanto aquelas que denuncia, vai à Justiça até contra jornalistas saídos de suas fileiras por divergirem de sua linha de atuação. Vide o caso Luis Nassif versus Veja.

Que tal se Nassif (ex-Folha de S.Paulo) ou Rodrigo Vianna e Luiz Carlos Azenha (ex-Globo) fossem à OEA denunciar que, por não aceitarem ver seus trabalhos jornalísticos deturpados ou bloqueados por seus empregadores, foram levados a abrir mão de seus empregos, tanto por iniciativa própria quanto daqueles empregadores? E por que a Veja pode processar Nassif, que é jornalista, mas quando alguém a processa diz que lhe estão ameaçando a ‘liberdade de imprensa’?

O pior de tudo é que quando quem critica a grande imprensa tenta debater com ela suas críticas, ela se nega a debater, chegando a insultar os que a questionam, chamando-os de ‘descerebrados’, ‘hidrófobos’, ‘chatos’ etc. Processa quem a critica, mas não admite ser processada por fazer o mesmo ou, pior, por disseminar campanhas contra isso ou a favor daquilo, ou de que isso existe e aquilo não existe, o que às vezes redunda em desastres como as mortes e adoecimentos causados por vacinação indevida contra a febre amarela.

Representação no MP

Liberdade de expressão ou de recorrer à Justiça tem de ser para todos. E só será se aqueles que os grandes grupos econômicos que exploram a comunicação de massas tentam cercear persistirem no exercício do direito de manifestação e, ainda mais, no de buscarem a Justiça para questionar esses grupos.

No que diz respeito ao direto de manifestação do pensamento, acho que o Brasil e o mundo vão muito bem, obrigado. O fenômeno dos blogs e das correntes de e-mail – e me atenho a eles porque são os meios mais acessíveis para qualquer pessoa se manifestar em larga escala – vai se intensificando em progressão geométrica. No questionamento judicial de práticas jornalísticas claramente danosas, no entanto, o país ainda está engatinhando. À diferença do que acontece no mundo desenvolvido, denunciar meios de comunicação à Justiça ainda é um tabu por aqui.

Denunciar, processar ou criticar não é mais prerrogativa exclusiva da mídia. Liberdade, tampouco. E pretendo provar isso. Essa é a parte que nos cabe, aos cidadãos comuns, neste latifúndio, neste mundo injusto, desigual, hipócrita, do qual meia dúzia de magnatas das comunicações quer aprofundar o ‘modelo’. Por conta disso, como cidadão, como detentor dos mesmos direitos que têm os Marinho, os Frias ou os Mesquita, não hesitarei em tomar atitudes, amparado por dezenas e dezenas de brasileiros de todas as partes do país que se uniram à ONG que propus que fosse fundada, o Movimento dos Sem-Mídia.

Por conta de tudo isso, a ONG que presido irá protocolar, em 17 de março de 2008, às 15 horas, no Ministério Público Federal, em sua unidade situada à Rua Peixoto Gomide, em São Paulo, uma representação contra meios de comunicação que, no entender de um considerável número de pessoas, durante o mês de janeiro deste ano, infringindo o Código Penal em seu capítulo que versa sobre disseminação de alarma social, levaram milhões de brasileiros a se expor inutilmente ao risco inerente à vacina contra a febre amarela, um risco do qual decorreram mortes e adoecimentos.

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Comerciante, coordenador do Movimento dos Sem-Mídia, São Paulo, SP