Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mapas dos novos tempos

Engana-se quem pensa que os mapas apontam o lugar das coisas no espaço. A muralha da China passa exatamente por aqui, diz a professora, confiante em sua certeza de pedras. Aquela plataforma de petróleo se situa na latitude tal com a longitude tal, no meio do mar. A fronteira do Brasil com o Paraguai passa bem ali, no meio do rio, no meio das instalações de Itaipu. No computador, o GoogleMaps revela a posição exata da casa da sogra de qualquer um. Lá, acolá, do lado de lá. Quase sempre, pensamos em mapas como uma disposição das dimensões do espaço, ou, mais exatamente, de um espaço meramente bidimensional, plano, ainda que acidentado.


A verdade, a despeito das aparências, é que os mapas nos situam no tempo. Eles são bichos vivos quando observados na dimensão do tempo. As linhas mudam de lugar e os lugares mudam de cor. Países se estreitam, outros engordam, sem falar nas fronteiras que se esfumaçam e somem. Há ainda as unidades que se subdividem, como numa meiose geográfica, dando cria a novas unidadezinhas.


Mapas, na linha do tempo, comportam-se como um filme, como um desenho animado sem roteiro certo. Atlas históricos deveriam ser vendidos como desenhos animados. Na tela do tempo, os mapas móveis mostram a ausência de razão e de propósito, mostram a desvinculação entre causas e efeitos na trama da aventura humana sobre a face da Terra. Mapas são tolos quando congelados – e destrambelhados quando vistos em movimento. Há mais previsibilidade nos abalos sísmicos das placas tectônicas do que nas nuances dinâmicas da geografia política. O que não faz a mínima diferença.


Fuso com fuso


Não é preciso recuar ou avançar nos séculos para experimentar a natureza temporal dos mapas. A cada instante, a cada fração de segundo, os mapas nos situam no tempo, mais que no espaço. Pense o leitor, por exemplo, nos fusos horários. Pense nos mapas de fusos horários. São eles que estabelecem a que horas a vida de cada um de nós acontece. É um tanto pacificador imaginar que ainda somos regidos por institutos como o ‘relógio natural’, o nascer do Sol, a roda das estações do ano, mas, além de pacificador, é mentira. O tempo é uma convenção política – bem de acordo com o que vem escrito no mapa astral, ou melhor, dos fusos horários de cada um. E isso é uma coisa tão recente na linha do tempo…


Os acordos para a unificação dos horários mundiais com referência ao meridiano de Greenwich foram concluídos em 1912, em Paris. Há menos de um século. Foi outro dia. Foi ontem. Mesmo o relógio, embora não seja uma invenção assim tão nova, ganhou centralidade na cena política praticamente às vésperas da Revolução Industrial. A máquina de medir tempo de trabalho, indispensável diante das novas relações de produção, vai parar nas portas das fábricas, medindo a quantidade de força extraída de cada trabalhador.


Para o ordenamento do Estado, a unificação do horário se tornou requisito essencial. O relógio assume também um posto de destaque no espaço público. Instala-se nos campanários, centralizando o tempo comum. O centro do poder passa a ditar também a medida do tempo. As unificações políticas impuseram a unificação dos horários – o tempo virou uma questão de poder, os senhores da política se alçaram à condição de senhores do tempo.


Em tempo, bom tempo, lembremos que o tempo nunca foi um dado da natureza, como os vulcões, os mares, as frutas no quintal e o mosquito da dengue. Ao contrário, nasceu e vive como invenção lingüística – embora subsistam línguas que não têm formas verbais no passado e no futuro. O tempo surge na cultura como abstração e, a partir daí, adquire o estatuto de um vínculo de poder. Habitar um país significa submeter-se a seu horário legal. Nós existimos, portanto, em tempos postos por outros. Pertencemos ao tempo do outro.


Isso é o que nos informam os mapas dos fusos. É o que nos ordenam os fusos.


Acre na velocidade da luz


Mapas são imagens fixas – que, no entanto, se movem.







Aliás, acabam de mover-se no Brasil. Leio no Estado de S.Paulo e na Folha de sexta-feira (25/4), num vôo de São Paulo para Brasília e depois de Brasília para João Pessoa, que o presidente da República sancionou a lei segundo a qual o fuso horário do Pará e o fuso horário do Acre ficam de hoje em diante em outro lugar – outro lugar no tempo, eu quero dizer. Revogam-se as disposições em contrário. Olho para o estado do Acre, no mapinha que a Folha publicou [ver a imagem ao lado]. Acho que os infografistas erraram no caso do Pará, que continua exatamente igual no mapa do ‘antes’ e no mapa do ‘depois’. O texto diz que o Pará, inteirinho, adotará um fuso só a partir de agora. Mas o mapa contradiz o texto. Tudo bem.


O que mais me comove é o efêmero estado do Acre. Pobre estado do Acre. O Acre não está mais onde costumava estar, quero dizer, no horário em que costumava existir. Àquele horário, o Acre já não pertence. O Acre sumiu dali, isto é, aquele fuso sumiu de cima do estado do Acre. Cadê o Acre?


Eis então que ele reaparece em outro horário. Por força da sanção do presidente da República, o Acre empreendeu uma viagem no tempo. O poder político suprimiu-lhe uma hora, aquela famosa hora-a-mais. Sua hora foi-se. Virou pó. Alguns acreanos talvez se indagem: o que eu poderia ter vivido naquela hora, justamente da hora que não houve? A hora que jamais terei? São perguntas vãs, quase tolas, posto que aquela ora apenas

mudou de lugar, digo, de tempo. No entanto, são interrogações mortais. Como o tempo não é um dado natural, mas lingüístico e político, é apavorante que possam nos arrancar um minuto que seja por decreto. E podem.


Quando a Igreja ajustou o calendário, em 1582, foi bem pior. Suprimiram dez dias inteiros. Quem foi dormir no dia 4 de outubro de 1582 acordou no dia 15 de outubro. Mesmo hoje em dia, quando nos suprimem um minuto que seja, ainda é incômodo. Estão nos suprimindo o chão. Num lapso, passamos a pisar o vazio. Em seguida esse chão temporal será refeito, é fato, mas por um átimo ficamos no vazio. Despencando, soltos, não no espaço, mas no tempo.


Olho o mapa da Folha e penso outra vez que a imagem fixa se move. Lá está o Acre, que desapareceu de onde estava e ingressou onde não existia. Quero dizer: o Acre agora é onde antes não estava. Mas está. E ainda é.


O tempo da TV


A reportagem de do Estadão sobre a incrível viagem no tempo do estado do Acre informa que as razões da mudança do fuso se devem ao lobby das emissoras de TV:




‘A pressão pela aprovação do projeto aumentou, por parte das emissoras de televisão, depois que o governo determinou a exibição dos programas em horários de acordo com a classificação indicativa por faixa etária. Essa decisão dificultou o funcionamento das emissoras em rede nacional [ver íntegra aqui].’


A explicação, ainda absolutamente crível, é espantosa. Tanto mais espantosa por ser crível. Com dificuldades operacionais para se adequar aos fusos horários de cada lugar e, assim, cumprir o que estabelece a classificação indicativa do ministério da Justiça, as emissoras encontraram um jeito de eliminar a causa do problema. O tempo do Acre passa a ser idêntico ao tempo do Amazonas e a operação de transmissão em rede será mais fácil. Em vez de se adaptar ao relógio do telespectador do Acre, as redes de TV, que funcionam em rede nacional durante quase todo o dia, adaptaram o telespectador do Acre ao seu relógio.


Relógio? Falei em relógio? Não deveria ter usado essa palavra. O termo relógio é um tanto anacrônico. Falar em relógio agora é como falar em vitrola, em casco de cerveja, em creme rinse. Na era do espetáculo, já não se trata mais de medir o tempo linear em unidades adequadas para quantificar a força de trabalho extraída do corpo humano. A questão, agora, é alargar ao máximo os horários comuns para alargar ao máximo a extensão da platéia ligada nas atrações ao vivo. A tendência já não é a unificação dos espaços nacionais, mas a unificação das audiências, a despeito da posição do sol, de ser dia ou de ser noite: todas as platéias, ao vivo, no mesmo espetáculo.


Como o dinheiro, que viaja na velocidade da luz de uma bolsa de valores para outra, as atrações da TV também voam. Mais ainda: elas são ubíquas e precisam de escala, mais escala, mais escala. Quando possível, atropela os fusos horários, essa coisa tão nova, não tem nem cem anos, e tão antiquada. O nosso país-continente agora só tem dois fusos horários – sem contar Fernando de Noronha. Ficou mais confortável para as redes de TV.


Imagem mutante


Não por acaso, foram princípios análogos que definiram as mudanças de horários nos jogos de futebol. Os atletas começam a jogar às dez da noite não porque rendam mais à medida que os ponteiros se aproximam da meia-noite, mas porque o entretenimento assim impôs. A cada dia mais, o tempo da civilização se afasta dos ciclos da natureza – da natureza do corpo humano, inclusive – para se referenciar no tempo do espetáculo.


Voltando ao Acre, as emissoras de televisão, a rigor, já ignoravam o fuso que vigorava por ali. Transmitiam a programação para os lares acreanos como se eles seguissem o mesmo horário de Brasília – e um pouco seguiam, já que a programação da TV faz as vezes do relógio da nova era. De repente, quando alguém, timidamente, levantou a mão para dizer que o relógio da floresta era outro, o tempo da televisão respondeu sem hesitar: pior para o relógio da floresta; ele que se ajuste ao nosso.


Não que nada disso seja ruim. Tampouco é bom. Isso é apenas o que é. Não há muito o que fazer. Escapo o olhar para a vidraça do escritório e vejo que o sol se põe para lá do rio Pinheiros. Está uma luz bonita lá fora. E também muito brega. A natureza é brega. Volto os olhos para a tela do computador. Daqui a pouco vou ligar a TV. O meu tempo, senhores, é o vosso. A vossa imagem, mutante, é meu espelho.

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Formado em direito e jornalismo pela Universidade de São Paulo, é doutor em Ciências da Comunicação pela mesma universidade e autor de alguns livros, entre eles Sobre Ética e Imprensa (Companhia das Letras, 2000); foi presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007