A discussão do caso Terri Schiavo sobre o enfrentamento da morte transformou-se ao longo dos últimos dias num debate planetário. Ao menos onde as populações podem dar-se ao privilégio de envolvimentos emocionais com um caso individual, em lugar de enfrentarem horrores coletivos de que são parte, como em muitas regiões da África e em todo o Iraque.
Há uma enorme complexidade por trás de um caso como este que a mídia, por razões que vão da carência de tempo e espaço – sem falar de superficialidade, aqui por motivos que se estendem da banalização à carência de formação – cobre com um cínico emocionalismo.
A possibilidade de um padre ter derramado gotas de vinho na língua de Terri Schiavo transforma-se em manchetes de páginas ou em destaques nos textos envolvendo a experiência dessa mulher qu,e desde 1990, após uma parada cardíaca, teve dificuldades com a oxigenação cerebral e sobrevive em estado vegetativo, alimentada compulsoriamente.
Mas tudo indica que a espetacularização do caso Terri Schiavo denuncia o horror ocidental do inevitável encontro marcado com a morte, a única certeza que temos na vida, e para o que não existe uma solução fácil na parafernália científico-tecnológica posta à disposição de quem pode pagar por isso.
Pobreza de filosofia e afeto
Quando vivíamos mais próximos da natureza, com a consciência de sermos parte do Universo – o que levou os gregos a desenvolver a noção de cosmos, como equivalência de harmonia –, culturas antigas ensinaram os humanos a morrer com dignidade.
E nem sempre a razão pura orientou essas iniciativas. Os primeiros sepultamentos foram feitos sob efeito de experiências mágicas, as mesmas utilizadas para dar sentido às iniciativas de caça. Mas nem quando agiram sem o predomínio da razão os humanos foram irracionais. Ordenamentos mitológicos estruturaram esses procedimentos e eles davam, à experiência de viver, o sentido de que hoje nos ressentimos.
Os políticos, com o oportunismo despudorado que exibem por toda parte, talvez sejam uma das evidências mais claras da crise de valores que atravessamos, ao menos no Ocidente, para uma caracterização menos controvertida. E aqui aparecem os irmãos Bush como provas disso: o presidente George W. e o governador da Flórida, Jeb, estado onde Terri Schiavo se encontra hospitalizada.
Os Bush clamam pela vida como se fossem dos poucos com sensibilidade para isso. Mas como governador do Texas, apenas para situar, o atual presidente autorizou pelo menos 150 execuções de pena de morte. Isso sem falar de sua obsessão em levar guerra e destruição ao Iraque, como se os Estados Unidos não fossem os responsáveis diretos pela criação do truculento Saddam Hussein.
Se fosse necessário um outro exemplo poderíamos evocar o protesto dos moradores de Cidade Ocidental, na periferia de Brasília, que na terça-feira (22/3) se rebelaram, armados de paus e pedras, como uma sociedade primitiva, contra o despudor de políticos de legislarem em causa própria, na determinação de arrancar benefícios extras de uma sociedade exaurida em sua capacidade de pagar tributos.
Cirurgiões plásticos, sem qualquer demonização absoluta de uma especialidade que se justifica por diferentes razões, talvez sejam outra das metáforas desses tempos empobrecidos de filosofia e afeto, sensações substituídas pela alienação e ganância. Michael Jackson, um mutilado pelos bisturis desses especialistas, dispensa comentários nessa direção.
Tão perto, tão longe
O que conectaria, como uma fiação invisível, o caso Terri Schiavo, a sumariedade da mídia, a monstruosidade física de Michael Jackson e o despudor dos políticos por toda parte?
A resposta mais promissora talvez seja ‘uma crescente alienação social’, apesar do aumento do fluxo da informação.
Temos mais informação neste início de milênio, mas elas não são relevantes e por isso mesmo não fazem sentido enquanto possibilidade de construção de uma nova maneira de pensar o mundo. O que significa considerar que instaurar uma noção de cosmos e humanidade, de fato, parece cada vez mais uma utopia.
E aqui, mais uma vez, retornamos à convivência com a morte.
O Livro Tibetano dos Mortos, o Bardo Todol, adaptação budista de uma tradição tibetana, que antecede ao século 7 desta era, traz uma abordagem do ciclo da existência samsárica (fenomênica) entre a morte e o renascimento – e com isso dá ao moribundo a dignidade de morrer com a paz que falta a Terri Schiavo e produz um sofrimento coletivo.
Embora essa obra tenha se tornado conhecida como suporte aos que morrem e aos que já morreram – num sentido praticamente ininteligível para o Ocidente – o Bardo Todol distribui seus ensinamentos aos que nasceram, o que significa dizer que trata a vida humana do nascimento à morte cobrindo as experiências entre esses dois extremos.
Por aqui teríamos um encontro também com Platão, ao menos em um de seus diálogos, Timeu, abordando constituição política, cosmologia e antropogênese. Mas num tempo raso de filosofia e especulação além dos limites dos Big Brother planetários, Platão é sinônimo de luxo, impossibilidade quase completa de se descobrir que o que parece absolutamente novo foi concebido e considerado já em séculos anteriores.
Ainda assim, há motivos para alguma comemoração. É o caso da entrevista que o suplemento ‘Aliás’, do Estado de S.Paulo, trouxe na edição de domingo (27/3, págs. J 4-5) com o padre Leo Pessini, ex-capelão do Hospital das Clínicas em São Paulo, num esforço necessário para se compreender os limites entre a parafernália médico-tecnológica e o território insondável da morte.
Num diálogo sensível e inteligente com a repórter Mônica Manir, sob a forma de entrevista pingue-pongue, Pessini avança com coragem e inovação em considerações não muito freqüentes entre religiosos no Brasil.
Em revelações distribuídas ao longo das duas páginas, os valores religiosos de Pessini não inibem, em nenhum momento, observações críticas contemporâneas – revelando que por mais de 12 anos convivendo com pacientes terminais nunca se sentiu ‘tão perto do ser humano e tão longe da humanização’, por ver desrespeitado, numa instituição que é referência nacional, ‘o direito de o paciente morrer em paz e com dignidade’.
Síndrome de Peter Pan
Numa crítica velada a uma mentalidade autoritária por parte da medicina, Leo Pessini relata que ‘o procedimento standard é investir em todas as possibilidades tecnológicas de cura, como se a morte fosse inimiga e não um processo conseqüente da vida’ – articulações presentes no secular Bardo Todol ou no Timeu de Platão (onde a origem para as doenças do corpo e da alma são as mesmas, sendo a doença da alma a demência, decomposta em loucura e ignorância).
Colocando-se pessoalmente ao lado dos pais de Terri Schiavo, contrários à retirada dos tubos de alimentação (antes que fosse anunciada a decisão dos médicos de fornecer morfina como forma de amenizar a sorte da paciente), o ex-capelão do Hospital das Clínicas denuncia que ‘as unidades de terapia intensivas (UTIs) atuais são modernas catedrais de sofrimento humano’, considerando que só deveriam receber este benefício ‘quem tem esperança de cura, mas não é bem isso o que acontece’. Neste caso, razões econômicas, sem que o padre tenha dito e que a mídia tenha investigado, costumam prevalecer sobre o sofrimento em conluio com a negligência do Estado.
Duas considerações do ex-capelão Passini merecem reflexões adicionais pela atualidade e importância no interior de uma sociedade que, apesar de todas as dificuldades, lentamente amplia sua expectativa de vida.
A primeira delas diz respeito à bioética – ‘um grito pela dignidade humana. Defesa da vida num sentido amplo que se estende pelos níveis ecológicos e cósmico. Nasceu pelas mãos do oncologista americano Van Rensselaer Potter, uma ciência com apenas 35 anos’.
A outra é uma revelação pessoal envolvendo pessoas que lhe pediram para morrer: para Pessini, o grande desafio desses momentos ‘é ser criativo, combinar razão, realidade, fé e coração humano. Quem pede para morrer está gritando por sentido numa vida sem sentido’.
Por tudo isso o drama de Terri Schiavo é desagradavelmente desconfortável à falsa sensação de que tudo pode ser arranjado com facilidade com que se redesenham traseiros, peitos e narizes numa sociedade que se recusa a envelhecer, agarrada a uma síndrome de Peter Pan.
Não gostamos de pensar na morte. Mas ela é, ao fim de tudo, a única certeza da vida.