Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O sólido ‘Brasil Global’ desmancha no ar

Na quinta-feira (24/4), publiquei no Jornal de Debates a resenha do livro O desafio à cultura, uma obra que ajuda a compreender o papel da Rede Globo no Brasil.

Retomo referida resenha da qual destaco o seguinte fragmento que me parece bastante representativo:

‘No primeiro capítulo da obra, não sem incorrer num certo eurocentrismo, os autores procuram as origens da crise do Ocidente. Segundo eles, boa parte dos problemas ocidentais podem ser creditados aos conflitos entre a `cultura´ e a `cultura de massa ou etnológica´. A distinção entre ambas é feita tendo em conta dois pares de opostos: quantidade x qualidade, rápida obsolescência x permanência, mitologia tóxica x humanismo crítico.

O próprio conceito de cultura, que tem sido construído há séculos, sofre a pressão da modernização das sociedades européias. Para o senso comum e parte da crítica especializada, não há ou não deveria haver distinção entre `cultura´ e `cultura etnológica´ porque a hierarquia entre as obras de arte não pode ser feita com base em critérios objetivos. Além disto, as massas não têm acesso à cultura da elite, de maneira que não seria justo depreciar a `cultura etnológica´. Como acreditam que `…só há enriquecimento pessoal na cultura de qualidade´, os autores entendem que a distinção não é só necessária, como essencial. A `cultura de massas ou etnológica´ é tóxica e produz a crise ocidental justamente porque não é capaz de enriquecer humanisticamente seus destinatários.

No fundo, os autores sugerem a seguinte questão: o que vem primeiro, o lucro dos produtores da cultura etnológica ou as necessidades humanísticas dos destinatários desta produção cultural?’

Fotos exemplares

Salvo raríssimas exceções, a Rede Globo é uma das principais difusoras e produtoras de ‘cultura etnológica’ no Brasil. Isto ajuda a explicar como e por que aquela rede de televisão sempre manteve uma relação quase umbilical com os donos do poder.

Mesmo quando adota uma posição aparentemente crítica, a Globo nunca produz ou reproduz produtos culturais que coloquem seriamente em risco os fundamentos do Estado ou da governabilidade. Muito pelo contrário. Banindo a ‘cultura’ de sua programação, a Globo legitima o jogo de cartas marcadas que situação e oposição fazem enquanto disputam o controle do Estado. Mais que isto, a TV Globo sempre procura alinhar-se aos personagens que estão ou têm condições de ficar ou chegar ao poder.

Na minha coleção de fotos, tenho duas que exemplificam bem a cultura política da Globo. Numa delas, Roberto Marinho está todo sorridente e de mãos dadas com João Goulart. Na outra, o mesmo Roberto Marinho, sorridente, cumprimenta o general Castelo Branco logo após os militares terem dado as costas e as contas ao Jango.

‘Doutrinação’ e ‘educação’

Durante décadas, a Globo foi a principal responsável pela reprodução de séries e filmes norte-americanos no Brasil. A maioria destes filmes e séries, concebidos e produzidos sob a pressão ideológica da Guerra Fria, tinham a finalidade aberta ou dissimulada de reforçar o papel dos EUA como um exemplo de liberdade, democracia, desenvolvimento, respeito aos direitos humanos etc.

Tenho 43 anos e nunca assisti a um único filme ou programa soviético, chinês ou cubano na rede Globo. O ‘Q’ da Globo sempre menosprezou a qualidade dos teleprogramas e filmes produzidos fora da área de influência norte-americana. Mesmo que tivessem qualidade ou fossem ideologicamente neutros, os programas soviéticos, chineses e cubanos nunca tiveram espaço na Globo.

Os pedagogos costumam fazer uma distinção entre ‘doutrinação’ e ‘educação’ levando em conta o fato do sistema educacional (de certa maneira, as TVs também integram o sistema educacional do país) permitir ou não ao cidadão escolher entre duas ou mais correntes de pensamento. A Globo nunca nos deu a possibilidade de assistir e escolher entre os valores soviéticos, chineses, cubanos e norte-americanos. No máximo, podíamos escolher entre os diversos valores norte-americanos veiculados através dos vários filmes e programas produzidos nos EUA e transmitidos pela Globo.

Emissora tende a murchar

Fomos ‘doutrinados’? Sem dúvida! Mesmo quando produzia seus programas, a Globo sempre procurou tupinizar modismos norte-americanos. Os gringos lançaram a moda das discotecas com Os Embalos de Sábado a Noite? Nós tivemos … Dancing Days. Notem que até o nome da telenovela global era em inglês.

A Rede Globo apoiou os militares, demonizou os ‘terroristas’ de esquerda e silenciou em relação à tortura. Ajudou a enterrar o regime militar quando o mesmo começou a dar mostras de esgotamento. Após a abertura lenta, gradual e segura, a Globo elegeu Collor para depois lhe dar as costas e as contas.

A empresa de Roberto Marinho criticou o Lula durante décadas. Mas quando o ‘sapo barbudo’ foi eleito presidente, colocou-o em horário nobre para tecer loas sobre como Deus devia gostar muito dele. Até hoje desconfio que a cortesia global a Lula foi paga pelos contribuintes. Afinal, se levasse em conta critérios unicamente econômicos, o BNDES nunca teria emprestado mais de um bilhão de dólares para a quase falida Globosat.

Atualmente, a ‘doutrinação’ global não me incomoda tanto. Não posso mais ser doutrinado, nem assisto tanto à TV Globo como quando era criança. Na atualidade, minhas preocupações são bem outras. O sólido ‘Brasil Global’ (esta versão latino-afro-tupinizada dos EUA) que a rede de televisão carioca criou e difundiu como sendo ‘o Brasil’ está se desmanchando no ar em razão da concorrência e da internet.

Agora, que existem outros Brasis possíveis e que os EUA começaram a colocar as garras imperiais de fora sem que exista um inimigo ideológico claro, localizável e demonizável, a Globo tende a murchar. Todavia, antes de dormir no berço esplêndido da história, a Globo merece levar muito chumbo grosso (verbal, é claro).

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Advogado, Osasco, SP