Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os sofás e os furos de reportagem

– Paulo! Paulo! Está me ouvindo aí? Acorda que está acontecendo alguma coisa diferente aqui embaixo!

Ainda bocejando, com a camisa grudada no corpo suado em contato com o plástico cinza que recobria o sofá do Hospital de Base, esfreguei os olhos e automaticamente apertei o botão ‘call’ do walkie-talkie:

– Pode falar, Mário Lins. O que está acontecendo aí embaixo?

– Não sei, mas, se não aconteceu vai já acontecer. Entrou uma porção de carros pretos, gente chegando com umas malas, umas roupas… Tá parecendo que vão tirar ele daqui…

– Agüenta aí que já vou descer. Manda checar o link e comunica à redação pra se preparar que a gente pode entrar ao vivo a qualquer instante.

– Tá legal. Ah, traz a capa que ficou aí. Tá chovendo pra caramba.

Olhei para o relógio: quase 5 da manhã. À minha frente, no minitelevisor sem áudio, as imagens de um antigo filme de gladiadores. Naqueles dias, a Globo passou a exibir filmes de aventuras para a eventualidade de ter de entrar com algum boletim médico no meio da madrugada (a emissora saía do ar de madrugada e só voltava com o Telecurso, no início da manhã). Meio sonado, desci as escadas e caminhei uma eternidade até a entrada sul do hospital, onde ficava a segunda equipe de plantão da Globo, com o link de microondas para as transmissões ao vivo. Desde a internação de Tancredo, há onze dias, eu vinha dando plantão noturno no Hospital de Base, meio acordado, meio dormindo, sentado ou (mal) acomodado naquele sofá cinza. Um olho aberto, outro fechado, esperando algum fiapo de informação com a qual pudesse entrar ao vivo, de manhãzinha, no ‘Bom dia, Brasil’, com o boletim sobre o estado de saúde do presidente. E aí morava o problema: internado há mais de uma semana, e não acontecia absolutamente nada. Nada, não. Muita coisa devia acontecer, ora, pois todo dia nos diziam que o presidente se recuperava bem, tanto que até posara sorridente para uma foto com dona Risoleta e toda a equipe médica, num sofá cinza igual ao ‘meu’.

– Monforte, acho melhor mandar abrir o sinal, porque posso entrar ao vivo a qualquer momento. A movimentação está aumentando. Tudo indica que vão mesmo remover o velho.

– Pra onde?

– Sei lá, só sei que é pra São Paulo. Quer dizer, acho que sei, nem sei mesmo se sei. Acabei de ver o Antonio Brito entrando aqui num carro oficial, com outras pessoas. Quando me aproximei da janela do carro, naquela chuva, com câmera ligada e luz acesa, e fiz a primeira pergunta: ‘Ô, Brito, o presidente vai sair, vão removê-lo do Hospital de Base?’, ele calado estava, calado ficou. ‘Vão levá-lo para onde?’ E o Brito, um túmulo.

‘É pra São Paulo, Brito, que estão levando o presidente? É pra São Paulo?’ Só aí a expressão dele se alterou, e notei uma discreta concordância. ‘Pra qual hospital estão levando o Tancredo, Brito? É pro Incor? Por que estão removendo o presidente, ele piorou?’. Brito não podia falar. Dava pra sentir a aflição dele, igualmente repórter e nosso colega até alguns dias antes, agora porta-voz. Mas um porta-voz…sem voz, que situação! Para evitar especulações, tinha sido melhor realizar a remoção sem alarde, em plena madrugada, fui saber depois. E em sigilo. Minhas últimas perguntas já não mereceram a atenção dele, e foram feitas quando o carro arrancava.

Estou convencido de que os furos de reportagem não dependem de sorte, dependem de trabalho. Trabalho para consegui-los, muita batalha, paciência e vigília, como a de Roberto Cabrini em Londres, para descobrir e entrevistar o fugitivo PC Farias. Trabalho e conceito profissional construído ao longo dos anos, para ser o escolhido entre centenas de jornalistas para receber uma fita comprometedora, como aconteceu algumas vezes com Andrei Meireles. Trabalho de estar no lugar certo, na hora certa, no momento certo, quando tudo indica o contrário, ou seja, que tudo indica que nada de relevante vai acontecer ali, mas alguma coisa nos recomenda que permaneçamos aguardando.

Naqueles dias, a monotonia das noites em que nada acontecia levou as redações a baixar a guarda e dar uma folga aos repórteres que faziam plantão noturno no Hospital de Base. Desde a troca de Tancredo por Sarney no Palácio do Planalto, após a madrugada mirabolante em que o ex-governador de Minas fora internado às pressas e submetido à primeira cirurgia, representantes do alto comando da TV Globo – Armando Nogueira, Woile Guimarães e Alice-Maria, que tinham vindo a Brasília comandar pessoalmente a cobertura da posse – permaneciam na capital federal, acompanhando os acontecimentos.

Dor e sorte

Cogitou-se de relaxar o plantão noturno, com o argumento de que era desgaste desnecessário, porque não acontecia nada mesmo. Não sei por que, vieram perguntar a minha opinião. Respondi que, quiséssemos ou não, quem estava ali era o presidente da República, e só por isso o plantão devia ser mantido. Mas argumentava, a meu favor que estava cansadaço, prestes a ter um troço (dois colegas da Globo já haviam ido parar no hospital, com estresse). Por isso, pedia que um outro repórter me substituísse nas madrugadas do Hospital de Base. Dancei. Se entendia que o plantão devia continuar, então eu que ficasse, me responderam. E continuei passando as noites no meu sofá cinza, esperando as notícias que não aconteciam. Jamais, em qualquer uma daquelas madrugadas, apareceu alguém pra me contar fosse o que fosse sobre o estado de saúde do presidente. Só às 8 da manhã saía o primeiro boletim. E eu, lá.

Estava escuro por causa da chuva forte, mas já era perto de seis da manhã quando entrei ao vivo, na Globo, antecipando a edição do Bom dia, Brasil daquele 26 de março de 1985, e anunciando a surpreendente remoção do presidente Tancredo Neves para São Paulo. Tão logo começou a movimentação de carros e bagagens, o sinal foi aberto. E comecei a narrar, de improviso, o que acontecia à minha frente. Enquanto isso, uma outra equipe, de ‘pré-gravado’ estava a caminho do Hospital de Base, para acompanhar a ambulância até o aeroporto (onde conseguiu até as famosas imagens da maca entrando no avião).

Ainda entrei outras vezes durante o Bom Dia, fazendo o rescaldo, após a saída da ambulância. Só aí começaram a chegar ao Hospital de Base os primeiros colegas repórteres das outras emissoras, ainda aturdidos com a rapidez da remoção, e sem entender direito o que estava acontecendo. Logo perceberam que a fonte ali éramos eu e minha equipe, únicos que havíamos presenciado tudo. Fui cumprimentado pelo furo, mas transferi os cumprimentos à direção do Departamento de Jornalismo da Globo, que prudentemente mantivera o plantão noturno, apesar da calmaria. Se dependesse de mim, estaria era no bem-bom da minha cama, e não naquele sofá cinza, duro como diabo.

Naquela manhã, pela primeira vez na minha vida, dei entrevista a uma, ou melhor, a várias emissoras de televisão. Também falei a emissoras de rádio, jornais e até a repórteres de revistas. Fui ‘instant-celebrity’ por uns instantinhos. Me achei o máximo. Mas, gloria transit, logo se esqueceram de mim. Pelo menos aprendi que a matéria-prima dos furos de reportagem não é a sorte, mas a dor nas costas provocada por um sofá de hospital.

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Jornalista, professor e pesquisador em Comunicação; esta coluna faz parte de seu projeto acadêmico na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. E-mail: (paulojosecunha@uol.com.br); edições anteriores e comentários dos leitores: (caid.sites.uol.com.br)