Coronelismo é daqueles fenômenos que sempre parecem estar localizados em algum lugar distante. Quem é do Sul acha que ele está no Norte ou no Nordeste. No Nordeste dizem que ele vive em Brasília. No Distrito Federal falam que deve morar em Goiás ou no Tocantins. Tem quem pense que coronelismo é apenas personagem redundante da dramaturgia brasileira.
É freqüente sepultá-lo no passado distante. Restrito à Primeira República, dizem alguns. Coisa dos anos 1950 ou 1960 ou 1970. A imagem vem em tons sépia: o sertão, a miséria, a fome, o voto de cabresto. O chefão matuto abençoando os afiliados. Negociando votos para governador, senador ou presidente em troca de cartórios, merenda escolar ou caminhões pipa. Expulsando a bala qualquer um que ouse questionar a sua autoridade. Aquele velho líder local não combina com internet, banda larga por celular e TV digital.
Há quem diga que ele nunca existiu e aquilo que chamam de coronelismo acontece em vários lugares e épocas com outros nomes mais universais como, por exemplo, clientelismo e patrimonialismo. Esses nomes nos tiram da condição de sistema político singular e nos colocam como parceiros de outras democracias. Fica mais ameno quando não nos sentimos exóticos. Os EUA são também patrimonialistas. Na Itália há vários exemplos de clientelismo.
Imagem personalista
Nas parcas ocasiões em que admitimos sua existência, estamos apregoando o seu fim. A criação do voto secreto, a urbanização, a centralização da esfera decisória no governo federal e a aposta no personalismo de Getúlio Vargas são as primeiras notas de fim do coronelismo. Mais tarde, outros eventos justificaram o fim do coronelismo: os governadores e prefeitos biônicos dos militares, a televisão a cores em todas as casas e a morte de famosos coronéis como Chico Heráclio (de Limoeiro, PE) e Cunha Lima (de Areias, PB). Recentemente, a morte de Antonio Carlos Magalhães foi considerada o fim do coronelismo na política brasileira.
O núcleo central do argumento resgata as mesmas características. A primeira é a falta de herdeiros políticos. A divulgação da disputa entre os herdeiros do ex-senador alimentou essa hipótese nos últimos tempos. É típico dos coronéis não deixar sucessores, como apontaram Marcos Villaça e Roberto Albuquerque no clássico Coronel, coronéis, editado pela Bertrand Brasil. Quando o coronel morre, os apadrinhados ficam perdidos e fragmentados.
A segunda característica do fim do coronelismo diz respeito à negociação direta. Segundo esse raciocínio, o governo Lula eliminou a figura do coronel como uma espécie de ‘atravessador’ entre as verbas federais e a população.
Por fim, a terceira característica fala da imagem personalista do presidente da República. Assim como Vargas outrora, Lula seria uma figura de grande empatia popular ‘roubando’ o respeito antes destinado ao coronel.
Atraso e avanço
Se negamos, relativizamos e finalizamos o coronelismo com relativa constância é porque não gostamos de pensar este fenômeno como algo atual – seja perene, seja ressuscitado a partir dos anos 1980 com sua roupa eletrônica. Não queremos explicar que as concessões de rádio e televisão assumiram um papel estratégico no manejo do poder local e regional muito semelhante ao que foi da propriedade de terra anteriormente e, por isso, se transformaram em preciosa moeda de troca no jogo político federal.
Negamos que o nosso sistema político esteja baseado numa complexa rede de favores trocados entre poder público e o poder privado dos chefes locais, cujas famílias e apadrinhados são proprietários de meios de comunicação, faculdades, empreiteiras e toda uma estrutura de serviços terceirizados prestados aos governos municipais, estaduais ou federal.
Jogamos para baixo do tapete o fato de que elaboramos as regras para o controle dos meios de produção que privilegiam o poder político nos afastando radicalmente dos padrões democráticos – seja os fiéis às tradições liberais que privilegiam o poder econômico globalizado, seja às tendências social-democratas que privilegiam o interesse público.
Relativizamos a visibilidade do coronelismo mantendo as regras omissas e os municípios isolados, sem TV por assinatura, sem banda larga, sem 3G, sem diversidade nem qualidade de acesso à informação e à cultura.
O coronelismo é resultado da superposição entre o avanço democrático e a persistência do atraso social. É também traço ímpar da sociedade brasileira que não deve ser amenizado nem negligenciado. Enquanto não admitimos sua existência, não nos deparamos com a urgência de combatê-lo.
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Professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ)