É injustificada a celeuma em torno da suspensão pela direção da TVE da exibição dos dois curtas-metragens. Os interessados têm todo o direito de espernear, mas confundir a suspensão com censura é uma grossa asneira. Pior é a tentativa de pisotear o interesse público em nome de uma licenciosidade disfarçada em liberdade artística.
Este Observador não é funcionário da TVE e não tem delegação para defender ou justificar um ato soberano da sua direção. Mas justamente na condição de observador da mídia tem o direito e, mais do que isso, a obrigação de manifestar sua opinião e promover um debate esclarecedor de modo a impedir que palavras de ordem substituam os argumentos.
O Estado de Direito pressupõe liberdade de escolha. A TVE é uma emissora educativa, portanto obrigada a escolher conteúdos condizentes com as suas obrigações estatutárias – a educação da audiência. A TVE é estatal, mas o Estado é mantido pelo contribuinte. O cidadão que a sustenta espera um conteúdo edificante, de bom gosto, capaz de elevar o seu padrão cultural e distribui-lo ao maior número de concidadãos para que, juntos, possam usufruir dos seus benefícios.
O teor altamente escatológico de uma exibição circense sobre a vagina, por exemplo, vai na direção contrária dessas premissas. São peças chocantes, grosseiras, de mau gosto. Ferem a dignidade do telespectador. Podem talvez agradar a uma minoria, mas a TVE está comprometida apenas com o interesse das maiorias – por isso é considerada pública.
A TVE – como aliás qualquer concessão de rádio e TV – tem a obrigação de selecionar o material que leva às suas audiências; não cabe ao cidadão desprevenido transformar-se em juiz do que lhe será mostrado. Esta função delegou-a à direção das emissoras que o atendem.
O fato de as obras terem sido premiadas não confere aos seus autores o direito de impor seus padrões estéticos de forma arbitrária, sem levar em consideração os padrões estéticos do destinatários e as finalidades sociais de uma emissora educativa.
A Constituição Federal – nos artigos 220 e 221 – é inequívoca quando estipula que o poder público deve fiscalizar a adequação da programação a horários e faixas etárias. É inequívoca também quando determina que a programação televisiva deve respeitar os valores éticos e morais da pessoa e da família. As obras em questão não os respeitam.
Manifestações sobre o caso
Está circulando, através da internet e agora na imprensa (O Globo), uma discussão a partir de um comunicado assinado pelos cineastas Marcelo Laffitte, presidente nacional da Associação Brasileira de Documentaristas, e Luiz Carlos Lacerda, presidente da Associação Brasileira de Cineastas, protestando contra o cancelamento da exibição dos filmes Veludo & Caco de Vidro, de Marco Martins, e A Lâmpada e a Flor, de Pablo Ferreira no programa Curta Brasil.
A TVE Brasil esclarece que a suspensão da veiculação das obras foi decidida pela emissora em conjunto com o CTAv – Centro Técnico Audiovisual do MinC –, co-produtor do programa, após verificarem que as produções continham cenas não adequadas para a exibição em televisão aberta, no horário, com base na Portaria Nº 796, de 8 de setembro de 2000, do Ministério da Justiça.
Informamos ainda que o Curta Brasil é exibido às 22h30 de domingo e não no último horário da programação como afirma a nota dos cineastas.
A direção da TVE Brasil tem como uma de suas missões a promoção e divulgação da produção independente brasileira, sendo a única emissora aberta que dedica seis programas de debate, e divulgação do audiovisual brasileiro – Curta Brasil, Cadernos do Cinema, Revista do Cinema Brasileiro, Curta Criança, DOC TV e Sexta Independente – são espaços semanais que fazem chegar à nossa população a diversidade da produção nacional. Há anos nos esforçamos em fazer uma TV Pública com compromisso, criatividade e responsabilidade.
Somos contra a censura por principio e temos consciência de que são as TVs Públicas que devem discutir e buscar padrões e parâmetros de atuação da TV aberta no Brasil.
No ar desde 1995, o programa dedicado aos curtas-metragens brasileiros antecipou recentemente o seu horário para às 22h30 que, inicialmente, era a meia-noite. Esta mudança permitiu ao Curta Brasil conquistar uma maior audiência, mesmo sabendo que passaríamos a ter algumas restrições na seleção dos filmes. Foi feita ainda uma reformulação visual, nova vinheta e cenários, presença de cineastas de outros estados, o que resultou numa valorização geral do programa.
Os responsáveis pelo Curta Brasil, TVE e MinC, sabem da importância da obra dos dois jovens diretores e, em nenhum momento, apresentaram qualquer restrição à qualidade técnica e valor artístico do trabalho. A questão central referiu-se exclusivamente ao horário de exibição e os procedimentos estão sendo tratados e discutidos internamente na emissora, com os produtores do programa e o CTAv. Entendemos a posição dos realizadores e estamos efetivamente buscando uma solução que não prejudique a TVE e o programa, bem como todos os atores envolvidos neste debate.
Consideramos que esta é um discussão importante e necessária, sobretudo por tratar-se de uma TV educativa e cultural, que envolve profissionais que sempre estiveram a frente das reflexões sobre a ética e a qualidade na comunicação social.(…)
Beth Carmona, Diretora Presidente, ACERP-TVE Brasil; Rosa Crescente, Diretora Geral da TVE Brasil
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Ao Exmo Sr. Gilberto Gil
Ministro de Estado da Cultura
Exmo. Senhor.
Cabe-nos relatar e solicitar providências para fato de extrema gravidade que ocorreu na TVE na semana passada, especificamente no programa Curta Brasil, um dos raros espaços na TV brasileira que, há 10 anos, é dedicado à difusão dos filmes de curta-metragem produzidos em todas as regiões do país.
Dois programas da citada série, um contendo o filme Veludo & Cacos-de-Vidro e outro o filme A Lâmpada e a Flor, ambos trabalhos universitários premiados em diversos festivais, tiveram sua exibição proibida pela direção da emissora por questões subjetivas de moralidade.
No primeiro programa, cujo complemento foi o filme Opera Curta, de Marcelo Laffitte, e o convidado foi o cineasta Luiz Carlos Lacerda, dois temas marcantes do debate foram, primeiro, o movimento gay no Brasil e, segundo, a atual conjuntura da política audiovisual no país, com ênfase para o projeto Ancinav e a TV pública.
A alegação oficial da TVE para a suspensão dos programas – transmitida por uma funcionária da produção – foi de que problemas técnicos haviam destruído as fitas.
Como esses filmes não possuem Classificação Etária expedida pelo Poder Judiciário – assim como várias centenas de outros já exibidos pelo programa Curta Brasil – conclui-se que o julgamento do que é próprio ou impróprio para a sociedade brasileira foi feito de forma unilateral, tendo somente a investidura da função da autoridade executora como instrumento de força legal.
Tal atitude caracteriza violência grave contra o estado de direito democrático e nos remete ao vergonhoso passado de autoritarismo militar. Isto é inconcebível no governo democrático e progressista que ora vivemos.
Assim sendo, esperamos que o Ministério da Cultura, a Secretaria do Audiovisual e a TVE revejam esta decisão e retomem a programação planejada para o programa Curta Brasil.
Sendo só para o momento, despedimo-nos com nossos votos de elevada estima. [16/3/2005]
Marcelo Laffitte – Associação Brasileira de Documentaristas, presidente; Luiz Carlos Lacerda – Associação Brasileira de Cineastas, presidente
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Fato grave ocorreu esta semana na TVE. Os programas Curta Brasil gravados com os filmes Veludo&Caco de Vidro e A Lâmpada e a Flor foram impedidos pela direção geral da emissora de entrar na programação. Motivo: contém cenas impróprias para a TVE, mesmo para o último horário noturno. A decisão foi tomada após consulta e concordância do CTAv.
Como os filmes não possuem Classificação Etária expedida pelo Poder Judiciário, assim como várias centenas de outros curtas que já foram exibidos pelo Curta Brasil, conclui-se que o julgamento do que é próprio ou impróprio para a sociedade brasileira foi determinada de forma unilateral, tendo somente a investidura da função da autoridade como instrumento de força legal.
Até hoje, durante os 10 anos de existência do Curta Brasil, a curadoria dos filmes era feita pelo CTAv. A partir de agora, o CTAv continua responsável pela curadoria, mas será necessária a aprovação de um ou mais funcionários da TVE (poderá até ser uma comissão), que assistirão os filmes e decidirão se são ou não são próprios para a exibição.
Estamos nos articulando com outras entidades (Abraci foi a primeira) para levantar este debate e tomar os encaminhamento cabíveis. Nossa determinação é que esta decisão seja revertida.
Marcelo Laffitte – ABD Nacional, presidente
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A TVE Brasil, que em sua programação valoriza a cultura e a arte brasileira, respeitando os valores éticos e sociais, esclarece que a não veiculação das obras foi decidida pela emissora em conjunto com o CTAV – Centro Técnico Audiovisual do MinC –, co-produtor do programa, após verificarem que as produções continham cenas inadequadas para a exibição em televisão no horário das 22h30, nos termos da Portaria Nº 796, de 8 de setembro de 2000, do Ministério da Justiça.
Beth Carmona, Diretora Presidente –ACERP, TVE Brasil e Rádio MEC
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O Departamento de Cinema, Rádio e TV da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, na condição de produtor do curta-metragem A Lâmpada e a Flor, trabalho de conclusão de curso de Pablo Ferreira, vem manifestar seu estranhamento diante do cancelamento da sua exibição, em programa conjunto com Veludo & Caco de Vidro, de Marco Martins. Como bem sabe Vossa Senhoria, A Lâmpada e a Flor foi produzido dentro de critérios que visam a formar um profissional de qualidade, com capacidade inovadora e visão cultural abrangente, aliada à competência técnica na área da produção audiovisual.
Respeitamos o trabalho que Vossa Senhoria vem desenvolvendo na TVE, que demonstra clareza da responsabilidade social e cultural de uma televisão pública, e justamente por isso torna-se para nós incompreensível tal atitude num momento em que acreditávamos não mais existir censura no País.
Uma televisão pública deve pautar-se por oferecer aos seus espectadores programas de qualidade que a diferenciem da oferta exclusivamente comercial da televisão aberta em que proliferam programas de baixo nível artístico e ético, exibidos sem nenhum controle social. O fato de a TVE ter convidado filmes produzidos em escolas de cinema para serem exibidos no programa Curta Brasil demonstra rara sensibilidade em abrir espaço para a veiculação de produções diferenciadas, resultantes da experimentação e do aprendizado. Ao considerá-los ‘inadequados’ para o horário do programa, a mesma TVE revela, no entanto, excessiva tutela com relação ao público esclarecido e promove um retrocesso preocupante.
Em vista da delicadeza da questão, acreditamos indispensável um esclarecimento consistente da TVE, a partir do qual se possa avançar no debate sobre a função social e cultural da TV pública e as responsabilidades de dirigentes, produtores e da comunidade. [São Paulo, 28 de março de 2005]
Maria Dora G. Mourão, Chefe do Departamento de Cinema, Rádio e TV da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP)
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Tomo a liberdade de enviar-lhe esta mensagem de solidariedade aos cineastas censurados pela TVE e de manifestar meu repudio a essa ameaça à liberdade de expressão artística. [15/3/2005]
Nelson Pereira dos Santos, cineasta
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Tomei conhecimento, através do presidente da ABD nacional Marcello Lafite e pelo diretor da ABRACI, Luis Carlos Lacerda, da suspensão dos programas gravados e contendo os filmes Veludo e Caco de Vidros e Opera Curta e A Lâmpada e a Flor e Uma Estrela para Ioio. Apesar de ser apresentadora, roteirista e coordenar os debates do Curta, até agora não fui informada sobre os motivos da não exibição e tenho respondido com minha opinião pessoal aos diretores, curta-metragistas e amigos que tem me ligado e questionado sobre o assunto. E me cobrado uma posição.
Se realmente os programas foram cancelados por conterem cenas de sexo, ou por terem sido considerados inadequados para o público da TV aberta, me parece uma questão que deve ser discutida de forma pública e transparente tendo em vista que:
a) Esses filmes são reconhecidos e premiados no meio, alguns realizados dentro de Universidades Públicas, orientados por professores, ou simplesmente a expressão de estéticas e comportamentos plurais (Veludo e Caco de Vidro é uma homenagem a Rogério Sganzerla, com sua ironia e deboche), Opera Curta é um filme com temática GLS, A Lâmpada e a Flor trata da exploração sexual de uma mulher e é um curta de conclusão do Curso de graduação em Cinema da USP, feito dentro de uma Universidade Pública e com aval dela. Uma Estrela para Ioiô é um filme sobre uma prostituta romântica.
b) Se a Televisão Educativa e pública não tem espaço para essa produção, onde seriam exibidos? Esses filmes não são o Ratinho, não é a banheira do Gugu, não tem nada a ver com o alvo da campanha contra ‘a baixaria’ na TV. Os filmes tem sua proposta, são apresentados, discutidos, os temas polêmicos são apresentados pelos próprios diretores, por mim e por convidados. Já passamos e discutimos no Curta Brasil temas como drogas, aborto, violência, prostituição, crime, tortura, etc.
c) Nunca recebemos um e-mail (que eu saiba) reclamando das abordagens dos filmes. Já exibimos curtas com cenas e temas tabus e fortíssimos, mas sempre os filmes vem contextualizados pela apresentação e debate. Exibimos Ave, de Paulo Sacramento, as animações de Alain Siber (com um curta inclusive vetado pela Igreja), filmes com cenas de streap tease, tráfico, consumo de drogas, violência doméstica, morbidez, mutilação, experiências limites que fazem parte de nossa sociedade e que, no meu entender, devem ser mostradas e discutidas. Exibimos filmes trazendo a diversidade sexual (homossexualismo, GLS, bisexualismo, hetero, todo tipo de comportamento sexual). Nunca houve em 10 anos (estou há menos tempo, mas nunca tive essa informação), questionamento ou condenação por parte dos espectadores da forma como foram exibidos os filmes ou conduzidos esses debates. Em alguns casos, orientada pelo diretor do programa, avisamos que o filme em questão continha cenas fortes.
d) Se os programas foram suspensos, acredito que o mais correto seria informar os diretores do motivo. É muito frustrante para um jovem diretor de cinema, depois de anunciado e divulgado (eu mesma tinha divulgado os filmes para os meus alunos do Curso de Comunicação da UFRJ) saber que foram cancelados e substituídos na última hora por uma reprise, como aconteceu neste domingo, dia 13 de março. Sem maiores explicações.
Desconheço os critérios de exibição de filmes na TV aberta, no domingo, às 22h30 e os critérios usados para o cancelamento. Fui informada que foram as cenas de sexo, no meu entender totalmente dentro do contexto dos filmes. Uma solução possível seria exibir o programa em um horário um pouco mais tarde. Ou constituir uma comissão de ética na TVE (com representantes com gosto estético, político e sexual, bem diverso) e que tomasse decisões de forma pública, transparente e argumentada.
Mas, no meu entender, tanto o formato atual, quanto o horário do Curta Brasil não precisa de mudança, pois é um programa com credibilidade e coerente com sua proposta original e seu público.
A suspensão de programas por conterem cenas julgadas impróprias cria um precedente e uma auto-censura para os programadores do CTAV que podem passar a descartar filmes excelentes, premiados, de qualidade, por terem uma ou duas cenas mais fortes ou que tem justamente a proposta de incomodar. O que seria muito ruim para a liberdade de expressão e o caráter democrático e plural que caracteriza o Curta Brasil.
Tenho participado de vários debates sobre a luta por uma TV aberta de qualidade (um deles em SP ano passado a convite dessa própria diretoria da TVE que sempre esteve preocupada com a questão) e uma das conclusões do evento era a necessidade da TV encarar os temas tabus e difíceis de frente, com diálogo e contextualização. São, por exemplo, esses temas mais polêmicos e tudo relacionado com sexualidade que os jovens mais gostariam de ver na TV, tratado de forma inteligente. Acho que os dois programas em questão fazem isso e espero que sejam exibidos como estava programado. Ao tratar desses temas com seriedade e sensibilidade, o Curta Brasil está dando sua contribuição a melhoria da qualidade da TV brasileira. [17/3/2005]
Ivana Bentes, apresentadora e roteirista do Curta Brasil, professora da Escola de Comunicação da UFRJ
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Em sua última reunião geral a ABD&C, secção do Rio de Janeiro, procurou discutir com critério e profundidade o veto dos filmes Veludo & Caco de Vidro, de Marco Martins, e A Lâmpada e a Flor, de Pablo Ferreira, que seriam transmitidos no programa Curta Brasil, e chegou às seguintes conclusões:
** Todos foram unânimes em afirmar que a atitude foi um erro, que abre um grave precedente, e que deve ser reconsiderada.
** Por outro lado, foi reconhecida, defendida e exaltada a importância do trabalho da Sra. e da vossa equipe desde que chegou a Fundação Roquete Pinto e a TVE Brasil. Trabalho este pautado pelo compromisso com a qualidade da TV pública e pelo espírito democrático.
Ressaltamos, por exemplo, o prestígio que o programa Curta Brasil ganhou, passando para o horário das 10:30, ampliando o seu público e ganhando até um novo cenário. Destacamos ainda que desenvolvemos com a TVE uma excelente relação em torno do programa DOC TV, sendo sempre consultados na formulação deste que já é um projeto pioneiro e bem sucedido.
** Nada disso no entanto serve para justificar o que aconteceu; ao contrário, serve para indicar o caminho que devemos tomar para consertar o que consideramos um equívoco. Não nos parece ter sentido vetar um filme, que passa seguido de um debate, num espaço onde os filmes tendem a ser originais, inteligentes, ousados e críticos justamente em relação à temas absolutamentes banalizados, comercializados e explorados sem nenhum escrúpulo em qualquer um dos horários de outras TVs abertas.
** Sendo assim, reiteramos os insistentes pleitos que têm sido feitos pela nossa entidade nacional pela reconsideração desta questão e pela reprogramação do programa Curta Brasil com os filmes em questão. [21/3/2005]
Rodrigo Guéron, Presidente da ABD&C/Rio de Janeiro