‘A morte sob tortura do jornalista Vladimir Herzog há 30 anos, no dia 25 de outubro de 1975, foi a culminância de uma escalada do regime militar contra o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Depois de liquidar as guerrilhas urbana e rural, a ditadura, que já voltara os olhos para o PCB desde meados de 1974, se assustou com o resultado das eleições de novembro, na qual a oposição venceu 16 das 22 cadeiras em disputa no Senado. E descobriu que a mais perigosa ameaça à sua continuidade não era a guerrilha armada, que sonhava implantar o socialismo, mas a guerrilha do voto, que pregava a volta da democracia.
A repressão do regime resolveu atacar com toda força um aliado estratégico do MDB, o PCB, no qual podia carimbar a pecha de ‘comunista’. Esse posicionamento do governo militar serviu como uma luva para a linha dura, que precisava de argumentos para preservar intocados seus ideólogos, agentes e métodos. ‘A vitória do MDB foi uma evidente reação da sociedade à ditadura’, afirma o historiador José de Souza Martins, professor aposentado da USP.
SEM LIMITES
No fim de 1975, a escalada acumulava seis inquéritos, acusando mais de uma centena de pessoas, e muitas mortes, sob tortura e a sangue frio, das quais a de Vlado foi apenas a mais simbólica e visível. A repressão desenfreada contra o PCB só terminaria em janeiro de 1976, depois que a morte do operário Manoel Fiel Filho no centro de tortura do DOI-Codi paulista cindiu os militares e o presidente Ernesto Geisel demitiu o comandante do II Exército, expoente da linha dura.
Nos anos anteriores, apesar da repressão mais generalizada, o regime, focado na repressão à luta armada, tinha ignorado o PCB, que era contra a guerrilha e tinha como estratégia a luta política pelo voto, afirma convicto o ex-dirigente Armênio Guedes. De fato, em 1972 o PCB contabilizou dois mortos (um deles, Célio Guedes, irmão de Armênio); em 1973, um. Os números cresceram em 1974, quando a luta armada já estava dizimada – desapareceram cinco dirigentes.
Com o resultado da eleição de 15 de novembro de 1974, a relação de baixas do Partidão cresceu assustadoramente: houve mortes sob torturas e assassinatos seguidos de sumiço do corpo. A grande ofensiva começou em janeiro de 1975, com o estouro de duas modestas gráficas do PCB, no Rio e em São Paulo.
A escalada contra o PCB para atingir o MDB foi uma idéia do regime e do governo, não apenas da linha dura. O atestado disso foi o pronunciamento do então ministro da Justiça, Armando Falcão, na televisão, no dia 30 de janeiro de 1975. Em sua fala, Falcão fez um relatório público do estouro das duas gráficas clandestinas do PCB. Como quem dava uma senha para identificar o novo inimigo do regime, Falcão destacou ‘o intenso esforço, o específico trabalho desenvolvido pelo PCB em favor de candidatos a diversos postos eletivos no pleito de novembro’.
CERCO
Com a imprensa encurralada pela censura, a Igreja sob intensa pressão, a nova estratégia da ditadura era ‘colar’ o PCB no MDB para interromper o avanço da nascente adesão popular à oposição e o crescimento da luta civilista pela redemocratização. As sucessivas cargas contra o PCB, durante o ano, foram todas marcadas pela evidente intenção de vincular o Partidão ao MDB e ao resultado das eleições de 1974.
O líder do PSDB na Câmara, Alberto Goldman (SP), acusado de ser militante do PCB em 1975 – e de fato o era -, diz que o general Geisel não agia diferentemente dos torturadores antes da morte do operário Manoel Fiel Filho, em janeiro de 1976. ‘A reação dele ao assassinato de Vlado foi quase nula. Ele só se dispôs a enfrentar o pessoal da tortura quando o poder dele foi colocado em xeque’, diz Goldman.
Na época, o deputado teve um curto diálogo com Geisel, num coquetel no Palácio dos Bandeirantes. ‘Estão matando gente em São Paulo’, disse Goldman. ‘Não pense que eu não sei disso’, respondeu Geisel, seco. Sabia, mas não fazia nada.’
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‘Cerco ao PCB começa com ataque a gráficas’, copyright O Estado de S. Paulo, 23/10/05
‘A grande repressão contra o PCB começou em 13 de janeiro de 1975, quando foram estouradas duas gráficas clandestinas do partido. Ambas tinham sido instaladas em compartimentos simulados de casas de subúrbio – em Campo Grande, no Rio; e na Casa Verde, em São Paulo. A fala do ministro Falcão na TV acuou o MDB, o que se repetiria em todos os outros episódios. Até abril, foram três inquéritos: o das gráficas, o da infiltração nos sindicatos e do chamado setor judeu e o que apurou a remessa de dinheiro do exterior para o Partidão.
No primeiro semestre de 1975, quatro dirigentes nacionais do PCB desapareceram. Preso o ex-deputado Marco Antônio Tavares Coelho, seu interrogatório se centrou na influência do partido nas eleições de 1974. Ele ouviu uma recomendação passada aos torturadores: ‘De ordem da presidência da República, deve ser feito um minucioso interrogatório sobre as ligações do PCB com o MDB, principalmente em função das eleições do ano passado’.
USO ABUSIVO
Sob tortura, Marco Antonio mencionou os nomes de militantes eleitos pelo MDB – com destaque para os paulistas Alberto Goldman e Marcelo Gatto, deputados federais, e o estadual Nelson Fabiano. Em junho de 1975, na Justiça Militar, negou as menções, mas o regime faria uso abusivo delas.
Em julho, houve 33 prisões na Bahia, entre elas o militante Carlos Augusto Marighella Filho, e mais 50 em Brasília. Em setembro, dezenas de prisões no Paraná. Em dezembro, 38 presos em Santa Catarina. No início de julho, a escalada desbaratou o chamado ‘setor-mil’, a base do PCB na Polícia Militar de São Paulo. Dos 68 presos, dois morreram sob torturas, o coronel José Maximiano de Andrade Neto e o tenente José Ferreira de Almeida, que teria ‘se suicidado’, igualzinho fariam, a acreditar no que diziam os torturadores, o vendedor Pedro Jerônimo de Souza, preso em Fortaleza, no dia 17 de setembro, e o jornalista Vladimir Herzog, no dia 25 de outubro’.
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‘‘Magrão’, o primeiro da lista’, copyright O Estado de S. Paulo, 23/10/05
‘No dia 29 de setembro de 1975, foi preso, no bairro da Bela Vista, em São Paulo, José Montenegro de Lima, o Magrão, ‘assistente’ da base dos jornalistas no PCB. Um ex-integrante do DOI-Codi contaria que Montenegro foi morto com uma injeção para sacrificar cavalos. Com sua prisão, foi inaugurado o ataque à base dos jornalistas.
Antes das prisões, o regime militar executou um rosário de pressões contra José Mindlin, então secretário de Cultura de São Paulo, cujo governador era um liberal, Paulo Egydio. O alvo eram os ‘comunistas’ da TV Cultura. A pressão contou com notas publicadas por alguns colaboracionistas da ditadura que desempenhavam papel de jornalistas. Uma denúncia direta contra Vlado Herzog foi feita à comunidade de informações pelo hoje senador Romeu Tuma (PFL-SP), como noticiou o Estado semana passada.
Sem exceção, todos os jornalistas presos antes de Vlado foram barbaramente torturados; os detidos depois não passaram por tortura. Ele foi procurado na TV Cultura no dia 24. Conseguiu negociar sua apresentação para o dia seguinte. Chegou ao DOI-Codi às 8 horas; no início da tarde estava morto. Não sobreviveu meio dia no centro de torturas da Rua Tutóia.
Com a morte de Vlado arrefeceu a escalada contra os jornalistas, mas prosseguiu a campanha que explorava a ligação do PCB com o MDB. Em dezembro, uma entrevista de Marcelo Gatto e NelsonFabiano ao Estado, protestando contra prisões de militantes ligados a eles em Santos, armou o gatilho da cassação. Em janeiro de 1976, sem dar qualquer explicação, o general Geisel cassou os dois.
A escalada seria bruscamente interrompida pela morte do operário Manoel Fiel Filho, no dia 17 de janeiro de 1976, em circunstâncias dramaticamente parecidas com a de Vlado e de Pedro Jerônimo. Tornara-se hábito dos subterrâneos da tortura ‘suicidar’ presos. Por sua brutalidade, a escalada de 1975 acabou servindo como aglutinador de esferas da sociedade que estavam dispersas e se juntaram pela redemocratização.
A Igreja saiu na frente: mergulhou de cabeça no caso Herzog. Antes, já tinha feito a opção pelas pastorais sociais (a Comissão Pastoral da Terra foi fundada em 1975, lembra o historiador José de Souza Martins). Fiel Filho, por sinal, era um ativo militante da Pastoral Operária conduzida por d. Paulo Evaristo Arns.
Com o caso Fiel, a ditadura se cindiu: o general Geisel, que, em seu depoimento ao CPDOC/FGV justificou a tortura ‘em alguns casos’, mudou de idéia. Demitiu o comandante do II Exército e instalou a primeira etapa de uma lenta, gradual e segura redemocratização, que ainda teve cassações e prisões políticas, mas acabou com as mortes violentas.’
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‘A melhor recordação de Vlado’, copyright O Estado de S. Paulo, 23/10/05
‘Fisicamente, o engenheiro Ivo Herzog lembra um pouco o pai, principalmente pelos olhos e sobrancelhas; mas na alma, é uma perfeita repetição. Tinha 9 anos quando o pai foi assassinado sob tortura, em 1975; hoje, aos 39, confessa que não tem lembranças físicas muito nítidas dele. Mas quando fala de valores, se empolga e a lembrança do pai brota subitamente forte.
Ivo diz que, no pouco tempo em que conviveram, o pai Vladimir lhe legou uma ética xiita, radical. ‘Aprendi que os fins não justificam os meios e que a coletividade está sempre acima do indivíduo’, afirma. Acha importante ter uma ideologia e se diz socialista. ‘Se você acredita em alguma coisa, tem de lutar por ela e defender. Se vier alguma coisa em sentido contrário, você tem de debater’, observa. E adianta, com rigor democrático: ‘É importante tornar pública a sua opinião.’
ELEIÇÕES
Dá grande importância às eleições e não descarta a possibilidade de, um dia, ser candidato. Não foi, até aqui, porque ninguém o convidou, embora tenha convivido com políticos toda a sua vida. Quando era adolescente, fazia boca-de-urna para o PSDB. Se for candidato, já tem uma plataforma: ‘O que acaba com desigualdade social é educação’, afirma.
A mãe Clarice, socióloga, trabalhou com d. Ruth Cardoso e foi aluna do professor Fernando Henrique. Os políticos que Ivo mais admira são Mário Covas, Franco Montoro e Ulysses Guimarães. Ele não se conforma de ‘um playboy’ ter ganhado as eleições de 1989, quando Covas e Ulysses eram candidatos. ‘Como o povo pôde escolher tão mal?’, interroga-se.
Ele tem sérias discordâncias com o PT por causa da política de oposição sistemática que os petistas faziam quando estavam na oposição. ‘Eles têm um passivo muito grande com a História brasileira. Quanta coisa o Brasil não deixou de fazer por causa do PT!’, bate. A crítica se amplia a Lula: ‘O presidente tem de ser líder e Lula não exerce essa liderança, só pensa em viajar. Ele impôs ao Brasil um processo de monólogo, nem entrevista coletiva dá’, diz.
ANISTIA
Ivo diz acatar a anistia que perdoou os assassinos de seu pai, mas acha que o crime deveria ser apurado em minúcias e os resultados, expostos a público. ‘Que as pessoas não tenham ido para a cadeia, tudo bem. Mas, se alguém cometeu um crime, mesmo depois de anistiado, a sociedade tem o direito de saber que, apesar de não ter de ir para a cadeia, aquela pessoa é um criminoso’, cobra.
Ele diz que não está interessado em saber os nomes dos assassinos diretos do pai. ‘Não me interessa. Eu quero saber quem foram os articuladores da coisa’, frisa. Alega que seu pai era, acima de tudo, um profissional e ele não assumia nenhuma postura radical, como também não usava a profissão para pregar sua ideologia.
Ivo tem uma noção precisa do que aconteceu. ‘Ele foi obrigado a escrever aquela carta. Depois concluiu ‘esse não sou eu’ e rasgou a carta. Aí aconteceu a morte dele’, presume. Segundo ele, a morte do pai é um marco na abertura democrática. ‘A partir daquele momento, a sociedade passou a manifestar a sua indignação de forma mais clara e intensa’, garante.
Apesar de se confessar ateu, revela que respeita os princípios das religiões. Talvez porque tenha concebido a efetividade do culto ecumênico que se seguiu à morte de seu pai. ‘Tudo começou na missa de sétimo dia, na Catedral da Sé. Foi lá que se perpetuou’, salienta.
Pessoas que Ivo nem conhece perguntam se ele é ‘filho do jornalista’, quando vêem o sobrenome. ‘Para mim, é motivo de muito orgulho. Mas é um orgulho complicado, porque você fica feliz pelo pai que teve, mas o pai está morto’, arremata.
O neto Lucas sabe ‘quase tudo’ sobre o avô
VAGAS LEMBRANÇAS: Ivo não nasceu no Brasil, como o pai; nasceu na Inglaterra, em 1966, à época em que Vladimir Herzog trabalhava na BBC. A mãe possibilitou-lhe estudar em boas escolas e hoje ele é engenheiro, formado pela Escola Politécnica, da Universidade de São Paulo (USP), com especialização em Logística. Tem um filho, Lucas, hoje com 8 anos.
Ele não tem lembranças físicas muito nítidas do pai, apenas das coisas que o relembram, como a aléia de pinheiros na entrada do sítio, em Bragança Paulista, a Asahi Pentax e o telescópio onde Ivo visualizou as manchas solares.
Lucas, que tem hoje a idade que o pai tinha quando Vlado foi assassinado, sabe quase tudo sobre o avô. ‘Ele tem interesse, lê jornais, participa da entrega do prêmio (Vladimir Herzog de Jornalismo), está sempre envolvido’, conta Ivo. Só não lhe contaram detalhes da extrema brutalidade com que o avô foi assassinado no DOI-Codi da Rua Tutóia. ‘Mas ele sabe que o avô foi assassinado pelo governo militar’, complementa o pai de Lucas.
Ivo, que viveu noutro tempo, viveu tudo cruamente. Viu ao vivo, na TV Cultura, quando dois agentes da repressão foram buscar seu pai. No início sua mãe lhe contou que tinha sido um acidente de carro, mas ele logo percebeu a verdade, com que tem convivido dolorosamente nestes 30 anos.’
Marcelo Godoy
‘Militares esperavam batalha após missa’, copyright O Estado de S. Paulo, 23/10/05
‘Os militares estavam preparados para uma batalha. Tudo para impedir que o ato ecumênico em memória de Vladimir Herzog se transformasse em comício ou manifestação. Seus agentes carregavam lenço vermelho na lapela ou na camisa. Quem os visse poderia imaginar que se tratava de protesto ou solidariedade ao morto. Essa foi a forma que o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) encontrou para identificar seus homens em meio à multidão esperada para a Catedral da Sé.
Eram 13 horas do dia 31 de outubro de 1975 quando os primeiros dos 172 agentes do Dops chegaram à Praça da Sé. Eram 10 homens que fariam a chamada ‘observação indireta’. No jargão da repressão, aquilo significava usar binóculos, máquinas fotográficas e filmadora para acompanhar a movimentação. Os últimos a aparecer por ali seriam os dois delegados e os dez investigadores que receberam missão de entrar na igreja e se infiltrar na multidão. Eram os ‘agentes especiais’.
Tudo isso está descrito nas 11 páginas da Operação Gutenberg, feita pelo Dops a pedido do 2º Exército e da Secretaria da Segurança Pública para vigiar a celebração realizada por d. Paulo Evaristo Arns na catedral. A ação do Dops era um complemento do Plano de Operações Terço, elaborado pela Coordenação de Informações e Operações (Ciop), do Gabinete da Secretária da Segurança Pública, com o objetivo de evitar o acesso das pessoas à Sé.
O Terço consistia em parar o trânsito da cidade por meio de blitze. Só no centro eram 25 bloqueios – outros 5 estavam nas pontes do Rio Pinheiros e avenidas que ligavam a Cidade Universitária ao centro. O Estado obteve cópias dos dois planos. O primeiro foi feito pelo delegado Tácito Pinheiro Machado, diretor do Dops; o segundo, pelo coronel do Exército Sidney Teixeira Alves, da Ciop, com o auxílio do coronel da Polícia Militar Milton de Almeida Pupo, do Policiamento de Trânsito.
‘A idéia era esvaziar. Massa é massa: quanto maior, mais difícil de controlar’, contou o então secretário da Segurança Pública, coronel Erasmo Dias. ‘Queríamos fechar os caminhos principais para chegar à catedral. Em vez de demorar dez minutos, ia demorar duas horas e muita gente desistiria no meio do caminho’, explicou.
Mas a intenção de mobilizar esse aparato ia além do que Erasmo Dias contou. Ele se preparava para uma batalha. Em sua avaliação da ‘situação geral’, o coronel Sidney, da Ciop, dizia que ‘informações coletadas dão conta da possibilidade de o ato transformar-se em pretexto para comícios ou mesmo agitações da ordem pública’ por outras áreas de São Paulo, como a Cidade Universitária.
Os inimigos eram os ‘subversivos, simpatizantes e inocentes úteis em flagrante atitude de perturbação da ordem’. Previa-se o emprego da força, mas só com a autorização do secretário. Ao Dops caberia acompanhar o ato religioso e, ‘mediante infiltração de agentes, identificar os líderes (do ato) e pinçá-los (prendê-los), de acordo com a evolução dos acontecimentos, além de realizar a triagem dos detidos’. A tropa de choque da PM faria a repressão de comícios e passeatas.
O Terço prescrevia um esquema de evacuação de feridos e aconselhava às organizações militares que instruíssem seus ‘elementos no sentido de evitar transitar pelas áreas centrais da cidade’ até as 20 horas.
A identificação dos líderes que seriam presos era função de 16 investigadores na Sé. Outras 11 equipes, distribuídas ao redor da praça, fariam as prisões. Os agentes tinham revólveres, pistolas, espingardas e bombas de efeito moral.
Os detidos seriam ‘triados’ no quartel do Corpo de Bombeiros. Para a coordenação-geral da operação, a repressão destacou seu mais famoso agente: o delegado Sérgio Paranhos Fleury. Tudo com aprovação do comandante do 2.º Exército, o general Ednardo D’Ávilla Melo, que foi informado de tudo pelo seu Estado-Maior.
Mas, ao contrário do que esperavam os militares, nenhuma batalha ocorreu. Não houve comício ou passeata que lhes perturbasse o sossego. As 8 mil pessoas que furaram o bloqueio do Terço ouviram a celebração em silêncio e assim voltaram para casa. Em ordem e em paz.’
Rodrigo Rötzsch
‘Sobel e Arns voltam à Sé para lembrar Herzog 30 anos depois’, copyright Folha de S. Paulo, 24/10/05
‘Trinta anos depois da missa em homenagem a Vladimir Herzog que serviu como protesto contra o regime militar, a catedral da Sé, em São Paulo, voltou a receber representantes de várias religiões para celebrar a memória do jornalista assassinado no Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna) em 25 de outubro de 1975.
Em 1975, o rabino Henry Sobel e o cardeal dom Paulo Evaristo Arns celebraram, ao lado do reverendo James Wrigh (já morto), a missa convocada pelo então presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, Audálio Dantas. Ontem, os três também estiveram presentes na cerimônia.
‘É fundamental que se relembre que o momento que estamos revivendo hoje mudou o destino do país. A partir do culto de 1975, com três confissões, houve um despertar da consciência nacional’, disse Dantas.
O ato multirreligioso de ontem foi ainda mais aberto à diversidade: além de dom Paulo e de Sobel, fizeram suas preces líderes de 17 outras crenças.
O arcebispo emérito de São Paulo fez um apelo para que a morte de Herzog não tenha sido em vão: ‘Construamos a paz, a justiça, a verdade, e então Vlado não terá morrido em vão’.
Já Sobel, presidente do rabinato da Congregação Israelita Paulista, firmou o compromisso de nunca mais silenciar diante de violações dos direitos humanos. ‘Assumimos hoje o compromisso de nunca mais calar-nos, pois o silêncio é o mais grave dos pecados.’
O ato começou com um ‘abraço’ à catedral. Cerca de 400 pessoas, entre cantores do Fórum Coral Mundial e transeuntes, deram as mãos e fizeram uma roda em volta da igreja. Juntas, cantaram ‘Eli, Eli’, um canto da tradição judaica, religião de Herzog.
O momento mais emocionante da cerimônia foi quando a viúva de Herzog, Clarice, leu um poema escrito por dom Hélder Câmara, arcebispo emérito de Olinda (PE), morto em 1999. Na missa de 1975, dom Hélder esteve presente, mas não pôde falar, por medo da repressão do regime militar.
Com a voz embargada, Clarice leu as palavras escritas por dom Hélder: ‘Não me deixes carregar um ramo seco, inútil e morto, quando a razão de meu vôo é levar a meus irmãos ramo cheio de vida, anunciador da paz’.
Presentes à cerimônia, o governador Geraldo Alckmin e o prefeito José Serra, ambos do PSDB, ressaltaram a importância da mobilização causada pela morte de Herzog para o país.
‘O significado desta reunião hoje é rememorar o momento, que, com o sacrifício de Vladimir Herzog, representou o ponto decisivo na restauração da liberdade e do respeito aos direitos humanos no Brasil’, disse Serra.
Para Alckmin, ‘a catedral da Sé viveu, há trinta anos, uma indignação santa, que acabou mudando o Brasil’. ‘A morte do Vlado Herzog causou tal impacto que acabou levando a uma abertura maior e à democracia’, disse.
O deputado Alberto Goldman (PSDB-SP), que esteve na missa de 1975, disse que estar ontem na Sé trazia ‘uma sensação de que a luta valeu a pena’. ‘É bom relembrar que de lá para cá nós construímos muita coisa, para que isso nunca mais possa acontecer.’’
Frederico Vasconcelos
‘Mindlin lembra pressões para afastar Herzog’, copyright Folha de S. Paulo, 24/10/05
‘Desde o telefonema que recebeu, nos EUA, num domingo, com a notícia da morte de Vladimir Herzog, ocorrida na véspera no Doi-Codi, em São Paulo, o então secretário de Cultura, José Mindlin, 91, nunca teve dúvidas de que o jornalista foi assassinado.
Mindlin relembra as pressões que sofreu -às quais resistiu- para afastar Herzog da direção do Departamento de Jornalismo da TV Cultura, vinculada à sua secretaria. Segundo ele, uma das queixas do SNI (Serviço Nacional de Informações) em relação a Herzog era que o jornalista dava mais ênfase, no noticiário de atentados no mundo, às mortes de terroristas, praticamente ignorando as de policiais.
Mindlin lembra conversa com o coronel Paiva, chefe do SNI em São Paulo, a quem Herzog foi submetido a uma consulta por telefone.
‘Ele me disse que o Vlado era mal orientado, pois, no dia da posse, a TV Cultura exibiu um documentário sobre Ho Chi Min [líder vietnamita]. Respondi que já devia se tratar de assunto decidido antes da posse, independentemente do Vlado.’
‘Sugeri’, diz Mindlin, ‘um encontro dele [coronel Paiva] com o Vlado. E que lhe desse a orientação que considerasse adequada. Se ele não cumprisse, eu poderia concordar com a demissão.’
Quando Herzog foi preso, Mindlin estava num seminário nos EUA, e não descarta a possibilidade de que Herzog tivesse sido morto para atingi-lo. ‘Os jornalistas presos me disseram, depois, que a tônica dos interrogatórios era a minha ligação com o Partido Comunista. O que nunca houve’, disse.’
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‘Juiz que condenou a União temia ser morto’, copyright Folha de S. Paulo, 23/10/05
‘Às vésperas dos 30 anos da morte de Vladimir Herzog, o juiz federal Márcio José de Moraes, 60, revela que, nas semanas em que se isolou para julgar a ação condenando a União pela morte do jornalista, ele temeu ser seqüestrado e torturado pelo mesmo esquema paramilitar que matou Herzog.
Desembargador e ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Moraes admite que a sentença o redimiu da alienação da juventude. Antes da morte de Herzog, relutava em crer que havia tortura no Brasil. Ele não aceitou o conselho de amigos para ‘segurar’ a decisão até 1979, quando o AI-5 deixaria de vigorar, o que reduziria os riscos pessoais: ‘O gesto só teria valor, como uma espécie de grito político, de revolta contra a ditadura, se fosse dado sob o clima da ditadura, sob o AI-5’.
Folha – O sr. tinha alguma atuação política na universidade? Como o sr. via o clima de repressão?
Márcio Moraes – Eu venho da classe média do interior paulista. Meu pai tinha uma loja de ferragens em Jacareí. Minha família é católica. Eu vim para USP, em São Paulo, com o firme propósito de estudar. Não me envolvi na política na faculdade. Não fiz parte de nenhum partido. Meu irmão estudava história na USP e tinha mais participação política que eu.
Folha – Algum parente ou amigo do sr. foi preso, torturado?
Moraes – Não. Alguns conhecidos da faculdade tiveram problemas. Eu me formei em 1968. A ditadura militar estava extremada, começaram as perseguições.
Folha – O sr. acreditava, na época, que havia prisões e tortura?
Moraes – Mesmo depois da formatura, desinformado, eu ainda resistia a acreditar que havia tortura e morte. Eu ainda admitia que pudesse haver perseguição política. Mas, na verdade, a tortura e a morte eram coisas que eu tinha dificuldade em acreditar.
Folha – Como o sr. tomou conhecimento da morte de Herzog?
Moraes – Em 1975, eu estava no escritório de advocacia, compro o jornal e vejo que Vladimir Herzog morreu. Eu realmente fiquei chocadíssimo. Não só pela notícia em si. Mas porque ficou absolutamente claro, para mim, que, na verdade, ele morreu torturado.
Folha – O sr. teve a convicção, então, de que não foi um suicídio?
Moraes – Já naquele momento. Não era possível que a pessoa tivesse entrado no DOI-Codi, de manhã, e estivesse morto à tarde.
Folha – Qual foi o impacto?
Moraes – Foi um choque pessoal. Caiu por terra a resistência que eu tinha em acreditar que a ditadura estava perseguindo, prendendo, matando prisioneiros políticos. Percebi claramente que tudo era verdade. Tive uma certa crise de consciência, por não ter participado politicamente para tentar evitar que aquilo acontecesse.
Folha – Qual foi o efeito?
Moraes – Uma semana depois da morte do Herzog, eu participei do culto ecumênico na praça da Sé. Mas ainda um tanto quanto receoso, porque depois que se deu aquela conscientização pessoal, política, em decorrência da morte do Herzog, eu ainda tinha uma certa dificuldade de me engajar.
Folha – Mas o sr. foi ao ato?
Moraes – Mas eu não fiquei dentro da igreja. Fiquei no lado, perto de uma pastelaria… Até mesmo, pensando comigo, veja só até onde ia a minha covardia política naquele momento: ‘Se a cavalaria da Polícia Militar invadir a praça da Sé, como se noticiava, eu me ponho aqui dentro da pastelaria e como um pastel’. Alegaria que estava comendo um pastel…
Folha – Então, não foi por dificuldade de chegar à igreja…
Moraes – Eu poderia ter me posto no meio da praça da Sé. Eu fiquei de lado, como participante direto do ato. Participando, mas ao mesmo tempo tendo o álibi do pastel… Imagine a minha surpresa, quando, três anos depois, em 1978, eu recebo o processo do caso Herzog para sentenciar…
Folha – Por que o juiz titular, João Gomes Martins, foi impedido de dar a sentença no processo?
Moraes – Foi um fato sui generis na literatura mundial: um mandado de segurança para impedir um juiz de ler a sentença…
Folha – Por que o governo suspeitava que ele condenaria a União?
Moraes – Porque o dr. João estava às vésperas da aposentadoria compulsória. Iria completar 70 anos. Depois que o processo terminou, ele marcou uma audiência de leitura da sentença, dias antes da aposentadoria dele…
Folha – Essa audiência de leitura é uma prática comum?
Moraes – Não é comum. Ele queria marcar, mesmo.
Folha – A interpretação era que ele responsabilizaria a União?
Moraes – O governo militar fez a seguinte leitura: ele, estando no final de carreira, teria muito mais liberdade para condenar a União do que o juiz substituto dele, que estava em início de carreira.
Folha – Qual era o perfil do juiz?
Moraes – O dr. João não era um jurista, mas era um humanista. Um homem de uma cultura vasta, de grande experiência de vida. Trabalhei com ele oito anos. Fizemos uma grande amizade. Tornei-me quase um filho dele.
Folha – O sr. percebia a expectativa da ditadura de que poderia dar uma sentença favorável à União?
Moraes – Percebi. Ficou muito claro para todo o mundo na Justiça Federal que a aposta do governo militar foi exatamente entregar o caso a um juiz mais novo, que, em função de carreira, e do clima, tinha muito mais a perder.
Folha – Com o AI-5 em vigor, quais eram os riscos para os juízes?
Moraes – Naquele período, tudo podia acontecer. O AI-5 permitia cassar a cidadania, cassar os direitos políticos. O juiz poderia perder o cargo. Depois, nem era tanto a aplicação do AI-5, que já dava respaldo à ditadura. Era o medo, na verdade, de que poderia acontecer [com o juiz] o que aconteceu com tantos outros: simplesmente de ser seqüestrado e torturado, como aconteceu com Herzog. Havia um clima muito opressivo, quer pelo AI-5, que permitia ao governo fazer qualquer coisa, como manter alguém preso e incomunicável, quer pela própria repressão paramilitar, que, naquela época, em função mesmo do caso Herzog, tornou-se pública e notória. Todo o mundo sabia que havia esse aparato paramilitar que era o braço executor do governo.
Folha – Quando o sr. soube que iria julgar o processo, quais cuidados tomou? Havia preocupação com a sua integridade física?
Moraes – Ah, tinha sim, sem dúvida. Mas, eu também tinha, a meu favor, a minha mocidade. Ou seja, essa volúpia no sentido de poder exercer a magistratura com todas as suas condições, apesar do regime militar. Era a força da juventude, de se rebelar contra isso. Quando eu percebi que aqueles anos eu tinha sido quase um alienado político, queria exercer esse caso com toda a liberdade de um juiz que quer melhorar seu país.
Folha -Quais foram os cuidados pessoais que o sr. tomou?
Moraes – Tomei algumas precauções. Levei minha família para o interior. Tirei férias e dediquei-me exclusivamente à sentença. Eu fiquei na minha casa, um pouco na casa de meus pais.
Folha – Tinha segurança pessoal?
Moraes – Nessa época, não existia isso. Na verdade, estávamos desprotegidos completamente.
Folha – O sr. recebeu apoio?
Moraes Alguns colegas vieram conversar comigo. Alguns parlamentares federais sugeriram: ‘Não sentencie agora, porque ainda está na vigência do AI-5. O governo te pega’. O AI-5 deixaria de ter vigência em 1º de janeiro de 1979. Estávamos em outubro de 1978. ‘A notícia que se tem em Brasília é que, se você condenar a União, vai sofrer represálias.’
Folha – O que o sr. fez?
Moraes – Dei a sentença com o AI-5 em vigor. Essa visão eu me orgulho de ter tido. Seria uma reação, um grito de independência do Poder Judiciário. Já tinha formado a minha convicção, iria condenar a União. O gesto só teria valor, como uma espécie de grito político, de revolta contra a ditadura, se fosse dado sob o clima da ditadura, sob o AI-5.
Folha – O sr. recebeu pressões?
Moraes – Recebi vários telefonemas anônimos. Mas nenhuma ameaça. Eram xingamentos.
Folha – O que eles diziam?
Moraes – ‘Veja lá o que vai fazer… estou de olho em você’. E mais palavrões. ‘Cabeludo, filho daquilo’… Do regime militar não recebi nenhuma insinuação.
Folha – Como estava o processo, quando o sr. recebeu o caso?
Moraes – As audiências já tinham sido feitas. O processo estava pronto para a sentença. Eu já tinha a convicção formada, era matéria que eu dominava. Fui advogado de banco e estudei muito o tema da responsabilidade civil do Estado. Sabia que, na sentença do caso Herzog, eu podia dar um passo muito importante na questão da responsabilidade civil.
Folha – O sr. trocou informações ou consultou o juiz anterior?
Moraes – Não, mas seria normal. Ele perguntou: ‘Quer ler a minha sentença?’ Agradeci, mas não quis. Quando ele passou o processo para mim, escreveu um bilhete: ‘Ao me proibirem de ler a sentença, mal sabem eles que sua mão é muito mais capaz e pesada’.
Folha – O sr. conversava sobre o caso com outras pessoas?
Moraes – Não sobre o mérito. Eu mostrei a minha sentença alguns dias antes de publicar a um grande amigo meu, que foi ministro do Superior Tribunal de Justiça: Miguel Jerônymo Ferrante. Era um juiz mais antigo, muito respeitado. Pedi a opinião dele. Ele me devolveu, no mesmo dia, com um bilhete: ‘Você fez uma obra jurídica. Não tenho nada a dizer’.
Folha – Foi uma decisão solitária?
Moraes – Foi uma decisão solitária e muito difícil. Todos aqueles anos de alienação caíram sobre mim: ‘Agora você tem que mostrar quem você é: no sentido de dar a decisão, seja qual for, o mais livre possível, sem amarras políticas, sem preconceito político, sem qualquer tipo, o mais consciente. E para responder a essa ditadura. Está aí na sua mão’. Na verdade, foi a hora que eu cheguei para mim mesmo e disse que, politicamente, eu não poderia mais ficar comendo pastel. Quando tirei essa armadura de dentro de mim, pude ser capaz de dar a sentença.
Folha – No processo, o que mais pesou para a sua decisão?
Moraes – O laudo era imprestável, assinado apenas por um perito. O perito-chefe assinou sem fazer a autópsia. O laudo, a principal prova da União, não tinha validade. As testemunhas disseram o que acontecia naquelas dependências. Alguns ouviram os gritos de Herzog. Isso foi prova suficiente para me convencer de que Herzog morreu por causa da tortura.
Folha – O que sustentou a responsabilidade da União?
Moraes – O Estado era responsável, independente de qualquer circunstância, porque tinha alguém sob sua guarda.
Folha – O sr. também foi além, ao determinar a investigação criminal em relação aos responsáveis.
Moraes – Primeiro, eu anulei o laudo. Segundo, valorizei as provas para mostrar que havia tortura naquelas circunstâncias. Terceiro, determinei a abertura de Inquérito Policial Militar para verificar os responsáveis, todas as autoridades policiais e militares que se encontravam no local e que foram responsáveis pela tortura.’