‘Passou-se quase um ano desde que fui demitido do cargo de editor-executivo do New York Times, vítima do terremoto que se seguiu à demissão forçada de um perturbado jovem repórter, Jayson Blair, que inventou ou plagiou fatos e citações em reportagens. Não vou gastar o resto de minha vida repetindo os detalhes do escândalo Blair. Minha intenção aqui é prestar um último serviço ao jornal no qual trabalhei e que amei por 25 anos, revelando a verdadeira luta que se desenvolvia nos bastidores do Times enquanto acontecia o escândalo Blair.’
O trecho acima é o primeiro parágrafo do artigo (ou ensaio memorialístico, ou testamento de fé em si mesmo, ou lições para redações mimadas mundo afora – há características de tudo isso no texto) que Howell Raines, o editor-executivo deposto recentemente do New York Times, escreveu para a edição de maio da centenária revista The Atlantic Monthly (www.theatlantic.com), sediada em Boston. Nada menos do que 32 páginas em letra pequena. Os americanos contam em palavras: são 20 mil, algumas de amor ao jornal, outras bem duras.
Catherine Mathis, a diligente porta-voz do NYT, reagiu com elegância e distância: ‘No artigo para The Atlantic Monthly, Mr. Raines considera o Times ‘indispensável’ e ‘insubstituível’. Nós concordamos. E isso se deve ao inspirado trabalho de homens e mulheres do Times ao longo de décadas’.
No texto de Raines, nada de nariz de cera: está logo no segundo parágrafo a ‘estratégia de revitalização’ que ele e seus colaboradores mais estreitos buscavam para o Times e o ‘sentido de urgência’ das mudanças que as ‘vulnerabilidades’ do jornal exigiam. Tudo com apoio do publisher, Arthur O. Sulzberger Jr., que, a par da preservação das tradições, sempre teria pressionado sua equipe por um Times ‘mais brilhante, mais vigoroso e mais sensível à diversidade geográfica e às exigências do público nacional, do qual depende seu futuro’. Premências que o texto revela serem, na verdade, de Raines.
O futuro do Times era, e continua, a grande preocupação do ex-editor-executivo. Um futuro que não está garantido, ele alerta. Futuro viável, para Raines, quer dizer não só prestígio, mas público e anunciantes qualificados, no diário e no jornal dominical impressos, sim, mas também na internet, na editora e até na TV – que ele considera essencial ao futuro do Times. Essa viabilidade exige melhorias significativas no jornalismo do Times, insiste: ‘Da calcificada primeira página que nossa equipe herdou em 5 de setembro de 2001 às negligenciadas seções soft‘. Ele menciona a silenciosa mas intensa guerra de facções entre os editores que endossavam as mudanças e os tradicionalistas da redação e de gerências de nível médio, que queriam o Times como sempre fora e consideraram um insulto a idéia de que ‘o maior jornal do mundo’ não era bom como poderia ou deveria ser.
‘Papai e mamãe’
As declarações de profunda admiração pelo jornal da Rua 43 Oeste são muitas: ‘Instituição americana insubstituível’, que ‘ocupa lugar central em nossa vida cívica nacional’, ‘peça-chave ética do jornalismo americano’, ‘publicação de elite’, ‘informativo das comunidades política, diplomática, governamental, acadêmica e profissional’ dos EUA, ‘elo entre essas comunidades e seus equivalentes no mundo’, que ‘se cessasse de existir não poderia ser reinventado por nenhuma empresa de mídia hoje em atividade’ – trecho por sinal ironizado pela irreverente Slate ao comentar a prévia do artigo liberada à imprensa em 24/3 e registrada neste Observatório [veja remissão abaixo].
A bem dizer, nos Estados Unidos houve um coro de críticas ao artigo e à postura de Raines, considerada arrogante. De fato, o texto fica monótono quando ele desfia suas numerosas habilidades para mudar o ‘ambiente de letargia’ em que estaria mergulhado o New York Times. Entretanto, quando se propõe a empregar sua legítima experiência de profissional na descrição dos desvios que flagrou ao longo de sua gestão, com ajuda de 25 anos de casa, o texto agrega peso à bagagem de todos que se interessam pelo ofício do jornalismo. Quem trabalha ou trabalhou em jornal reconhece imediatamente velhos vícios de redação, que se instalam sabe-se lá como, não importa o tamanho da publicação, sua importância ou seu país de origem.
Howard Kurtz, veterano crítico de mídia do Washington Post, considerou válido esse exame de Raines (terá percebido semelhanças em sua redação?), ‘chefe exigente’ que condenou o Times por sua ‘cultura de queixas’, sua ‘atmosfera de prazos apertados’, a ‘administração por falsidade’, o ‘universo editorial laisser-faire‘, a ‘indiferença pela competição’, o ‘trabalho comum aceito como excelente’ e o ‘relapso (…), como adequado’.
Vale a pena tentar destacar (embora sejam interligados) os pontos críticos, enumerados por Raines, de uma redação composta de 1.200 jornalistas e outro tanto, ou mais, de pessoal de apoio (uma grandeza desconhecida para o jornalismo brasileiro). Antes, porém, cabe lembrar que sua grande crítica, em tom de desprezo, vai para o Newspaper Guild, poderoso e onipresente sindicato da redação (um poder desconhecido dos jornalistas brasileiros, até porque sempre rejeitaram a sindicalização por local de trabalho, preferindo-a por categoria), que sustenta os empregos, mesmo os dos menos capazes: ‘A empresa é o papai e o sindicato é a mamãe’.
Aos pontos, então, sempre nas palavras de Raines:
‘Nossa cultura’
O que o pessoal do Times chama de ‘nossa cultura’ significa que qualquer mudança, não importa o quão benéfica, deve ser vista como um perigo potencial. O bom trabalho é valorizado, mas o rotineiro é visto como excelente, e o medíocre, como adequado. Ninguém fala publicamente sobre a complacência arrogante que permeia o jornal, o que mina a vontade da equipe de mostrar a plenitude de seu talento para enfrentar o desafio diário de melhorar o Times.
O furo
Algumas editorias ensinam explicitamente aos repórteres impressionáveis a esnobar o furo de reportagem, abrigadas na decadente máxima do Times de que ‘nada é notícia enquanto nós não dissermos que é notícia’. Por conta disso, o Times não vê problema algum em ficar atrás em grandes assuntos, porque ‘quando entramos no assunto nós damos melhor’.
A complacência
Na única entrevista que dei sobre o caso Jayson Blair falei da resistência que enfrentei como ‘agente de mudanças’, escolhido pelo publisher para confrontar a letargia e a complacência da redação. Dias depois, ao apresentar à equipe o meu sucessor, Bill Keller, Arthur [Raines trata Sulzberger o tempo todo pelo nome de batismo] rebateu meu comentário: ‘Não há complacência aqui – nunca houve, nunca haverá’. Posso garantir que ninguém na redação acreditou, nem o próprio Arthur. Era um mantra ritual, destinado a reafirmar a fé no mito da superioridade natural do Times – a complacência é até alvo de piadas internas, mas sempre desmentida ao público externo.
Mais importante, Arthur sinalizou que nada de dramático seria feito para chatear o mimado mundo do jornal.
Competição e antecipação
Todos sabiam que fui indicado por Arthur para ser ‘o nosso Patton’, como ele disse em minha primeira avaliação anual [referência emblemática – George S. Patton Jr. foi um polêmico general americano da Segunda Guerra Mundial que, enquanto vencia batalhas, chocava superiores, subordinados, aliados e adversários com sua interpretação anacrônica da guerra, da política e da história], ‘para fazer subir nosso metabolismo competitivo’ e enfrentar dois problemas: a indiferença pela competição e a lentidão crônica em antecipar a notícia e pôr em marcha seus enormes recursos. Essas características são bem conhecidas dos profissionais de jornalismo, e objeto de constante desespero para os veteranos do Times. Nossa eterna pose despreocupada, acima da disputa, transformou-se numa afetação vitoriana, que não mais podemos bancar. Nosso pulso está mais lento, enquanto o da nação se acelera.
Viajar para quê?
Joseph Lelyveld me alertou: eu estaria herdando uma geração de correspondentes nacionais que resistem a viajar para cobrir acontecimentos em suas regiões. Um editor me reproduziu a frase de um deles: não precisaria viajar, porque poderia cobrir o fato bem melhor pela internet.
Ninguém sai
Como em Harvard, entrar no Times é difícil, mas sair é pior ainda. Nos anos 1990 os editores do NYT foram convocados a um seminário com um consultor de pessoal, Doug Wesley, para aprender a demitir. Perguntei por que tal exercício, já que no NYT nunca demitimos ninguém. ‘O que vocês fazem com os funcionários improdutivos?’, devolveu o surpreso consultor. ‘A gente dá menos trabalho a eles’, respondi, em meio às risadas dos demais editores.
Jornais com menos recursos e sem regras sindicais inibindo demissões vigiam mais de perto a produtividade. Num caso famoso no Times, um editor inadvertidamente deixou passar o período de experiência, de quatro semanas, de um mau repórter. Ao avisar que ele fora reprovado, e que certamente não gostaria de permanecer na equipe devido a um engano, o fulano disse que não, que ficaria numa boa, e está lá até hoje, um quarto de século depois.
Jornalismo mañana
A tendência ao jornalismo mañana, de deixar para amanhã ou para outro a pauta de hoje, contagia os novatos como uma doença transmitida pelos dutos do ar-condicionado. Em 1981, uma fonte interessada em derrubar o vice-diretor de informações do governo Reagan tentou dar ao Times dicas sobre seus atos de corrupção, mas a reação do jornal foi tão lenta que o furo acabou repassado ao Washington Post. Repórteres que enfrentam a cultura da inação são, entretanto, valorizados. [Raines foi um deles. Teve carreira meteórica no NYT, com promoções, postos no exterior e prêmios, como o Pulitzer em 1992.] Mas o editor-executivo que tenta fazer mudanças, como tantos tentaram, descobre que com dois anos de casa a maioria dos repórteres e editores opta por ficar de fora da meritocracia, ou seja, do reino do talento recompensado. Alguns, com poucos meses de casa. [A ilustração da Atlantic para esta página é chocante: um provável repórter, recostado em sua cadeira, mãos cruzadas atrás da cabeça, parece atento aos ponteiros do relógio, aguardando o fim de seu turno de trabalho].
Cultura de queixas
Quando um novato chega ao Times é recebido calorosamente por representantes de duas culturas: a das realizações e a das queixas. Os representantes do sindicato lideram o grupo da cultura das queixas, e com o Times contratando tantos jovens hoje em dia [até o Times…] a rede do Guild lhes assegura o emprego mesmo que não consigam atingir os padrões do Times. Mas não só: veteranos que olham o relógio à espera da aposentadoria são os garçons da cultura de queixas.
Fracasso e promoção
Em 1980, quando eu cobria a campanha de Ronald Reagan, Abe Rosenthal [mítico editor do Times, que trabalhou lá por 56 anos] me exortou a ser agressivo. Em seguida disse que talvez eu não devesse seguir o conselho dele. Afinal, o Times fora derrotado na cobertura de Watergate – ‘E o que fizemos? Todos demos promoções a nós mesmos: eu me tornei editor-executivo, Seymour Topping virou editor-gerente e Max [Frankel] passou a editor da página de editoriais’.
***
Seguem-se longas memórias sobre o processo de escolha e negociação do novo editor-executivo, a partir do anúncio da aposentadoria de Joseph Lelyveld – o que o remete a antigos capítulos da história do Times. Raines conta que advertiu o patrão de que o jornal precisava, para chegar forte a um futuro viável, de um editor assim assado – ele mesmo, claro, ‘preparado para a posição’ desde que começara no Birmingham Post-Herald, em seu Alabama natal, em 1964. E disse a ‘Arthur’ que não o chamasse se não fosse para mudanças drásticas. Sulzberger acabou convencido. Bill Keller, a outra opção, perdeu então. Não casualmente hoje comanda o barco.
Na opinião de Raines, um editor com seu perfil garantiria este almejado futuro, ameaçado pelo ‘paroquialismo nova-iorquino’ [o que soa extravagante a ouvidos periféricos…], por um site ruim [???], pelo descaso com a TV e, principalmente, por jornais que hoje brilham mais, pelo menos nas edições nacionais, para todos os gostos: USA Today [ironicamente, agora às voltas com seu próprio ‘Blair’] e The Wall Street Journal. Até o restrito The Financial Times teria encontrado sua voz nacional.
Na próxima semana
Os erros de Raines e o pivô de sua desgraça. Jayson Blair – quem diria, um foca – botou a perder todas as teorias do editor-executivo.