Antigamente, a imprensa pecava por invasão de privacidade. Agora, ela é vítima das chamadas ‘evasões de privacidade’. Antes, o jornalista errava quando rompia as fronteiras da vida íntima de quem quer que fosse. Naquela época, os escândalos eram uma ex-primeira-dama tomando sol no quintal de casa ou as declarações eróticas de um nobre inglês captadas por um gravador escondido. Os escândalos eram garimpados por invasores de privacidade. Mais recentemente, algo se inverteu. Agora, as privacidades não esperam para ser invadidas. Ruidosa e alegremente, tratam logo de se evadir. Saem correndo, por sua própria conta, para o meio da rua. E fazem os escândalos de antigamente parecer brincadeira de criança.
O mercado das privacidades cresceu vertiginosamente. A indústria do entretenimento – que acabou engolindo o negócio, antes autônomo, dos veículos jornalísticos – especializou-se no ramo. Os reality shows talvez sejam a face mais escancarada dessa tendência, mas estão longe de ser a de maior alcance. Quase todo o noticiário evolui como um reality show desgovernado. As celebridades são célebres exatamente porque transformam a própria intimidade numa encenação, numa ‘obra aberta’, incluindo aí suas núpcias seqüenciais, o nascimento dos filhos e os velórios de familiares. Fazem a festa das revistas e dos chamados programas de variedades – invariavelmente invariáveis. A celebridade é célebre porque celebra em público a sua intimidade espetacular – que teria o dom de vingar ou de redimir a miséria íntima dos anônimos amontoados no auditório. De algum modo perverso, todo mundo que é notícia, mesmo que não queira, acaba sendo visto como celebridade.
Pode soar inacreditável, mas a idéia de privacidade já foi levada a sério. Já se acreditou que ela constituísse um ambiente inviolável, um refúgio – ou mesmo um esconderijo. Não foram poucos os corruptos que procuraram esquivar-se das investigações alegando razões de ‘foro íntimo’ e se acobertando atrás de um conceito peculiar de privacidade. Não por acaso, há pouco menos de um século Rui Barbosa escreveu: ‘Queira ou não, os que se consagraram à vida pública, até à sua vida particular deram paredes de vidro.’ A privacidade, por certo, era uma instância a se respeitar, mas também ela tinha seus limites: não poderia servir de escudo contra o interesse público.
Hoje, somos desafiados a pensar pelo caminho oposto. Não se trata mais de proteger a privacidade da sanha dos jornalistas inescrupulosos, mas de proteger o espaço público do assalto que lhe perpetram todos os dias as privacidades industrializadas. Se fôssemos retomar Rui Barbosa, diríamos que aqueles que dão paredes de vidro às suas predileções de alcova alcançam luminosamente o estrelato. O problema, agora, é identificar, no meio da gincana entre tantas e tão monstruosas privacidades evadidas, onde é mesmo que está o interesse público.
Em qualquer país que se queira, o cenário é mais ou menos igual. Na França, a avalanche de reportagens sobre a nova esposa popstar de Nicolas Sarkozy engolfou a agenda pública e, na opinião de alguns, escondeu temporariamente os temas realmente relevantes. Com isso o presidente da República foi beneficiado por uma trégua, uma lua-de-mel adicional com a opinião pública que só agora se vai desmanchando. Nos Estados Unidos, o favoritismo de Barack Obama foi recentemente abalado por declarações de cunho racial, um tanto heterodoxas, feitas pelo pastor da igreja que o pré-candidato freqüenta. Ora, pelo menos desde John Locke a religião é assunto da esfera privada do indivíduo. Não se pode aceitar que ela se venha a confundir com o Estado – a não ser quando se converte em fanatismo violento que ameace a liberdade dos demais. As opiniões do pastor terão algum efeito num eventual futuro governo Obama? Nenhum. Revelam alguma tendência racista de Obama? Nenhuma. Apesar disso, a polêmica se espalhou com grande força – não porque um repórter tenha descoberto algum deslize ético que o pré-candidato tentasse ocultar no âmbito de sua intimidade, mas porque um personagem lateral, atraído pelos holofotes, resolveu que suas opiniões deveriam descer dos púlpitos e subir nos palanques. Claro: o religioso virou notícia e embolou o meio-de-campo.
Quanto ao Brasil, temos agora o caso Ronaldo. Sua noitada com travestis ganhou as manchetes, o que é justificável. Sendo um ídolo por profissão, um ídolo remunerado, Ronaldo orienta milhões de consumidores a comprar isso e aquilo. Esses consumidores, seus fãs, têm o direito de saber se ele usa drogas e se freqüenta fornecedores de sexo pago. Quem se consagra à profissão de ídolo, comentaria Rui Barbosa, deve prestar contas àqueles que o idolatram. Acontece que, mais uma vez, o escândalo não brotou de uma investigação jornalística, mas de uma intimidade evadida, que foi fazer gritaria no meio da rua, com direito a entrevista do próprio jogador. Novamente, como na França e nos Estados Unidos, o espasmo íntimo define a fisionomia do espaço público.
Seria exagero dizer que a imprensa se deixou tragar totalmente pelas privacidades evadidas. Isso ainda não está dado. Mas, se ela não for capaz de se distanciar da lógica do entretenimento, não disporá de meios para enxergar, para ver e para cobrir as teias pelas quais as privacidades buscam sobrepujar o interesse público. Se é mesmo a vista da Nação, a imprensa não se pode deixar cegar pelo que entretém e não informa, pelo que não emancipa. Seu dever é estar um passo à frente dos fãs que se deixam hipnotizar pelos ídolos – e dos ídolos a se deixarem escravizar pela própria imagem.
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Jornalista, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP