Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Leitores espremidos entre
comércio e religiosidade

Páscoa é uma época de congraçamento, de reflexão sobre a vida e de recolhimento pessoal. Certo? Bem, nem sempre. Principalmente, nos jornais catarinenses. A cobertura da semana que antecede o domingo de Páscoa e a própria data revela que as redações deram tanta importância ao aspecto religioso quanto aos lucros que a efeméride gera. Este MONITOR DE MÍDIA acompanhou as edições de A Notícia, Diário Catarinense e Jornal de Santa Catarina de 20 a 29 de março.

Afogando em ovos e em números

A matéria de André Lückman que abriu o caderno de Economia de A Notícia no domingo, dia 20, tratava das 110 variedades de chocolates disponíveis no mercado, o aumento nos preços de 20% com relação ao ano anterior e da variação deles de um estabelecimento para outro. Mesmo com os aumentos, os supermercados aumentaram seus estoques em 10%, empresários estavam à espera da melhor páscoa dos últimos dez anos e apostando nas ofertas de última hora.

Destaque também no caderno de Economia para a produção artesanal em São Bento do Sul. Já Cristiano Escobar Maia escreveu sobre a variação de preços de um local para outro e a dica foi, sem dúvida, pesquisar os preços.

Encerrando as matérias sobre a Páscoa e ‘deixando de lado o significado religioso da data’, Aline Machado Parodi entrevistou endocrinologistas e nutricionistas falando sobre os benefícios e malefícios do consumo de chocolate. A psicóloga Silvana Martani falou sobre o prazer de comer chocolate, a matéria contou com uma tabelinha com os diferentes tipos de chocolate.

No dia 21, a Ostermarkt, feira pascal de Pomerode, dividiu espaço com a missa de ramos no caderno Geral do AN. A feira atraiu turistas e terminou no dia 27 com o acendimento de uma fogueira alusiva à renovação do espírito. Já a Missa de Ramos transcorreu ao ar livre em Joinville reunindo cerca de cem fiéis.

Neste mesmo dia na página A8, foi publicada matéria sobre o pronunciamento feito no dia anterior pelo cardeal-arcebispo Geraldo Majella Agnelo em Salvador. O arcebispo e também presidente da CNBB condenou o aborto, a eutanásia e a realização de pesquisas com células embrionárias. Segundo ele, isso significa matar inocentes assim como morreu Jesus Cristo.

Ainda no dia 21, A Notícia relatou a benção do Papa que iniciou a celebração da Semana Santa. João Paulo II apareceu rapidamente na janela de seus aposentos e acenou para a multidão com um ramo de oliveira. Sua mensagem foi lida por um arcebispo.

Na terça-feira (22/03), AN fez uma breve publicação sobre a concorrência entre supermercados para garantir lucratividade nessa páscoa. Com um aumento de 20% nos preços com relação ao ano anterior, as grandes redes lançam promoções e financiam as compras.

No dia 23, Dom Titto Buss, bispo emérito de Rio do Sul, contribuiu com o artigo ‘Aos pés da cruz’, que relatava o sofrimento dos discípulos perante a crucificação de Cristo. O bispo fez ainda, um comparativo com o sofrimento à que são submetidas as pessoas hoje, concluindo: ‘O sofrimento suportado com amor purifica e une mais a Jesus’.

Em destaque, a página A4 foi destinada à venda de peixe estimada para a sexta-feira santa. As matérias mostravam a estimativa de crescimento nas vendas dos supermercados, como a estiagem favoreceu os pescadores, os cuidados na compra e também duas receitas. Voltada à Economia, a matéria enfatizava a comercialização de peixe em Florianópolis e Itajaí, duas cidades que contaram com uma supersafra.

Alternativas para quem desejou comprar peixe de água doce e gastar pouco foram as feiras de pescados em Lontras, Chapecó e Lages, como mostrou o AN da quinta, 24.

A sexta-feira santa foi marcada por passeatas religiosas e pacifistas encartadas na página B8 de A Notícia. Dom Murilo Krieger celebrou na quinta em Florianópolis a missa de lava-pés. Obteve-se destaque também para o significado da sexta santa e da Páscoa para diferentes religiões.

No sábado, 26, A Notícia destacou as encenações da paixão de Cristo e as manifestações de fé por todo o estado. Os espetáculos em sua maioria foram encenados no alto de morros com típicas procissões seguindo os atores até o lugar da ‘crucificação’.

No caderno de Economia, a página A9 continha as surpresas e decepções das redes de hotelaria no litoral norte nesse feriado. Na mesma página, falou-se sobre o reforço do estoque dos supermercados.

A carta de Natal publicada no AN de 27 de março falava sobre o individualismo atual. Citando passagens bíblicas, o autor falou da incoerência humana e terminou desejando paz e que todos zelem pela paz uns dos outros. Na página seguinte, Dom Orlando Brandes e o pastor Manfredo Siegle discorreram sobre o significado da Páscoa.

Na segunda-feira, 28, um dos destaques do AN foi a benção de Páscoa do Papa. João Paulo II emocionou os fiéis com sua saúde muito debilitada e, pela primeira vez, não conseguiu pronunciar uma só palavra no encerramento das celebrações pascais assim como na abertura.

De maneira geral, a cobertura de A Notícia foi equilibrada, não cansando os leitores quando o assunto era a celebração da Páscoa. O jornal de Joinville concentrou suas matérias nas páginas de Economia e com a aproximação da sexta-feira santa a proposta foi mesmo ‘vender o peixe’. Como era de esperar, as notícias do Vaticano tiveram espaço privilegiado, desta vez, reforçadas pela atenção à fragilidade da saúde do Papa. Mesmo assim, os artigos de opinião foram em sua maioria alusivos ao Dia Internacional da Água e aos casos do Mal de Chagas no estado.

Equilíbrio entre comércio e religião

No Jornal de Santa Catarina, na edição dos dias 19 e 20 de março, as campanhas comercias já estão voltadas aos temas da Páscoa. Além disso, a edição trata do assunto na seção Almanaque do Vale. Assinada por Jaime Avendano, traz no espaço intitulado ‘Há 30 anos no Santa’ o texto ‘Pode faltar peixe na semana santa’, que mostra a situação do pescado em Blumenau na década de 70, referente ao consumo de peixe na semana que antecede a Páscoa. No dia 21, o jornal traz na p. 4 a matéria ‘João Paulo saúda Fiéis’ relata que o Papa, ainda se recuperando de cirurgia, não celebrou a missa do Domingo de Ramos pela primeira vez, mas apareceu na janela do terceiro piso na sua moradia e deixou uma mensagem de bênção aos fiéis. Seguindo na página, a retranca trata do tradicional caminho percorrido pelos fiéis em Jerusalém, o que marca o início da Semana Santa.

Na edição do dia 22, no caderno de Economia, ‘Projeto leva peixe à mesa dos itajaienses’, apresenta a parceria da prefeitura com a iniciativa privada, para que as famílias de baixa renda e moradores da zona rural possam manter a tradição de não ingerir carne vermelha na semana que antecede a Páscoa. Assinada por Camila Kniss e ocupando toda a página 6, mostra ainda que o projeto Peixe nos Bairros levou espécies de peixes e frutos do mar ao preço de custo para a população. Acompanhando a matéria, o leitor encontra o box ‘Iniciativa desagrada comerciantes’. O texto traz que os comerciantes se dizem lesados pelo projeto, afirmando que as vendas desse início de semana santa foram as piores já feitas, apesar de não haver nenhuma declaração. Ainda no caderno de Economia, na p. 10, sob o título ‘Lojistas apostam no consumidor de última hora’, aparece a expectativa da venda nos últimos dias que antecedem a Páscoa. Segundo Nilson Coelho, que assina a matéria, isso se daria por dois fatores: o calor e o início das aulas. No Informe Econômico, a colunista Ana Paula Bandeira traz sob o título ‘Isca Natalina’, os gastos em Blumenau com a decoração de Páscoa. Para justificar o fato, publica declaração de José Eduardo de Almeira, secretário do Turismo e Desenvolvimento da cidade: ‘A decoração de Páscoa cria expectativas para o Natal’.

No dia 23, no espaço ‘Imagem do Santa’, o leitor encontra foto de Gilmar de Souza intitulada ‘Desfile de Páscoa alegra crianças’. A legenda explica que ‘Coelhos saíram da toca ontem à noite e anteciparam a alegria da Páscoa para centenas de crianças na Rua XV (…)’. Na edição do dia seguinte, no caderno de Economia, ‘Páscoa sem uruguaios para o Vale’, mostra números da ocupação hoteleira no litoral catarinense e explica porque, apesar dos feriados no Uruguai, as reversas são de brasileiros.

No dia 25, a capa do jornal já tem três chamadas relacionadas à Semana Santa: ‘Olha o peixe’, ‘Lava pés resgata a importância da humildade’ e ‘O Rappa em Porto Belo só toca depois da meia-noite’. A primeira remete à p.9, mas a matéria relacionada à chamada – ‘Bacalhau pesa no bolso do Blumenauense’ – está na p.6. O texto do caderno de Economia, assinado por Nilson Coelho, mostra que devido ao alto preço do bacalhau, os consumidores preferem outras espécies de peixe mais baratas. Já na editoria de Geral, o destaque foi a tradicional missa de lava-pés. A repórter Marilene Rodrigues, com o título ‘Lava pés dá lição de humildade’, mostra a origem do ato e foca a missa na Catedral São Paulo Apóstolo. Na mesma página, o jornal presta um serviço ao leitor, publicando um box com horários de supermercados, comércio em geral, bancos, escolas, hospitais, transporte e até coleta de lixo. No caderno de Lazer, ‘O Rappa tocará só depois da meia noite’, apresenta que o show no Café Pinhão, em Porto Belo, começará só depois da meia-noite em respeito à Sexta-feira Santa.

Na edição de fim de semana, o leitor encontra foto do Papa ocupando boa parte da capa, com a chamada ‘Sob as bênçãos de João Paulo II’, que indica as páginas 16 e 17. Em todo o espaço de opinião, nas ps. 2 e 3, reflexões sobre a Páscoa e seus significados. Ainda na p. 3, na ‘Imagem do Santa’, mostra o ovo de 6 metros e 1,6 toneladas feito na Bélgica. As páginas 16 e 17, indicadas na chamada, são totalmente dedicadas à ‘Fé e Religiosidade da Páscoa’. A matéria ‘Carta consente perdão a fiéis’, de Gisele Zambiazzi, conta sobre o documento que propõe remissão de faltas para pessoas que freqüentaram o Santuário de Azambuja, na cidade de Brusque, durante os festejos de 100 anos do santuário. Na p. 17, ‘Encenações assinalam a Sexta-Feira Santa’, as tradicionais encenações durante a Páscoa nas igrejas aparecem, com foco na via sacra na Rua XV e na Catedral São Paulo Apostolo, em Blumenau. ‘Papa fica de fora das comemorações de Páscoa’, apresenta que é a primeira vez, em 27 anos de papado que João Paulo II nomeou cardeais para representá-lo na semana santa. Além disso, Santa traz um box – ‘Saiba mais’ – explicando a indulgência na religião católica e outro – ‘Programação’ – com os principais dias de comemorações dos 100 anos do Santuário de Azambuja. Ainda em uma pequena nota, indica a visita ao site do Santa para mais informações sobre a Páscoa.

Na edição do dia 28, há somente a referência ao feriado em ‘Feriadão termina com quatro mortes na BR-470’, publicada no caderno Geral. Assinada por Jéferson Baldo, mostra os índices de acidentes no feriado e neste ano na BR-470, na altura do trecho que corta o Alto-Vale.

A cobertura do Santa, no período de análise – 20 a 28 de março –, deu destaque à Semana Santa e à Páscoa. Além disso, pode ser vista tanto pelo lado comercial quanto pelo religioso e apresenta um equilíbrio entre esses enfoques. No primeiro aspecto, as campanhas publicitárias do jornal foram relacionadas à data, mantendo um mesmo ritmo durante todo o período. Considerando as matérias de economia, o jornal focou a venda de peixe por menos custo ao consumidor (servindo como serviço de utilidade pública) e a venda dos tradicionais chocolates de Páscoa ‘em cima da hora’.

Já em seu lado religioso, acompanhou durante toda a semana a prática e tradição católica da data, mostrando o desenrolar das cerimônias no Vaticano e no resto do mundo católico. Só não houve citação à Páscoa segundo outras religiões (se elas comemoram ou não, como passam essa data com a tamanha influência do mundo católico), criando certa exclusividade da Igreja Católico neste período.

Paixão por vendas e explicação da data

No Diário Catarinense, as primeiras matérias relativas à Páscoa estiveram restritas às páginas de Economia. No dia 20, sob o título ‘Ovo artesanal aumenta renda’ o leitor encontrou que ‘A chegada da Páscoa não movimenta apenas as vendas de ovos em supermercados e lojas especializadas. Muitas pessoas e pequenas empresas garantem renda extra nessa época do ano com produção caseira de chocolate’. No dia 23, o aumento do lucro também foi o foco da matéria ‘Hotéis de luxo lucram com a Páscoa’. O texto aponta que ‘O feriado prolongado de Páscoa gera expectativa no trade turístico com relação à movimentação no Litoral catarinense (…)’. No dia seguinte, o fim dos estoques de chocolate e a venda de peixes apareceram na p.18. O texto traz que ‘Algumas redes devem zerar os estoques de ovos de chocolate no sábado e projetam crescimento das vendas entre 10% e 15%’. Além de outras informações sobre as vendas, o leitor pode ver, em box, uma pesquisa feita pelo Adocon com 18 produtos e seus preços em cinco supermercados. No dia 25, a movimentação das peixarias ganhou capa e, nas páginas internas ‘Preço do camarão aumenta venda’ aponta que ‘muita gente aproveitou a quinta-feira para comprar frutos do mar para o cardápio da Sexta-feira Santa’.

O caráter religioso da data só foi aparecer nas páginas do DC no dia 26. Então, além de duas chamadas e foto de capa, o assunto ganhou as páginas 4 e 5, destinadas ao material mais importante da edição. Ocupando a p. 4 o leitor encontrou relatos sobre as encenações em diversas cidades do Estado: em Joinville, o ritual que envolve o Círio Pascal; em Lages, a peregrinação de um casal no Morro Grande para agradecer a recuperação da filha; a procissão em Criciúma; e a tradição da colheita de marcela em Chapecó. Na p. 5, a movimentação em Santa Catarina ainda aparece em matérias sobre as encenações em São José e Florianópolis. Apesar disso, o assunto que teve mais destaque nesta página veio da Cidade do Vaticano: ‘Cristãos de todo o mundo lembraram a morte de Jesus Cristo na Sexta-feira Santa, e um cardeal de alto escalão fez o possível para tranqüilizar os católicos, afirmando que o Papa João Paulo II continua lúcido, apesar de seu estado físico extremamente frágil’. O leitor ainda encontrou a movimentação em Aparecida e penitentes filipinos que se pregam pra representar Jesus Cristo em sua agonia. Mesmo com o destaque dado às celebrações, uma página de Economia ainda tratava das vendas motivadas pela Páscoa. Sob o título ‘Apesar do feriado, comércio fatura’, a matéria mostra o movimento nos supermercados do Estado e traz declarações de alguns clientes sobre os problemas e as vantagens de deixar as compras para última hora.

No dia 27, nem economia, nem encenações. O que ganhou espaço na p. 31 desta edição foi ‘A origem das celebrações de Páscoa’. Num texto simples e em tom didático, a repórter traz que ‘Segundo a tradição cristã, Jesus, que era judeu, também estava se preparando para a Páscoa judaica. A ceia que teria comido com seus discípulos na quinta-feira, antes de ser preso, teve para eles conotação de comemoração pascoal’. A matéria explica o que significava a Páscoa para os judeus e o que representa para os seguidores de Cristo. O uso de símbolos como os ovos e o coelho também foi explicado, além da utilização de óleo e luz nas celebrações da Semana Santa. O leitor ainda pôde conhecer, através de box intitulado ‘Os fatos’, as evidências históricas sobre Jesus Cristo.

A importância dada ao lado comercial das datas comemorativas, muitas vezes deixando de lado seu verdadeiro sentido, já é comum. Sendo uma prática já incorporada pela sociedade não era de se esperar que os jornais ficassem imunes a esse processo. Assim, explica-se a escolha da editoria de Economia para as matérias relativas à Páscoa na Semana Santa. É claro que as manifestações de fé dos catarinenses não ficaram sem cobertura, mas a tendência foi concentrar atenção às encenações.

O diferencial desse contexto, no DC, foi a matéria publicada no dia 27, que trouxe a origem das celebrações de Páscoa. Uma pauta que poderia parecer desnecessária para alguns editores, mas que oferece informações interessantes para o leitor, uma vez que detalha a própria razão da existência da comemoração e de seus símbolos. Mas aí também encontramos um problema: todas as explicações dadas pela repórter são baseadas nas definições feitas pela Igreja Católica. Será que DC não deveria trazer se há comemoração da Páscoa em outras religiões? Até mesmo para contemplar outras parcelas do leitorado?

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