ALBERTO DINES
Uma questão teológica judaica comprovou que ele [Herzog] não tinha se suicidado. E a questão teológica é o seguinte: pela religião judaica, o suicida não pode ser enterrado como qualquer outra pessoa; ele fica, digamos, um pouco marginalizado, fica encostado no muro do cemitério, mas não fica no centro. Há a famosa frase ‘Deus dá a vida e Deus tira a vida’. É definitivo, é uma cláusula pétrea do judaísmo: você não se suicida. Também pelos ritos judaicos, a pessoa tem que ser preparada para ser enterrada, tem que ser limpa, limpa até por dentro. É da tradição judaica que os cadáveres sejam todos preparados para subirem, com lavagens, com uma certa assepsia externa, e isso exige um manuseio do cadáver. Na hora de enterrar o Herzog, a ordem era para enterrar junto aos suicidas, mas não foi. Foi essa pequena dúvida de caráter teológico, se ele é ou não é suicida, onde será enterrado, que realmente ligou o sistema todo, deu um curto-circuito. Ao ser enterrado em um lugar normal, ficou evidente que os laudos do DOI-Codi e do legista [Harry Shibata] eram mentirosos, era tudo fajuto. Os cristãos em geral não têm problemas com o enterro do suicida, mas os judeus têm. E chegou a haver uma pressão de pessoas da comunidade judaica para que ele fosse enterrado como suicida, porque os militares tinham determinado aquilo, e a comunidade tinha pessoas, por convicções ou instinto de defesa, próximas ou que aceitavam imposições das autoridades militares. Mas felizmente o [rabino] Sobel foi firme e, além disso, botou a boca no mundo. A partir daí o episódio se configurou não como um suicídio, mas como um assassinato político.
RODOLFO KONDER
O rabino [Henry] Sobel fez a lavagem do corpo e constatou que ele tinha morrido nessas circunstâncias. Nós não estávamos sabendo de nada a essa altura, aí nos tiraram da sala de espera e nos levaram para o andar de cima, supostamente para reconhecer fotos. Nós não entendemos bem o motivo, mas ficou claro depois: o Vlado já tinha morrido e eles precisavam retirar o cadáver daquela sala e tinham que passar pela sala de espera e em que nós estávamos. Mesmo com o capuz você sempre vê alguma coisa e eles não queriam correr esse risco. Voltamos para sala de espera, mas o cadáver já não estava mais lá. Passamos a noite ali, que não tinha vaga nas celas ainda.
No dia seguinte de manhã, o comandante do DOI-Codi convocou os jornalistas, só os jornalistas, para comunicar que o Vlado tinha se matado. Nós ficamos evidentemente chocados, perplexos. E aí ele disse… é aí que vamos entrar no plano da decodificação e Freud vai nos ajudar um pouquinho. Primeiro, ele disse o seguinte, que o Vlado era agente da KGB. Até o [Paulo] Markun disse: ‘Mas não é possível!’. E ele disse: ‘Fica quieto aí, menino, você não sabe de nada! Ele era agente da KGB e o governo está infiltrado de agentes da KGB. O governo está infiltrado de agentes da KGB e nós estamos sabendo quem são’. E depois ele ainda disse o seguinte: ‘E vocês têm que entender qual é a nossa função: a pessoa entrou aqui a gente baixa o cacete. Pode ser até o presidente da República, entrou aqui a gente baixa o cacete!’. Eu também achei essa referência nada fortuita ao presidente da República como uma indicação, não é verdade? Então, fomos informados da morte do Vlado e depois fomos dispensados para ir ao enterro. Eu fui ao enterro nessas circunstâncias, ainda com a roupa suja, a cueca suja, aquela coisa.
O cemitério estava cheio de agentes. Saímos do enterro e fomos, o [George] Duque Estrada e eu, que ficamos juntos o tempo todo, cada um foi na sua casa tomar banho, se trocar, e fomos para o DOPS, onde eu fui fichado pelo Dulcídio Wanderley Boschilla, juiz de futebol, que me disse: ‘Fique tranqüilo que aqui dentro não tem porrada!’. Eu digo: ‘Ah, tá bom!’. E me levaram para uma cela, onde já tinha várias pessoas presas, conhecidas nossas: Sérgio Gomes e outras figuras. E o carcereiro era muito gentil, sempre vinha nos oferecer: ‘Os senhores hoje querem chá ou café?’. Porque a gente dava um dinheirinho para o carcereiro. E ele trazia os jornais também. Fiquei alguns dias lá, depois fomos liberados. Estávamos sendo processados e eu tinha que me apresentar toda semana no gabinete do delegado [Sérgio Paranhos] Fleury. E aí fiz o depoimento no escritório do José Carlos Dias. Quando o Geisel substituiu o Ednardo no comando, divulgamos o meu depoimento e aí eu decidi fugir. Saí pela fronteira de Foz do Iguaçu e Puerto Iguazu.
LUIZ WEIS
Não fui ao enterro e não fui à missa porque estava preso. No domingo [26/10/1975], o pessoal do DOI-Codi divulgou aquele bilhete que o Vlado tinha escrito e rasgado, que era uma confissão: ‘Eu, não sei o que lá, recrutado por Fulano de Tal, membro da base do Partido Comunista, juntamente com blábláblá…’, e estava o meu nome lá. Aí eu fui parar numa outra casa, fiquei clandestino. Mas, ainda assim, na segunda-feira de manhã fui para a Veja, meu emprego. Eu não podia viver na clandestinidade, eu também não iria me expor no fim de semana, porque, para todos nós que vivemos a ditadura, fim de semana era muito diferente de segunda a sexta. Todos os cuidados que uma pessoa devia ter, devia ter especialmente, e acima de tudo, no fim de semana – quando você não tem advogado, os jornais estão fechados, entende? Você não tem arrimos, não tem a pouca proteção que teria num dos dias úteis. No fim de semana as pessoas somem, as notícias são mais devagar. Mas na segunda-feira, eu disse: ‘Bom, eu vou para o meu abrigo’ – meu abrigo era o meu emprego. Aí o Mino [Carta] primeiro me ofereceu [uma alternativa], foi uma coisa muito generosa da parte dele, mas inteiramente inviável, do ponto de vista prático e do ponto de vista da minha distância de filho, minha ex-mulher tava internada, enfim, coisas da vida. Ele perguntou se eu não queria morar em Madri pela revista. Agradeci muito, mas não via como é que eu ia sair e muito menos como é que eu viveria fora do meu quadro pessoal. Aí, ele e o Audálio Dantas, presidente do Sindicato dos Jornalistas, articularam a minha apresentação. E foi que aconteceu: na tarde do dia seguinte, terça-feira, fomos lá o Mino Carta, o José Roberto Guzzo, que dividia a chefia da redação com o Sérgio Pompeu. Iam o Carta, ele [Guzzo], o Audálio Dantas e eu. Fomos recebidos pelo coronel Paes. Ele era um sujeito que, no QG do 2º Exército, pressionava o DOI-Codi. Disse, sobre o Vlado: ‘É, que coisa, como é que ele foi se matar, que coisa terrível’. Lógico, fazia parte de toda a encenação. Isso sobreveio ao longo da conversa.
Bom, aqui está tudo bem, então o senhor vai, um pouco no raciocínio ‘não deve, não teme’: ‘O senhor será levado lá no DOI-Codi onde o senhor prestará depoimento’. E aí, de fato, logo chegou uma viatura do Exército, que me levou. Entrei lá entrei e o sujeito já foi dizendo: ‘Bom, aqui é assim: quem colabora, a gente trata como gente, quem não colabora a gente trata como cachorro. Tira a roupa, veste o macacão’. Enfim, aí estamos, tirei a roupa, vesti o raio do macacão. Tinha uma espécie de sala, um corredor, atulhado de gente, já com capuz. E fiquei horas ali, nada acontecia. E tinha uma menina, uma voz de criança, que estava armando o maior auê ali, reclamava do que, não sei o que ela reclamava, mas eu fiquei muito pasmo. O que é isso, essa pessoa que eu não conseguia ver quem era, que coragem que ela tem? Essa pessoa chama-se Marinilda [Carvalho] Marchi. Ela foi barbaramente torturada e eu nunca vi lá uma pessoa tão corajosa quanto ela, ou não vi ninguém mais corajoso do que ela, uma coisa impressionante. Ela tinha uma coisa que vinha com uma naturalidade, brotava, era uma coisa assim… dando esporro lá dentro, o que não impediu que ela tenha sido torturada. Comeu o pão que o diabo amassou.
Aí eu também reclamei: ‘Pô, eu quero ir para a cela, eu quero ir dormir!’. E aí me levaram de madrugada para uma cela onde eu ficaria uma semana. Eu não fui torturado. Houve ameaças, mas não fizeram nada. Era uma cela muito divertida, como nos dias seguintes vim a saber. Não eram jornalistas, tinha de tudo ali, tudo do PC. Tinha um feirante, tinha um capitão da Marinha Mercante, que tinha viajado o mundo e passava o dia contando anedotas… E tinha um menino que – e eu pela primeira vez eu vi o que é a tortura – não podia pôr os pés no chão: a planta dos pés dele era carne viva.
Os gritos de madrugada, tudo o que se segue, começam interrogatórios. O primeiro que me interroga é o mau – tem o bom e o mau, o good cop e o bad cop. ‘Conta aí.’. ‘Eu me apresentei.’. ‘Apresentou nada, você está é preso, seu filho da puta!’. Ele estava mais preocupado com a base judaica do Partido Comunista, e o Alberto Goldman em especial. Eu realmente não tinha a mais remota idéia, não tinha contato com o mundo judaico. O segundo interrogador, o bonzinho, eu entrei de capuz, ele disse: ‘Tira o capuz, aqui comigo não tem essa coisa de usar capuz nada!’. Sabe, essa coisa é uma farsa. Daí começou a falar no suicídio: ‘Como é que é você entende o suicídio do Vlado, vocês eram amigos’. Eu falei: ‘Não sei de suicídio’. ‘Mas ele era da KGB?’. ‘Não, ele não era.’. ‘Ele era, mas ele não era equilibrado.’. Enfim, tudo fazia parte. Em certa hora ele me apresentou um depoimento de alguém, cuja assinatura ele tampou, e disse: ‘Veja só.’. Era um depoimento [sobre] o que nós éramos. Falei: ‘É isso mesmo.’. Não ia negar o óbvio, estava lá, então era uma espécie de equivalente àquele bilhete do Vlado: nos reuníamos na casa de Fulano, na casa de Cicrano etc. etc.. Depois teve a coisa que todo mundo passava, uma espécie de prestação de contas, que era para os analistas: se escrevia de próprio punho uma análise dos objetivos do Partido Comunista, quais são as metas, era mais para o cérebro usar. Enquanto isso tinha havido o enterro [do Vlado] e tinha havido a missa, cuja verdadeira dimensão lá dentro a gente não tinha. Eu fui saber depois.
Minha prisão foi legalizada e fui para o DOPS, mais três dias no DOPS. E aí já é a civilização, é a Suécia. Você entra e o primeiro que te recebe lá, no meu caso, oferece o leite, vai tirar as tuas digitais, vai te fotografar, e diz: ‘Não esqueça que te tratei bem.’. Era o juiz [de futebol] Dulcídio Wanderley Boschilla, que trabalhava no DOPS. Hoje eu soube que vários outros falaram isso. O Romeu Tuma disse isso para alguém, que outro dia me contou: ‘Nunca esqueça que te tratei bem’. O Tuma era delegado lá. Aí você é levado para o Sérgio Paranhos Fleury, só para ele te olhar. Você vai, abre-se uma porta, ele te olha, fecha-se a porta, você volta para cela. E aí um belo dia, sem mais aquela, você é tirado do DOPS, para onde? De volta para o 2º Exército. Você não sabe se está voltando para o DOI-Codi, a situação é de terror. Não, você vai fazer um testemunho no IPM do suicídio do jornalista Vladimir Herzog, onde você passa por uma coação. O presidente do IPM é o Cerqueira Lima, boa gente, falava que eu fumava muito, ‘faz mal’. Perguntou se eu já tinha estado na Rússia: ‘Não, nunca estive’. ‘Lá faz muito frio, estive lá uma vez.’ E ao mesmo tempo você tem o procurador, que era um civil, que realmente fica te enfiando palavras na boca. ‘O Vlado se suicidou.’. ‘Não!’ E o cara já vai botando nos autos. Eu falei: ‘Não! A morte. Eu não falei em suicídio.’. Mas isso vai, e você não sabe o que vai acontecer depois, quando terminar aquele depoimento, e a sala cheia de milicos, de oficiais, todos com as caras adequadas à ocasião. E você não sabe se volta para o DOPS, se daí você volta para o DOI-Codi… Depois, quando houve o processo que a Clarice moveu, e o Márcio José de Moraes Barros [deu a sentença] responsabilizando a União pela prisão ilegal e tortura e morte de Vladimir Herzog, todos nós depusemos naquele processo e todos contávamos a mesma história sobre o que foi aquele IPM que concluiu pelo suicídio…