A pirataria é lícita? O hacker é um malfeitor ou um Robin Hood cibernético? É um democrata que socializa a tecnologia ou corsário que não respeita direitos alheios? É um anarquista moderno ou terrorista à antiga? Em outras palavras: vale tudo para acabar com o vale-tudo?
Estas perguntas foram sugeridas pela leitura de duas matérias: uma no Estado de S.Paulo (‘Os hackers que habilitaram o iPhone no Brasil’, domingo, 16/9, pág. C-5) e a outra neste Observatório (‘Notas sobre a construção de um jornalismo livre‘). Motivadas por interesses conflitantes, com entonações diferenciadas, originam-se na mesma relativização de ilegalidades e ilícitos.
O hino de louvor aos hackers nativos que ‘ganham fama e dinheiro’ por conseguirem driblar os mecanismos de proteção do iPhone americano foi entoado pelo Estadão dentro da estratégia de ‘arejar’ o noticiário sugerida pelos consultores da Opus Dei.
Estado de Direito
Ninguém se deu conta que a matéria é um incentivo à prevaricação e à pirataria. Ou melhor: em algum momento alguém parou para pensar e decidiu colocar na matéria que os ‘garotos prodígios’ podem ter problemas na Justiça. Por isso, omitiram-se o endereço e o telefone dos hackers. As preocupações legais ou morais pararam aí. Como era importante tornar a matéria mundana e charmosa, enfiaram-se os nomes de duas celebridades: Roberto Justus e Álvaro Garnero (assíduos freqüentadores da coluna social do jornal), que também contrataram o serviço dos hackers pela módica quantia de 600 reais para habilitar o aparelho que compraram nos EUA por 399 dólares.
Estão ferrados: comprar equipamentos pirateados também é crime. Pirataria passiva é como corrupção passiva.
As notas para um ‘jornalismo livre’ são fascinantes porque mostram como é fácil perverter e intoxicar o bom combate e as boas causas. A defesa do software livre e da TV digital efetivamente acessível, democratizada, são cruzadas legítimas, nada têm a ver com a entronização da figura e da atividade do hacker. Quando se quer reformar o Estado não se prega a hackeazação do Estado.
Num momento em que o mundo busca consensos, regulamentos e códigos é bom lembrar que a luta legítima contra a ‘ideologia da propriedade’ faz-se através da defesa do Estado de Direito.