Saudada como uma derrota da imprensa por governistas ressentidos com o papel marcante da mídia no indiciamento dos 40 do mensalão, a absolvição de Renan Calheiros, de repente, pode representar um verdadeiro tiro pela culatra para ele e para os que tão matreiramente o advogam. É o que permite conjeturar a retumbante onda de indignação e protestos desencadeada pela afrontosa decisão do Senado. Reação que literalmente entupiu as vias de comunicação do Congresso e dos meios de comunicação, num frenesi contestatório inédito na história contemporânea do país, considerando a abrangência das manifestações, extensivas às próprias hostes petistas.
Há razões para crer que, ao contrário de tantas outras vezes, desta feita o clamor popular embute um recado categórico aos políticos, como de resto já sinalizava num primeiro momento o ridicularizado movimento dos ‘cansados’. Ridicularizado pelos defensores incondicionais do governo, como se sabe. O que eles não contavam é com a reviravolta dessas duas memoráveis semanas, com a incisiva reação da opinião pública contra as empulhações de ordem política com que mais uma vez se tentou varrer a sujeira para debaixo do tapete.
Se na histórica decisão do STF a rebarbativa versão do complô midiático ainda voltou a quebrar o galho, no caso da obscena absolvição de Renan, com a imprensa mantida à distância, no melhor estilo dos anos de chumbo, a farsa que de qualquer forma veio à tona acabou expondo ainda mais explicitamente a promiscuidade do meio político, no qual os interesses pessoais e partidários invariavelmente se sobrepõem aos princípios que deveriam nortear a vida pública.
Participação popular
Exemplo típico de feitiço que virou contra o feiticeiro, o cerceamento imposto à mídia revelou-se uma estratégia duplamente equivocada, pois além de antipática e anti-democrática, não pôde culpabilizar a imprensa, como de praxe. Na verdade, nem foi preciso a mídia cobrir a malsinada votação secreta para que as manifestações de repúdio pipocassem tão logo o arquivamento do processo foi anunciado, com tal intensidade que fez com que, pela primeira vez em muito tempo, se abrissem flancos na tradicional linha Maginot do lulismo. A ponto de a manjada guarda pretoriana governista se lançar num renhido corpo-a-corpo para defender o território ocupado desde a reeleição de Lula e que agora já não parece tão inexpugnável.
Tal reação não causou desconforto apenas na troupe renaniana, mas aos governistas em geral, ainda ressabiados pela repercussão do indiciamento da quadrilha do mensalão. Tanto é que, de imediato, a ordem foi dar legitimidade à decisão do Senado, a começar pelo presidente Lula, o qual, ainda em plena viagem à Dinamarca, falava da necessidade de o Senado voltar o quanto antes à normalidade. Como se fosse possível, como de outras vezes, simplesmente passar a régua no ocorrido. À distância, Lula não podia saber que desta vez a sociedade não estava disposta a engolir facilmente mais esse grandioso sapo e que, apesar de o governo não ser diretamente atingido, alguma coisa mudou. Ou está mudando. Com ou sem a influência da mídia, a crescente participação popular é uma realidade que não se pode ignorar, sob pena de se cair solenemente do cavalo.
‘Veredicto punitivo’
Com o sentimento de indignação se propagando feito fogo em capim seco, fica evidente que, ao contrário do que se supunha, a sociedade não está anestesiada e muito menos indiferente às mazelas que se perpetuam no âmbito da política. E que a confiança que a grande maioria ainda deposita no presidente, conforme as últimas pesquisas, não significa que o povo não esteja atento e disposto a reagir diante das enjambrações e mutretas que os políticos se acostumaram a promover.
Nesse cenário, também parece não haver mais espaço para se continuar transferindo para a mídia a responsabilidade por tudo de ruim que acontece no país. Mesmo porque o comportamento da imprensa, pelo menos nesses dois episódios, esteve à altura da gravidade de casos que dizem respeito a uma das mais caras aspirações da sociedade, ou seja, o combate à impunidade. E o que pode ser mais bem-vindo que a punição comece pelos que se julgam acima do bem e do mal, protegidos por um arcabouço de artifícios jurídicos que deliberadamente atravancam a justiça em favor dos chamados peixes graúdos?
Por mais que se evoquem os aspectos legais de uma legislação capenga para justificar absolvições que afrontam as evidências, é preciso reconhecer que, mesmo com todos os defeitos que possa ter, a imprensa tem sido o único instrumento capaz de policiar e inibir os passos dos habituais prevaricadores e predadores dos cofres públicos. Em contrapartida, é seu dever buscar a verdade com ética e responsabilidade para que injustiças não sejam cometidas, como não é raro acontecer. O que positivamente não parece ser a presente cruzada, na qual entre mortos e feridos possivelmente todos se salvem, mas cujo efeito profilático também não pode ser descartado.
Como diz o filósofo Michel Foucault na sua Microfísica do Poder:
‘A partir do momento em que se suprime a idéia da justiça, a punição só pode ter significação num contexto de reforma. E os juízes, eles mesmos, sem saber e sem se dar conta, estão sujeitos a passar de um veredicto punitivo para um que não podem justificar em seu próprio vocabulário a não ser pela condição de que seja transformador do indivíduo. Mas os instrumentos que lhes foram dados, sabe-se muito bem que não transformam, daí a necessidade de passar a tarefa para pessoas que vão formular, sobre o crime e sobre os criminosos, um discurso que poderá justificar as medidas em questão.’
Não seria esse o nobre papel da imprensa?
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Jornalista, Santos, SP