A Folha de S.Paulo fez muito bem em convidar Renan Calheiros para escrever um artigo na sua página 3 (‘Tendências/Debates’) de domingo (23/9). ‘Vozes isoladas’ é o título do texto que o senador escreveu ou mandou escrever [ver abaixo].
O político que em apenas quatro meses conseguiu desbancar Paulo Maluf na lista dos mais detestados em todo o país, queria dizer que são ‘vozes isoladas’ que protestam contra o seu comportamento a frente do Senado.
Ora, vozes isoladas não mereceriam o black-out informativo adotado no julgamento há duas semanas; vozes isoladas dispensariam o aparato autoritário, a sessão fechada, o voto secreto.
Renan não protestou inocência, não se defendeu porque nem ele acredita nas provas que apresentou. Mesmo hospedado no lugar de honra de um grande jornal que não lhe dá tréguas, Renan queria atacar a imprensa, apenas isso. O ataque àqueles que, segundo ele, atropelam a opinião pública não é dirigido à oposição, mas à mídia.
Renan Calheiros tirou a máscara de democrata lá no finzinho do artigo, ao dizer que a imprensa ‘não pode nem irá, jamais, substituir a representatividade do Legislativo’. Como já se viu, Renan fala mal e escreve ainda pior: duas linhas antes reconheceu que o sistema político-eleitoral está ‘completamente falido’. Então, qual a representatividade de um Congresso eleito por um sistema falido? Isso Renan não teve tempo de explicar.
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Vozes isoladas
Renan Calheiros # copyright Folha de S.Paulo, 23/9/2007
Quando vozes isoladas querem falar mais alto que a legitimidade popular, na ânsia de abalar e enfraquecer instituições democráticas, o que está em jogo são os pilares de nossa Constituição, é a própria base da cidadania. Porque são vozes isoladas -e mal-intencionadas- que têm propalado a idéia absurda de acabar com o Senado Federal e instituir o unicameralismo no Brasil.
O Senado nunca aceitou -e nunca aceitará- o papel de mero coadjuvante nas decisões nacionais. Nunca fugiu -nem fugirá- de sua responsabilidade de legislar e fiscalizar os atos da União. Nunca abriu mão -nem abrirá- de sua isenção, de sua autonomia. É por isso, aliás, que fez questão de aprovar o orçamento impositivo e restringir a edição abusiva de medidas provisórias, que tumultuam o processo legislativo e ferem a soberania do Parlamento.
É essa atitude de maturidade e de equilíbrio que engrandece a atuação do Senado como Casa da Federação -sempre pronta a impedir que as diferenças de peso econômico e político entre as unidades federativas ampliem nossas desigualdades regionais. Não podemos esquecer que a redução de tais desigualdades é um dos objetivos fundamentais da República brasileira. E é condição básica para que possamos trilhar o caminho do desenvolvimento sustentável.
Um pouco de história e um mínimo de senso político jogam por terra a proposta do unicameralismo.
Nosso Parlamento nasceu bicameral não apenas em razão da forma federativa do Brasil -a Câmara representa os interesses do povo, e o Senado, os interesses dos Estados e do Distrito Federal. O bicameralismo tem também o enorme mérito de evitar eventuais excessos de uma ou outra câmara. Se a Câmara dos Deputados ou o Senado propuser legislação injusta, aprovar ou rejeitar qualquer matéria com base em pressões ilegítimas ou sob emoção, haverá sempre a garantia de revisão pela outra Casa.
Mais. A memória do Senado se confunde com a memória da República e da democracia brasileiras. Nos períodos de instabilidade e até de ruptura, sempre soube reclamar a autonomia entre os Poderes, o respeito à oposição, a vigência dos direitos e garantias individuais. Foi assim na Revolução de 30, no Estado Novo, na morte de Getúlio, na instauração do regime militar. Nos momentos de renovação política, em que reconquistamos as liberdades democráticas, a atuação dos senadores também foi decisiva.
Nos últimos 180 anos, nossa Casa tem sido firme e coerente na defesa de uma Federação representativa, democrática. E não abrirá mão da responsabilidade em nenhuma hipótese. A missão primordial -e insubstituível- do Senado é garantir igualdade entre entes desiguais. É impedir que unidades da Federação usem o peso de seu poderio como rolo compressor sobre as regiões mais pobres.
Convém alertar também que cabem privativamente ao Senado decisões da maior importância, como o julgamento do presidente e do vice-presidente da República em crimes de responsabilidade, a autorização de empréstimos externos e a fixação de limites e condições para operações de crédito da União, Estados, Distrito Federal e municípios.
Investir contra o Senado Federal é investir contra o equilíbrio federativo, é investir contra o Parlamento e a democracia. Acima de quaisquer divergências partidárias, acima de quaisquer interesses políticos, o Senado sempre primou pela maturidade, pelo diálogo e pelo entendimento.
As divergências partidárias e o jogo de interesses políticos não vão deixar de existir. Mas é o interesse do país, a defesa de nossas instituições e de nossas conquistas democráticas que devem ter a última palavra na Casa.
A democracia, por natureza, nunca é perfeita. Costuma ter excessos, exigir aperfeiçoamentos. É esse seu maior mérito. Aperfeiçoar a democracia, no entanto, é completamente diferente de investir contra ela, completamente diferente de investir contra suas instituições. Não é o Senado ou o Congresso Nacional que devem ser atacados. É nosso sistema político-eleitoral -completamente falido- que precisa ser revisto, aprimorado. A mídia, com todo seu poder de influência, não pode nem irá, jamais, substituir a representatividade do Legislativo.
Triste o país que sucumbe a apelos demagógicos e chantagens políticas. O Senado não se deixará jamais pressionar pelos que desrespeitam a democracia e atropelam a opinião pública.
[Renan Calheiros, 52, senador (PMDB-AL), é o presidente do Senado. Foi deputado federal pelo PMDB-AL (1983-91), líder do governo na Câmara dos Deputados (governo Collor) e ministro da Justiça (governo FHC)]