Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Inseto ‘barbeiro’ e
o drama do Vaticano

O tema saúde foi uma manchete quase diária nas primeiras páginas, nas seções de política, polícia, economia, internacional e geral de quase todos os jornais brasileiros nas duas últimas semanas. Só que ele nunca foi tratado como saúde.

A crise dos hospitais no Rio de Janeiro, as mortes por doença de Chagas em Santa Catarina e Amapá, a eutanásia no caso Terri Schiavo e a agonia do papa João Paulo II foram vistos sob todos os ângulos possíveis, menos naquele em que o leitor seria colocado dentro do problema.

Nos quatro casos, os aspectos políticos, religiosos e policiais foram muito mais importantes para os editores do que aquilo que realmente afeta o leitor e o telespectador brasileiro. Nossa imprensa ficou mais preocupada com a briga eleitoral entre o PT e o PFL na crise dos hospitais do que em explorar, com o público, quais as soluções que melhor atendiam as suas necessidades.

A inconsciente Terri Schiavo foi colocada no centro de uma desumana batalha política entre a direita religiosa e os liberais norte-americanos a propósito da eutanásia. Discutiu-se de tudo nesse triste episódio, menos o que o fato poderia ensinar para as famílias que enfrentam o mesmo drama com parentes de enfermos terminais.

No caso do mal de Chagas em Santa Catarina e Amapá, a busca aos barbeiros (insetos transmissores) e a colocação do caldo-de-cana no banco dos réus foram acompanhados pela imprensa como uma perseguição policial, com direito a intromissões estapafúrdias das autoridades ora minimizando, ora simplesmente escondendo o problema – como aconteceu com açaí contaminado. A principal preocupação foi encontrar culpados quando, na verdade, 70 mil pessoas passaram pela mesma estrada em Santa Catarina, no ultimo verão.

Rotina ultrapassada

Finalmente temos o caso da agonia do papa. A opinião pública assistiu à inexorável deterioração da saúde do pontífice durante quase seis meses. É claro que existiram razões políticas para que João Paulo II prolongasse ao máximo sua agonia, mas isto é um problema dele e do Vaticano. O que poderia ter gerado uma nova oportunidade para debater a questão do mal de Parkinson que afeta milhões de pessoas em todo mundo, acabou globalizado pela mídia como uma novela em que o principal protagonista trava uma luta impossível contra a morte.

A obsessão da imprensa com o poder e os poderosos levou-a a tratar a saúde como um item político ou econômico, e não como uma necessidade básica do leitor. Isto pode se transformar numa armadilha editorial porque é evidente o acelerado crescimento do número de notícias envolvendo saúde, em quase todos os veículos de comunicação de massa.

O monitoramento das primeiras páginas dos principais jornais do Rio e São Paulo feito pelo Instituto Nacional de Cardiologia Laranjeiras, vinculado ao Ministério da Saúde, mostra que o número de manchetes sobre saúde vem aumentando em média 10% por semestre, desde 2003. O jornal que mais títulos tem dedicado à saúde é a Folha de S.Paulo, seguindo uma tendência editorial implantada desde os anos 1990. É um fenômeno provocado pela crescente preocupação das pessoas com sua saúde, tanto presente como futura, nos países ricos e em desenvolvimento. As pessoas querem viver mais e melhor depois que sua sobrevivência imediata foi assegurada pelo o crescimento econômico.

A imprensa segue a tendência, mas mantém comportamentos e rotinas ultrapassados, mais vinculados à luta pelo poder do que às necessidades e desejos concretos daqueles que podem comprar jornais. A conseqüência inevitável é um distanciamento ainda maior dos leitores, reforçando a queda de vendagem. Mudar as rotinas e comportamentos é, portanto, também uma questão de sobrevivência.

Terminologia complicada

O aumento do interesse do público por notícias sobre saúde é um fenômeno mundial. Uma pesquisa feita em 2000 pela American Dietetic Association descobriu que 48% dos norte-americanos buscavam na televisão informações sobre saúde e medicina. Os jornais ficaram com 18% das preferências e os médicos, com apenas 11%. A mesma tendência de recorrer à mídia foi confirmada em 2002, quando o Instituto Harris constatou que 80% dos internautas norte-americanos buscam fazem buscas na web sobre saúde, em média três vezes por semana (dados citados no artigo ‘Why reporters and editors get health coverage wrong’, publicado no relatório Reporting on Health, editado pela Nieman Foundation for Journalism, da Universidade de Harvard.

Na Europa, uma pesquisa feita na França, em 2003, revelou que as notícias publicadas na imprensa foram responsáveis por 53% dos casos de abandono do vício de fumar, mostrando que os jornais, revistas, televisão e rádio são muito mais importantes do que se pensa quando se trata de mudar comportamentos e percepções.

Apesar disso, na maioria das redações continuam sendo usados rotinas e valores ultrapassados na hora de avaliar o que merece ou não ser noticiado. Uma investigação feita na Suécia, em 1999, com 687 repórteres que cobriam temas de saúde em 37 países, apontou resultados (clique aqui para ver os detalhes) que continuam válidos até hoje.

Entre os participantes da pesquisa, nada menos que 47% dos repórteres de revistas culpavam seus chefes pela resistência em publicar reportagens sobre saúde, quando não haviam interesses políticos, religiosos ou econômicos em jogo. Entre os repórteres radiofônicos, a maior queixa (91%) foi contra a falta de tempo para investigar melhor os temas cobertos, enquanto na televisão as principais reclamações foram a carência de fontes independentes de informação (70,6%), o uso de terminologia complicada pelos entrevistados (76,5%) e a guerra por pontos de audiência imposta pelos editores (58,8%).

Questões ultrapolêmicas

Mas há exemplos de que é possível mudar este quadro – e o melhor deles está nas reportagens do médico Drauzio Varella, no Fantástico, da TV Globo. O doutor Drauzio está fazendo aquilo que os jornalistas deveriam ter feito. Ele acabou se transformando num comunicador pela necessidade de tratar temas médicos com autoridade e objetividade. As reportagens apresentadas semanalmente podem ser consideradas uma aula de jornalismo médico, porque procuram induzir à mudança de comportamentos e percepções em vez de buscar culpados, perdedores, ganhadores ou praticar o voyeurismo de celebridades agonizantes.

A cobertura de temas relacionados à saúde pode dar origem a um novo tipo de jornalismo no qual o interesse público assume papel preponderante na pauta de repórteres e editores. Esta é uma tese que vem sendo defendida há anos por profissionais como o repórter e professor Wilson da Costa Bueno, mas que sempre foi minimizada nas redações por conta da inércia e da prioridade avassaladora dada ao assuntos políticos, econômicos e esportivos. De todo modo, a nova postura do público cria condições para que a imprensa descubra como suas rotinas estão desatualizadas.

Nos Estados Unidos, a Association of Health Care Journalists, associação de jornalistas especializados em saúde criada em 2001, publicou ano passado o primeiro código de ética especial para jornalistas na área de saúde. Veja aqui. O documento é considerado uma referência mundial na área porque estabelece procedimentos muito precisos sobre condutas jornalísticas em questões ultrapolêmicas, sobretudo as que envolvem religião e interesses comerciais.

Os 750 membros da associação devem ter ficado horrorizados com o que seus colegas de redação fizeram durante a briga pela retirada dos tubos que mantinham viva a pobre Terri Schiavo.

******

Jornalista e pesquisador de jornalismo pela internet.