A morte de personalidades, quando acontece de forma natural e após um período de doença grave, permite aos meios de comunicação preparar os necrológios cuidadosamente, o que quase sempre é motivo de brincadeiras nas redações. Em geral, o jornalista encarregado do principal texto biográfico sofre nas mãos dos colegas uma agonia proporcional à do moribundo. Fica isolado em sua tarefa, e raras vezes é convocado a participar do planejamento da edição, no momento do desenlace. No fim, o noticiário de jornais, revistas e especiais de televisão quase se equivale em termos de conteúdo.
O detalhe acaba acontecendo na linguagem e na forma como os conteúdos se integram. Os veículos que contam com jornalistas mais experientes envolvidos na edição encontram com mais naturalidade o estilo adequado à solenidade dos fatos. O problema é que, na maioria das redações, fechamento virou sinônimo de maratona, e os mais experientes, por suposto, são geralmente menos ágeis no teclado e no comando dos programas de computador. As exceções confirmam a regra.
Fechar rapidamente virou uma obsessão, e a agilidade perde valor quando falta o planejamento adequado. Destacados para tarefas específicas, os mais experientes deixam de dar sua valiosa contribuição no momento de refletir sobre a edição. O resultado é que quase sempre a cobertura de fatos como a morte do papa acaba resvalando para o ramerrão de todas as mortes noticiáveis, com os defeitos que vão do emocionalismo barato à evidente falta de um conhecimento mínimo sobre a personalidade desaparecida e a instituição que representa.
Bolsa de apostas
A falta de integração entre os textos e as diferenças de linguagem entre as páginas dá a impressão de que em nenhum momento ocorreu, entre os jornalistas encarregados de decidir sobre a cobertura, uma conversa a respeito do grau de distanciamento que deve existir, no caso, entre a imprensa e a igreja católica – assim como algum espaço deve sempre haver entre a imprensa e qualquer instituição, até mesmo como condição para uma visão mais adequada.
Podemos observar, na cobertura inicial da morte de João Paulo II, como a juvenilização das redações cobra seu preço. Em momentos como esse, não basta ter os mais experientes isolados no topo da hierarquia, ou confortavelmente instalados em suas colunas. O resultado, nesse caso, é uma cobertura fragmentada, na qual um artigo pode revelar que seu autor conhece a diferença entre um arcebispo e um cardeal, enquanto os demais textos denunciam a pouca familiaridade da redação com o tema.
Outro detalhe: jornalistas experientes – ou aqueles que aprendem com a experiência – sabem que tentar oferecer previsões sobre a identidade do sucessor nas primeiras horas após a morte do papa não é necessariamente um bom serviço jornalístico.
A eleição do polonês Karol Josef Wojtyla já foi surpresa suficiente para os repórteres na época. Seu pontificado também se revelou, aos poucos, uma sucessão de novidades. Os menos experientes abrem a pauta com a bolsa de apostas, enquanto os mais tarimbados sabem que não podem, de sua mesa de trabalho, fazer mais do que mera especulação.
Estilo de gestão
Essa talvez seja a razão para a cobertura mais ponderada e consistente oferecida pelo Estado de S.Paulo na edição deste domingo (3/4), aquela que em todo o mundo anunciou a morte de João Paulo II. Essa diferença talvez possa ser explicada por dois nomes: José Maria Mayrink e Roldão Arruda.
Mayrink, um veterano jornalista católico, é capaz de encher algumas páginas de jornal com uma análise abalizada sobre o momento de transição no Vaticano, com o simples recurso de sua memória e alguns telefonemas. Roldão Arruda, outro jornalista experiente que testemunhou o surgimento, ascensão e declínio – que pode ser parcialmente creditado ao papado conservador de João Paulo II – da Teologia da Libertação na América Latina, é outro profissional cuja presença serve como antídoto contra a publicação de lugares-comuns.
Ambos também conhecem a linguagem com que um jornal deve tratar as autoridades eclesiásticas, seus rituais e credos. Mas o mais importante, e que pode ser conferido em conversa com jornalistas que fecharam a edição de alguns jornais brasileiros no sábado, é o grau de autonomia que se pode oferecer à equipe em momentos como esse.
Onde há jornalistas experientes envolvidos na edição, mesmo que no dia-a-dia estejam colocados hierarquicamente na condição de repórteres, o eixo da decisão, em momentos como esse, passa automaticamente, e sem conflitos, para eles.
Onde a juventude foi privilegiada – dentro da estratégia da redução de custos –, a arrogância induz ao estilo de gestão centralizada, com os mais experientes apenas recebendo a delegação de tarefas pontuais, o que explica as ilhas de bons artigos no oceano de lugares-comuns.
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Jornalista