O teatro de espetacularização da morte encenado em escala planetária envolvendo o caso Terri Schiavo deve alcançar índices astronômicos com a morte de João Paulo II, mesmo que seu dramático sofrimento físico não sugerisse alternativas.
Psicanalistas, entre outros, devem estar perguntando aos seus botões sobre os desdobramentos dessa novela de absurdos numa sociedade que não se conforma com a idéia de um fim, por mais complexo que possa parecer.
Assim, se a cobertura da morte do papa vier a ser utilizada como tema de mestrado numa dessas escolas de jornalismo criadas para explorar o ensino pago, fica a sugestão ao candidato de avaliar o emocionalismo da cobertura como índice de aferição da atualidade da mídia.
Evidentemente que os indicadores, ainda eram preliminares, na noite do domingo (3/4), quando este texto estava sendo produzido. Mas sugestivo do que está por vir. Especialmente se o veículo escolhido for O Estado de S.Paulo. Nas conclusões que devem apresentar um trabalho acadêmico, mesmo numa dissertação de mestrado, nosso hipotético candidato certamente irá concluir que retornamos à Idade Média.
Se um dos grandes jornais do Brasil rende-se ao emocionalismo mais estreito, sem condições de oferecer aos seus leitores uma interpretação crítica isenta, é o caso de se pensar sobre o que está ocorrendo com publicações menores. E especialmente a que distância esses veículos estão de seu próprio fim. A menos que estejamos dispostos a acreditar que o mundo começa a andar para trás, como eventualmente fazem os caranguejos.
O tom, no caso de O Estado de S. Paulo, foi dado já na edição do sábado, com a manchete construída entre aspas, sobre uma frase do cardeal Camillo Ruini, vigário-geral de Roma: ‘Ele [o papa] já vê e toca o Senhor’.
Pode-se perguntar: de que pretenso poder desfrutaria o vigário-geral de Roma para fazer uma afirmação dessa natureza?
Alguém pode responder que ao vigário-geral de Roma – mesmo com toda sua distinção e poder político-religioso – não é dado o privilégio de observar a cena a que se refere e, por isso mesmo, o que disse não passa de uma frase de efeito, ‘um recurso alegórico’, para sermos indulgentes.
Ainda assim, uma dose dessas de alegoria não sustenta uma manchete, como uma coluna de barro não suporta uma ponte.
Proteção elementar
A Folha de S. Paulo, para citar o concorrente direto do Estadão e uma eventual referência para nosso hipotético mestrando numa investigação de jornalismo comparado, foi comedida e precisa, como um jornal com pretensão de ser levado a sério deve ser. Em lugar da visão do céu exposta pelo vigário de Roma, preferiu uma manchete objetiva e clara: ‘João Paulo 2º piora e perde a consciência’.
Mas o tratamento da edição do sábado foi só uma degustação para o que o Estadão ofereceu aos leitores do domingo, ao longo de um suplemento de 24 páginas, anunciado por outra manchete redundante: ‘Morre João Paulo II, após longo martírio’.
Que o papa era vítima de enorme sofrimento foi o fato de melhor conhecimento neste planeta nas últimas semanas. Daí o dispensável ‘após longo martírio’, a menos que se leve em conta a intenção melodramática da manchete, endossada por uma outra citação, agora do arcebispo Leonardo Sandri: ‘Nosso santo padre voltou para a casa do Pai’.
A conclusão a que se chega, segundo a edição dominical do Estadão, é que as autoridades eclesiásticas romanas têm trânsito direto para os céus, o que aprovaria a dissertação de nosso mestrando em jornalismo e abriria um espaço novo para a teologia, considerando que, de Roma, pode-se observar, a olho nu, os movimentos do criador.
Nosso interlocutor imaginário pode rebater que essa é uma crítica excessiva, mesmo com as manchetes de páginas interiores, caso da H 4: ‘Brasileiros estão órfãos’, afirma d. Geraldo Majella’.
Por que os brasileiros seriam os únicos ‘órfãos’ da cristandade com o desaparecimento do papa? Ou a verdade é que os brasileiros sempre foram órfãos dos cuidados de uma elite arcaica e incapaz de promover e sustentar um mínimo de bem-estar social?
Na página H 9 a manchete é: ‘Missão a cumprir. E ele a cumpriu’. Na realidade, não é isso o que diz o texto da página H 18, reproduzido da publicação alemã Der Spiegel e de autoria do teólogo católico dissidente Hans Küng, para quem o conservadorismo de João Paulo II criou uma série de problemas para a Igreja e um desafio enorme para seu sucessor.
Como estamos no estágio da espetacularização mais exacerbada, ainda não é o momento para o recurso da análise mais lúcida, mesmo que algumas vozes já sejam audíveis sugerindo um olhar mais crítico e consistente.
A lista dos problemas deixada pelo papa morto é longa para nos apegarmos a preocupações mundanas e não a questões teológicas, o que exigiria opiniões de especialistas. Vai da rejeição à pílula e à camisinha – neste segundo caso como proteção elementar ao risco de contração do vírus da Aids – à reafirmação de uma pretensa superioridade da fé católica frente a outras religiões, insistência do celibato para os homens e a recusa em conceder o sacerdócio às mulheres. Ou de reafirmar que elas não têm direito ao aborto mesmo quando carregam uma gravidez que resultou de estupro.
Concepções heliocêntricas
Talvez o papa, independente de seu carisma, há muito não vivesse mais neste mundo. Conseqüências práticas de posicionamentos em contradição com as necessidades deste mundo custaram e ainda custarão sofrimentos desnecessários a milhões de pessoas, por muitas e diferentes razões. O que significa dizer que o mundo é vasto e complexo demais para ser orientado a partir de normas tão restritivas.
Se não tivéssemos precedentes históricos ainda seria possível alguma aceitação, mas eles existem precedentes e não podem ser desconsiderados.
Quando observou manchas na superfície do Sol, movimento de ‘estrelas’ [satélites galileanos] em torno de Júpiter, viu e estimou a altura das montanhas na Lua e localizou uma infinidade de estrelas no que antes parecia apenas um borrão de luz no céu, Galileu Galilei irritou profundamente a Igreja. Por conta disso foi ameaçado de ser posto a ferros (seguir acorrentado para Roma) por um papa de quem havia sido próximo e em quem ainda enxergava um amigo.
E aqui entramos no conteúdo de outra das páginas do suplemento do Estado de S.Paulo, a H 15, com o título principal ‘Ciência e fé, a eterna batalha’, para um texto assinado por Gilles Lapouge, veterano correspondente do jornal em Paris.
Lapouge dá mais de uma escorregada e mostra que definitivamente não é um pescador desta praia, ainda que tenha se mantido acima do que escreveu em outra página Antonio Marchionni, professor da PUC-SP e autor do controvertido Uma Esmeralda para o Brasil, vastíssima coleção de equívocos conservadores sobre a realidade brasileira.
O escrito de Marchionni é uma dessas evidências da incapacidade de a Igreja Católica conciliar-se com a realidade contemporânea e, assim, não tornar ainda mais aguda uma crise que já não é pequena envolvendo, entre outros pontos, a explosão demográfica.
Quanto a Lapouge, como muitos outros escritos laudatórios a uma pretensa renovação feita por João Paulo II, refere-se aos ‘arrependimentos’ expressados pelo papa em relação a Nicolau Copérnico (1473-1543), polonês como ele e Galileu, incluindo o reconhecimento do Darwinismo.
De acordo com Lapouge, Copérnico teria lançado por terra a ‘teoria geocêntrica universalmente aceita do grego Ptolomeu’. Aqui temos dois erros produzidos por uma única cajadada. O ‘universalmente aceito’, na realidade, vale apenas para um ocidente teológico mergulhado numa noite que durou 15 séculos, de onde até a estrutura dos correios, criada há 3 mil anos no Egito, desapareceu. As sociedades humanas ficaram isoladas, entregues aos piores fantasmas, alimentadas por um obscurantismo profundo, e queimar ‘bruxas’ e ‘hereges’ transformou-se em prática odiosamente aceita como forma de proteção à fé.
O papa pediu perdão a Copérnico (a obra saiu quando ele estava morrendo e foi vetada pela igreja posteriormente) e Galileu em nome dos erros ‘de filhos e filhas da Igreja’, mas nunca por erros ‘dos santos padres’ ou da ‘própria Igreja’, como enfatiza Hans Küng.
Quanto ao geocentrismo, ao contrário do que escreve Lapouge, foi uma cosmologia gestada por Aristóteles (384 a.C.- 322 a.C) e não por Ptolomeu (90/100 d.C.-170 d.C.), após concepções heliocêntricas como as formuladas por um contemporâneo de Aristóteles, Aristarco de Samos ( (310 a.C-230 a.C).
‘Tudo pode, tudo sabe’
É preciso dizer que o papa morto não pronunciou em momento algum o nome de Giordano Bruno, queimado vivo em 1600, acusado de heresia, entre outras razões por pregar que a vida não se restringe à Terra, mas estende-se a uma infinidade de mundos orbitando inúmeros outros sóis.
Além disso, ao reabilitar Copérnico e Galileu o papa apenas atualizou um pouco o anacronismo da Igreja após a detecção, entre outras, da radiação cósmica de fundo, uma espécie de fóssil em microondas, da explosão que criou o Universo, segundo postula a cosmologia do Big Bang.
O desafio, aqui, não está numa discussão simplista entre crentes e ateus quanto a um entendimento sobre a origem do Universo, mas na capacidade de se conceber uma instância de criação cuja beleza sensibiliza a inteligência e não a fé compulsória – discussão que não deixa de ser sintomática, neste início de terceiro milênio.
Lapouge escreve que ao reconhecer o Darwinismo o papa refutou a idéia de que a Bíblia deva ser lida literalmente, apagando a versão tradicional de Adão e Eva expulsos do Paraíso.
A verdade é que a Bíblia, como qualquer livro considerado sagrado, e mesmo os clássicos da literatura, a exemplo das obras de Homero, são expressos em linguagem alegórica, o que explica sua resistência ao fluxo do tempo. A narrativa da expulsão do Paraíso não é outra coisa senão um registro da fundação da agricultura, há 12 mil anos, gravado com o recurso da metáfora – o que significa dizer que, por meio da alegoria, neste caso, a Bíblia refere-se a um acontecimento real.
Lapouge endossa o esforço de João Paulo II em conciliar ciência e fé, reproduzindo a idéia de que a ‘ciência sem fé resultou no positivismo’, o que é um enorme disparate de um ponto de vista epistemológico.
A ciência, consciente de suas próprias limitações, como escreveu Paul Dirac (1902-1984), físico-matemático inglês, descobridor teórico da antimatéria, entre outros trabalhos, tem como evidência da verdade a experiência estética, a beleza da teoria, e não a camisa-de-força que confina a inteligência.
Um dos desafios da humanidade neste início de século, como escreveu Carl Sagan em O mundo assombrado pelos demônios – A ciência como uma vela no escuro, é assegurar o desfrute da inteligência, comprometida com uma consciência cósmica livre de interferências obscurantistas de fundo religioso fundamentalista, acusação que a mídia costuma atribuir a desafetos do cristianismo.
Ao contrário do que ocorre com vigários em Roma, homens de talento da ciência não têm intimidades com os céus. Sabem que há um profundo mistério no Universo, mas não conhecem a essência de sua natureza. Se alguém sugerir que esse mistério profundo pode ser chamado de ‘Deus’, um físico do porte intelectual do Nobel de 1979, Abdus Salam (1926-1996), certamente não faria restrições.
Num de seus textos, A unificação das forças fundamentais, sobre um cenário que teria integrado o nascimento do Universo, Salam termina com uma citação poética na qual está dito que…
‘… ainda que todas as árvores da Terra fossem penas/ e o mar fosse tinta,/ E mais sete mares houvesse para voltar e enchê-lo,/ as palavras do Senhor não se esgotariam/ Pois o Senhor Tudo Pode e Tudo Sabe’.